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16 de março de 2024

O "rapa orelhas"

Há dias confidenciou-me o Ti  Manuel do Mouco, sem qualquer assomo de cristandade e sem dar crédito ao ensinamento evangélico da necessidade de perdoar 70 vezes 7,  que se houver juízo e sentido de justiça no Além, deve estar a arder nas labaredas do inferno, desde há cinquenta e tal anos, a besta quadrada que a ele e a outros mártires ensinou a ler, a escrever e a fazer contas na pobre e única escola da aldeia. Era o professor o terror da criançada e era entre ela conhecido como o "rapa orelhas",  já que com a negra cana de bambu, colhida do canteiro que mantinha na horta só para o abastecer desse apetrecho disciplinador, lhes ceifava sem dó nem piedade as orelhas ou o que restava delas. E daí, quem se surpreende por alguns dos nossos mais velhos apresentarem-se com orelhas caídas como perdigueiros ou calejadas?

Mesmo que não quisesse dar crédito ao azedume ou mesmo ódio do Ti Manuel ao "rapa orelhas", devia ter sido mesmo verdade a ter em conta outros iguais testemunhos de quem teve tão duras lições nessa velha escola. Eram as orelhas, eram as mãos, a cabeça e tudo quanto fosse carne e osso a merecerem os impiedosos castigos do irado professor, com tareias acompanhadas de "elogios" que mais pareciam uma lista de todos os animais domésticos e selvagens, desde o burro e porco ao urso e ao camelo. Até nessa lengalenga era uma lição de fauna a que aqueles pobres coitados aprendiam de cor e salteado de tanto ser repetida.

As crianças faziam de tudo para fugir à escola, como fingir que estavam doentes, chegando mesmo a ferir-se e a emborcar azeite para ficarem de caganeira, mas em regra pouco compaixão encontravam nos pais que não raras vezes aos castigos do professor somavam outras tantas tareias em casa. Por isso queixas era melhor não as fazer quanto mais queixinhas.

Tempos duros esses, com exageros. Nem todos os professores eram assim, mas em boa verdade, quase todos. Deviam ter em comum a disciplina de como bem arriar na canalha.  Hoje em dia os absurdos são outros e o barco deu uma volta de 180 graus e são agora os alunos a pôr em sentido os professores e se preciso for vão lá alguns dos pais acrescentar a disciplina a quem a devia administrar.

Estará, pois, a arder, desde há mais de meio século o professor franzino mas de mãos e braços duros e implacáveis na arte de ensinar á moda antiga e de como matar piolhos à canada e por sentença do Ti Manuel do Mouco continuará a arder por mais uns séculos. Mas haverá  mesmo inferno? Chegou a arrepender-se? Ou, em vez de estar a arder nas labaredas alimentadas a enxofre e alcatrão anda por lá a pôr o diabo em sentido e também a castigá-lo nas orelhas e nos chifres?. É que sempre ouvi dizer que certas pessoas são tão más que nem o diabo consegue lidar com elas.

15 de dezembro de 2023

Já não há dramas

O Ezequiel, o Sr. Oliveira como gosta que o tretem, reformado que está depois de passar o negócio das tintas ao genro, mantém ainda velhos costumes de quando foi presidente da Junta de Gueifães e assim, logo que levantado, em caminho para o Central, o único café da aldeia, montava o seu velho mercedes e lá ía dar uma volta completa e demorada pelas ruas da freguesia como um dono a assegurar-se de que tudo estava nos conformes, no seu lugar. Sim, porque mesmo que minguada de gente, a aldeia não era coisa de correr em dez minutos e por isso, se chuvia ou ventava, havia sempre umas sarjetas a mandar limpar, um muro tombado a exigir reparação, uma árvore atravessada a ser removida, uma água a alagar os baixios a ser desviada. Mas também gostava de encontrar alguém e, mesmo sem saír do carro, meter conversa, mais para tirar nabos do púcaro e a pensar na popularidade que renderia votos na reeleição do que por motivo franco.

