27 de dezembro de 2017

Ficção - Quando ser bom cansa

Aviso prévio: Contém linguagem comum e corriqueira, mas numa apreciação politicamente correcta, pode ser entendida como incorrecta.

Se havia na aldeia de Cagadães pessoa generosa, altruísta, confidente, amigo do amigo, não era o pároco Pe. Elias, ainda que com nome do santo profeta a seu favor, ou nem sequer o presunçoso presidente da Junta, o Jacinto das Dornas, mesmo que dono de casa farta, o melhor cliente do alfaiate Carlinhos das Tesouras e condutor do melhor carrão da terra. Não! Não era nenhuma destas figuras, mesmo que na presunção de que os respectivos cargos devessem ser modelos de bons exemplos ou de melhores acções, de humildade e dedicação à causa alheia dos fregueses. Mas o povo, de longa data já desconfiado e experimentado, é das pessoas com tais responsabilidades públicas e comunitárias que menos espera em matéria de bondade e bem-fazer a favor dos outros, dos próximos ou dos afastados. Ficavam assim de fora, excluídas, estas duas “importantes” figuras da terrinha.

Posto isto, quem seria, então, a alma mais caridosa dessa típica aldeia encravada entre mar e serra? Até poder-se-ia pensar na professora D. Margaridinha, aposentada, sempre generosa nas esmolas e peditórios para a igreja, ou mesmo no Carlinhos das Cavadas, filho único, solteirão, dono de uma pequena fortuna em bens ao luar, frescas ribeiras e frondosas tapadas a perder de vista lá para a serra da Parada. Mas não, mesmo com as esmolas da velha professora ou com a banda de música e pregador na festa da Senhora do Amparo, pagos como antiga promessa pelo herdeiro das Cavadas, bem arranjada estaria a freguesia que a sua melhor alma se ficasse apenas por essas vaidosas benesses. Era, pois, quase de consideração geral que a melhor prenda humana da aldeia era o Toninho da Quintão. O homem, para além de toda a sua dedicação à arte de carpinteiro, qual S. José, tinha uma família, se não sagrada, pelo menos exemplar, e a todos ajudava. Mais do que a sua quota parte das ofertas a peditórios para as causas da igreja e da freguesia, estava sempre disponível para tudo e para todos. Nas tascas era um mãos largas, pagando rodadas a toda a gente. À sua volta não havia tristeza. Quanto a convívios era sempre o primeiro na organização e no encargo das despesas. Ele fazia parte de quase todos os movimentos da paróquia e de quase todas as confrarias e comissões de festas e festinhas. Tomou parte da direcção do Clube Desportivo de Cagadães, pagando a atletas e a árbitros, não que concordasse com os favorecimentos no apito, mas porque era assim que se "dançava" nos regionais da bola. Participou, também, em juntas e assembleias de freguesia, etc, etc, num nunca mais acabar de dedicação à sua terra e sua gente. 

Era, pois, esta uma alma exemplar e como tal uma figura querida e popular. Tanto que quisesse ele voltar a ser presidente da Junta de Cagadães e mesmo sem o apoio de qualquer partido daria uma abada ao cagão do Jacinto e seus pares da concelhia. Desejasse ele voltar a fazer parte da Comissão Fabriqueira e o padre Elias o acolheria como a uma criada roliça de cores sadias.  Mas, com a idade já a avançar para a reforma e farto de comer poeira e serradura de mogno e macacaúba, o Toninho já estava a ficar cansado de ser bom e com isso a perder a paciência como um velho serrote a perder a trava. Falando com os seus botões, enquanto moldava pinázios para portas e janelas, já não eram raras as vezes em que questionava o que tinha ganho até ali com essa sua boa e samaritana disponibilidade. Não que alguma vez esperasse receber dividendos pela sua natural forma de ser e estar, mas pelo menos quanto ao reconhecimento efectivo e afectivo da sua comunidade. É certo que reconhecia que num sentido geral era uma figura popular e por muitos realmente querida, mas também concluía, agora, mais lúcido, que de muitos outros essa era uma popularidade interesseira, daquela que os espertalhaços usam e abusam em benefício próprio.

Certo é, que fruto dessas cada vez mais regulares reflexões, quase existenciais, o Toninho da Quintão aos poucos começou a desprender-se de alguns compromissos com a freguesia e mesmo nos seus tempos livres, aparecendo menos vezes à tasca do Lacrau e com menos bondade nas esperadas rodadas. A quem lhe batia à porta, pedintes, associações de recuperação de drogados e bêbados, bombeiros ou comissões de festas, já começava a saber responder com um “fica para a próxima” ou já mesmo com um “não”, mesmo que justificando-o. A princípio muito a custo, a roer-lhe os fígados, porque contra a sua natureza, mas depois já com convicção, tornaram-se frequentes as negas, levando a desconfiar todos quantos a cada pedido ou solicitação esperassem a acostumada resposta sorridente e positiva, como se bastasse um abanão à árvore para dela caírem generosos frutos..