Mantém esse hábito o Sr. Oliveira e ainda hoje, mesmo que já não todos os dias nem se preocupando agora com sarjetas entupidas ou derrocadas nas cruvas, ainda dá as suas voltas pela freguesia mas, mesmo que as dê pela fresca matina ou a meio da tarde, o resultado é quase sempre o mesmo mas com uma diferença: Tudo continua no mesmo sítio mas gente com quem conversar, e sobretudo bons conversadores, é que já não se encontra e as ruas cada vez estão mais desertas. Alguns reformados que antes ainda se viam a cavar na horta ou a podar umas videiras, com quem seria fácil meter conversa, estão agora pelos lares entretidos com actividades escolares como se voltassem a ser crianças.

Assim, invariavelmente desconsolado, lá chega ao Central para tomar o café, também ele à semana quase deserto de gente, com um ou outro surumbático a ler o jornal de fio a pavio, como o cunhado, o Nando da Micas, que nem sequer levanta os olhos para cumprimentar quem entra ou o Alfredo a foder a pensão nas raspadinhas. Ao fim de semana, sábado ou domingo, sempre se encontra mais gente mas mesmo assim não é como dantes em que era certinho e direitinho que se encontrasse o Neca do Pinho tinha ali conversa para uma ou duas horas mesmo que tantas vezes a repetirem-se histórias e episódios antes contados. Ali no Central ou junto à porta dele onde de propósito parava, gostava de ouvir o Pinho, figura austera e culta de ler jornais e ver telejornais, ainda na sua altiva pose de sargento que foi na tropa. Reconta-lhe pela enésima vez episódios a merecerem barrigadas de riso ou bocas abertas de espanto como a luta que na sua várzea travou com o Adelino, seu confrontante, em que ora por uma questão de águas, ora por uma disputa de passagem de servidão, lá se engalfinharam e puxando do canivete com que nas merendas lascava salpicão e queijo lhe subtraiu meia orelha e só não lhe cortou o pescoço porque o canivete não dava para tanto, mas que tivesse ali à mão a catana ou o foucinhão e seria de um só golpe.

Esta e outras histórias, do Pinho, mas também do Zeferino, do Fanecas e de outros mais castiços da aldeia, gostava de ouvir o Ezequiel que depois, como bom contador que era, lhes acrescentava, aos contos, os pontos necessários para lhes aumentar os enredos dramáticos ou contornos de comédia, conforme lho pedisse a plateia que o cercava quando o Central tinha clientes bastantes.

Mas o tempo passou e o Ezequiel está mais velho, o Pinho e companhia já foram à vida e já não há quem ajude o velho autarca a não só a matar o tempo que tem de sobra como para lhe aumentar o rol de histórias a meterem zangas entre comadres, disputas entre vizinhos, ameaças entre confrontantes de matos e leiras, lutas políticas e partidárias, segredos da sacristia e provocações de adeptos da bola.  Nada! Uma triste tristeza os tempos de agora em que falta gente capaz. Dos mais novos parece que já nada têm que contar e que a vida lhes passa sem qualquer desassossego, sem dramas, misérias ou estados de alma que sejam dignos de ser contados e recontados. E se os há, já não são confidenciados em surdina e sob jura de segredo ao Ezequiel. Quem quiser agora saber destas coisas, de novidades das gentes da aldeia, das sua vaidades e invejas, tem que andar a chafurdar pelas redes sociais, pelo Facebook. 

Ora o Ezequiel Oliveira sempre se teve em conta como pessoa culta e bem formada mas com as novas tecnologias é que nunca passou de um zero à esquerda e já é atrapalhação bastante o ter que usar o telemóvel a fazer e receber chamadas, quanto mais para andar nessas coisas de facebooks. 

Mas é pena, pois o Ezequiel era um bom guardador de memórias mas o tempo, os novos, não se compadecem com estas coisas, com estas virtudes e actualmente já são poucos os bons conversadores e sobretudo os que têm algo para contar. Hoje em dia andamos todos tão igualmente formatados que até parece que feitos da mesma massa e forma. Ora os que destas bases saem desformatos, com algum defeito de fabrico, são, como na cunhagem de moedas, peças raras e valiosas. Difícil e pôr-lhes os olhos em cima.

Tem que se conformar o Ezequiel porque estes são tempos novos e diferentes e quanto a conversas e conversadores, estamos conversados!

29 de novembro de 2023

As virtudes e os defeitos enterrados

Pergunte-se a qualquer um dos vivos da aldeia da Urzeira sobre o julgamento que fazem do Alziro e todos responderão a uma voz que é homem de bem, bom marido, pai e avô. Homem de fé, é assíduo na igreja e pronto a ajudar em tudo quanto for para o bem da comunidade. De tudo quanto é festa na paróquia já tomou parte e já perdeu a conta às vezes que vestiu e despiu opas em procissões das humildes às mais solenes, a levantar lamparinas, a levar a cruz, ou a pegar nas varas do pálio. De dinheiro, já perdeu a conta ao que entregou em peditórios, em oblatas, folares ao pároco, ao Menino pelo Natal, e deixa nos cestos dos ofertórios.

Porque não somos feitos de vidro transparente, o interior de cada alma é um insondável mistério, tantas vezes obscuro e conturbado e daí que raramente tenhamos a capacidade de os vislumbrar, quanto mais perceber. Ora o Alziro, para lá dessa radiação de bom ser humano, certinho e previsível nas suas acções, não raras vezes é um turbilhão de contradições que o fustiga por dentro e se noutros tempos, absorvido ou distraído com o ramerrão do dia-a-dia, do emprego e da família, não fazia mossa nem dava tempo e lugar a discussões consigo próprio, reformado que está agora e disponível a horas vazias, mesmo quando desperta a meio da noite sem sono, a sua consciência tem andado como peregrina às voltas e voltas nos caminhos do que até ali teve como vida, percorrendo tempos de infância, da escola, da juventude e dos namoricos, o tempo na tropa, o casamento com a sua doce Amélia, os filhos, o emprego, etc etc. 

Nesta azáfama, faz contas e interroga-se se qualquer uma das decisões que tomou foram bem ou mal decididas, se cada direcção tomada foi a certa e se agora faria diferente? Pesa ponderadamente as circunstâncias mas decide quase sempre a favor de que fez como tinha que ser feito. Traz à memória um caso ou outro  em que se encheu de coragem, como quando foi às trombas do Alcino por este ter sugerido uma falcatrua nas contas da festa do Senhor dos Milagres, ou se acobardou quando devia ter feito o mesmo ao Marcolino quando lhe chamou batoteiro por, sem querer, ter feito uma arrenúncia num jogo de sueca. Mas considera agora que essas e outras parecidas foram coisas triviais e que não é por elas que fica sem sono quando convém dormir. No resto sempre procurou ser correcto, honrado e bom cristão. Nada lhe pesa na consciência e o turbilhão que o assalta interiomente acaba, afinal, por ser apenas uma ocupação ou mesmo um rever das contas da vida, agora que se aproxima do prazo, não vá ainda ter que fazer algum acerto com o Criador enquanto há tempo.

Num destes dias, e como o faz com frequência, foi dar uma volta ao cemitério e distribuir padres-nossos e avé-marias pelos antepassados e amigos, à campa de seu pai, mas também às dos avôs. Ora em frente à lápide de mármore com o retrato sépia do avô paterno, seu padrinho, que já partira há uma vintena de anos, ficou ali a olhá-lo nos olhos, também a fazer contas do que foram as suas lembranças nas circunstências em que se cruzaram, desde as ligadas à infância até tempos mais à frente e mesmo já quando na parte final da sua vida, encamado, lhe ía desfazer a barba aos sábados à tarde e pela vez derradeira já morto, com o rosto frio e duro. E ficava a remoer as esperanças que aquele avô noutros tempos lhe alimentara, como a lhe pagar os estudos, comprar bicicleta e depois a motorizada e mesmo deixar-lhe algum do dinheiro que se gabava de ter em fartura no Banco. Mas certo é que feitas e refeitas as contas, o Alziro há muito que percebeu que essas promessas tantas vezes feitas sob o efeito de um copito a mais, não passaram disso mesmo, de vãs esperanças e vontades não concretizadas, porque em rigor, e dizia-lho ali silenciosamente frente à sua sepultura, nada disso levou a cabo nem mesmo na leitura do testamento ouviu qualquer referência a alguns trocos a si deixados. Em resumo, colheu uma mão cheia de nada.