Em pouco tempo, esta é que era a verdade, o Toninho estava uma pessoa mudada. É certo que continuava a ser dedicado ao trabalho e à família, mas fechou quase a torneira à sua bondade e participação nas coisas da terra e a favor dos outros. E já não era uma posição que se lhe oferecesse dúvidas mas antes uma plena convicção. E quando interpelado dessa sua mudança, começou até a ser um pouco rude, ou curto e grosso como costuma classificar o povo. Os palavrões começaram a tornar-se vulgares nas suas apreciações, até ali caso raro, porque pautava-se pelos valores do respeito e simpatia. Mas agora as caralhadas saíam-lhe da boca com naturalidade e, de repente, parecia estar de mal com tudo e todos. Até o Pe. Elias que até ali lhe parecia estar à altura da sua função de pastor, desculpando-lhe o "rigor" nas contas do "venha a nós", apresentava-se-lhe agora na sua consideração como um “cheio-de-nove-horas”, interesseiro, avarento e até mesmo um rufia na forma como desconsiderava os paroquianos pobres e elevava os ricos. Já quanto ao presidente da Junta, o Jacinto das Dornas, era um “merdas” um "caga-latas" vaidoso, arrogante, de sorrisinho hipócrita, colector discreto das comissões dos empreiteiros do regime como se a discrição e o "saber fazê-las" não beliscasse a camada de honestidade.

Por outro lado, perante situações que antes, no exercício de cidadania, procurava resolver ou fazer com que resolvessem, mostrava-se agora indiferente e até revoltado. Ainda há dias, passando na Travessa dos Concharinhas viu que a rede pública de água estava com uma fissura perdendo uma grande quantidade de água. Noutros tempos teria de imediato telefonado para a companhia das águas  a avisar da avaria, mas agora, passando indiferente com o carro por cima da enxurrada de água, comentava para si próprio: - Que se fodam! Cabrões de merda que ainda há tempos, porque atrasei um dia a pagar a factura da água, tiveram a puta da lata de me cobrar juros de mora. É deixá-la correr. Está por conta do dono!
Já depois desse dilúvio, porque se andava em preparação para eleições para a Junta, foi convidado pelo Jacinto das Dornas a fazer parte da lista. Recusou, tanto educadamente quanto possível, mas já depois de o despachar, comentou para si próprio: - Vai-te foder, Jacintinho! Querias era mama! Alguém que te fizesse o trabalho para andares aí feito cagão a mostrar os dentes. Já mamas que chegue, incompetente de merda. O povo que abra os olhos! À minha custa, não! Vai-te foder!

Até aí, mesmo para algumas pessoas que sabia que por inveja lhe cortavam na casaca, nas suas costas, claro, mostrava-se indiferente à ofensa, sempre simpático e disponível, quase dando a outra face, mas agora perdeu essa paciência e a recomendação da doutrina e há dias sabendo por terceiros que o Zézinho Faneca, entre uma barba e um cabelo, esteve a dizer mal de si na barbearia do Alfredinho, confrontou-o à saída da tasca do Lacrau: - Ó meu grande filho da puta! Andas para aí feito tagarela, armado em cobarde a dizer mal de mim sem que eu te tenha feito algum mal? Qual é o teu problema? Queres que te amasse os cornos? Trata da tua vida senão tenho que te partir as bentas! - O Faneca, esperando o habitual e cordial cumprimento, ficou atordoado por esta reacção e mudou de cor para um branco pálido e mal conseguiu bocejar uma mentirosa negação. Foi ligeiro para o carro, como um rafeirito assustado, com o rabinho entre as pernas. Nunca mais lhe cortou na casaca e agora nas suas caminhadas desvia-se se o vir na sua direcção.

Poderiam ser aqui apontados mais exemplos dessa mudança do Toninho da Quintão, mas as descritas demonstram por si só que por vezes um homem cansa-se de ser bom. Ora verdade seja dita, na nossa sociedade sempre houve o pecado de se pretender abusar da bondade e generosidade de quem é bom e quase apetece dizer ou concluir que para gente má a bondade é um desperdício e porventura o Toninho, mesmo que um pouco tardiamente, chegou à sábia conclusão que a bondade é só para quem a faz por merecer e não para quem a dá como adquirida.  
Poderemos então concluir que o Toninho da Quintão deixou de ser uma alma boa? Talvez não! Quando muito aprendeu a distribuir a bondade apenas a quem a merece. Ora, dirá ele, os cabrões e filhos-da-puta deste mundo e de Cagadães não merecem qualquer gesto de bondade. Merecem mesmo um valente pontapé no cú ou bem apontado aos tomates, mas, vá lá, bondosamente, pelo menos a total indiferença.

Nunca é tarde para aprender e o Toninho, carpinteiro, de tanto "serrar" na bondade desperdiçada, aprendeu às suas custas. É que ser bom e generoso para cabrões e filhos da puta, cansa. É como "chover no molhado" ou "dar pérolas a porcos". Um desperdício.