Esses incumprimentos do padrinho, que nunca passaram de aldrabices e meras intenções de quem as esquecia depois de uns copos, em boa verdade pouco incomodam o Alziro, porque desde há muito, mesmo com ele ainda vivo, percebera que este nunca passara de um "caga-lérias" e dele nem rebuçado ou brinquedo recebera. Fazia-lhe mais mossa, isso sim, o saber que a sua mãe fora por ele destratada desde criança, numa vida triste de coça, fome e miséria, o que a levou cedo a casar para fugir daquele castigo que, de resto, era o pão-nosso-de-cada-dia em toda a aldeia. Nesses tempos de dificuldades, aos filhos não se davam mimos nem sopas de frango, mas porrada, alguma de criar bicho, e fome mitigada ou enganada com caldo de couves. Isso sim, lamentava o Alziro, porque do resto cedo percebeu que dali não viria nada mesmo que inicialmente alimentasse essa ilusão. Até mesmo quando lhe prometera que tinha conhecimentos que o impediriam de ir à tropa, no dia certo apresentou-se no quartel já convicto que fora apenas mais um arremedo inconsequente do avô. Não se enganara.

O Alziro inquieta-se com estas coisas e sempre que entra no cemitério, defronte daquela gente enterrada, desenterra estas memórias e pergunta a si mesmo porque é que tantos vivos ali vão rezar e assear as tampas daquelas covas frias quando grande parte daquela gente morta não lhes deixou mais que más e duras memórias. Mas talvez para amainar esse mar revolto nos seus pensamentos, procura compreender e aceitar a situação. Afinal num cemitério estão enterrados os nossos antepassados e todas as circunstâncias das suas vidas, algumas boas, muitas outras más, mas todas decorrentes da massa com que foram moldados e nesse derradeito esforço de compreensão, pelo menos ali, naquele lugar que dizem sagrado, tem que haver lugar ao choro dos bons que partiram, cedo ou tarde, mas também e sobretudo ao perdão. Tudo ali está enterrado: a inocência, a bondade, o sofrimento, o castigo e a maldade. Pela fé, e acredita nisso o Alziro, as verdadeiras contas, o final julgamento, essas e esse será feito pelo Criador que tudo vê, submete e julga.

28 de novembro de 2023

A última fornada

Quando passava na sua motorizada a caminho do trabalho e horas mais tarde no regresso, pelo ron-ron do motor sabia o lugar das horas certas, porque era pontual o Ti Alexandrino no compromisso diário do seu trabalho de padeiro. Assim foi durante muitos anos, a amassar farinhas e a cozer pão, do mais branco, fino e macio até ao mais moreno, rude e denso, na forma de pães, moletes, sêmeas, cacetes e broas, tudo passava pelas mão do velho padeiro. 

Um dia, porque os anos fazem-se deles, lá chegou à idade da reforma e apesar dos pedidos do patrão, nem mais uma hora dedicou à casa e à arte. Foi mesmo a última fornada. Veio para casa e passadas semanas já se desprendera da farinha nas roupas e calçado e daquela vida a trabalhar de noite e a dormir de dia. A velha motorizada ou o pequeno carro ficaram meio encostados na garagem e rararamente saíam à rua. A sua nova rotina emparelhou certeira com a de alguns velhos amigos, como o Lúcio e o Manel Couveiro, na conversa fiada sobre o tempo, o futebol e a política na tasca do Rezingão, jogando, ou assistindo como preferia, a umas cartadas, "sueca" ou "copas", até um dominó, e entre uma cevada servida a escaldar e um copo de branco com açúcar, os dias passavam agora mais rápidos que as noites na padaria.

Passaram os dias, semanas, meses e anos, esse rosário de contas contadas, e num instante, com as memórias de padeiro já enevodas pela farinha do tempo, até a tasca deixou de ser ocupação das horas mortas. O corpo, talvez ressentido desse viver ao contrário durante meia vida, derretido pelo calor dos fornos, começou a murchar mais depressa que uma planta sem água num vaso esquecido, os ossos a rangerem de cima a baixo e as pernas a amolecerem, trôpegas como as do Ti Belmiro ao saír da tasca com uma copadas a mais da conta. Resignado, o Ti Alexandrino passa agora os dias por casa, na companhia da patroa e dos gatos. Tem duas ou três cadeiras nos cantinhos da varanda onde passa horas, ao quentinho do sol quando faz frio ou à sombra quando faz calor. Se chove, dentro de casa à lareira ou na sala a ver Gouchas e coxas. Da aldeia, sem as idas à tasca e à missa, apenas vai vendo e acenando aos que lhe passam à porta.

Nunca teve grandes ambições e destas não houve lugar a ilusões. Fez uma casinha quanto lhe bastasse, criou bons filhos e filhas e no resto, padeiro. Tudo nos conformes como tem que ser a vida: nascer, fazer casa, constituir família, deixar sementes, trabalhar, envelhecer e morrer. Não se preocupa com o dia de ir prestar contas ao Criador, porque as teve sempre claras, sem grandes aritméticas, mas pede-lhe, pelo menos, que o não faça acabar o seu tempo numa cama prostrado como um inútil, dependente do mais básico num animal, mesmo que humano, o beber, comer, urinar e cagar. 

Gostaria de morrer ali sentado no cadeirão no cantinho da casa virado a sul, aquecido pelo morno sol de Outono. Ouvira de alguém ou lera em livro que "feliz é o homem que morre quente e calçado". Por ele poderia ser mesmo assim e pouco lhe importa se já hoje ou amanhã. Mas quando Deus quiser!

8 de setembro de 2023

Figuras típicas e castiças e pouco ou nada

Há pelas nossas terras, sobretudo pelas pequenas aldeias, pessoas que pelas suas particularidades se tornaram de algum modo emblemáticas, castiças ou ditas típicas. Seja pelas características físicas e de idade, de linguagem, de profissão ou outras, certo é que adquiriram esse estatuto perante a comunidade, mesmo que em rigor nada fizessem por isso.

Ora nos tempos que correm, tão ligados à importância da imagem e do antes parecer que ser, temos a tendência de colocar essas pessoas num certo pedestal, que mais não seja a modos de exibição, e neste aspecto as redes sociais dão uma grande ajuda, senão toda.

Apesar disso, e dessas pessoas só por si representarem esse estatuto perante os seus concidadãos, nem sempre correspondem a uma valorização decorrente de um ponto de vista de qualidade de cidadania e intervenção cívica no próprio meio onde habitam e têm o seu espaço.

Não faltam, pois, por aí, figuras bem típicas e castiças, que se expostas nas redes sociais colhem uma catrefada de gostos, mas que em rigor nunca nada fizeram de concreto como acto de cidadania ou de participação em todos os momentos comunitários. Nunca fizeram parte dos movimentos políticos, de uma junta ou assembleia de freguesia; nunca integraram uma comissão de festas de arraial ou de igreja; jamais participaram num passeio ou num evento comunitário; nunca estiveram em grupos ligados à paróquia ou ao apoio social; também passaram ao lado das responsabilidades numa associação cultural ou clube desportivo; mesmo quando solicitados em peditórios e campanhas de angariação de verbas para os diversos fins da comunidade, não aparecem à porta ou se sim com as mãos vazias e ainda a soltar cães ou a pregar sermões.

Apesar de tudo, mesmo com todo este estatuto de nada fazerem nem mexerem uma palha a favor da comunidade onde se inserem, continuam a ser tidos como figuras importantes, singulares. Pelo contrário,  aqueles que em todos os momentos foram participando activamente, contribuindo e colaborando na vida comunitária, só porque não tão típicos ou castiços, porventura mais discretos nas suas acções, acabam tantas vezes esquecidos e pouco ou nada valorizados e até mesmo desconsiderados. Esta é uma situação que ocorre em muitas comunidades e mesmo aqui em Guisande temos exemplos concretos de ambas as situações, os típicos que nada fizeram e os que muito contribuiram mas desconsiderados.

Em resumo, devemos valorizar todos os nossos concidadãos, é certo, mas sempre na justa medida e dar mais apreço a quem de facto se destingue pelo que faz e não apenas pelo que parece ser, por mais típico que seja. Acima de tudo devemos, tanto quanto possível, ser justos já que nem sempre o somos e custa-nos a reconhecer os méritos de tantos só porque não são das nossas relações, do nosso clube, do nosso partido ou não vão connosco à bola.

Nesta como noutras situações, fica sempre bem "o seu a seu dono" ou mesmo "separar as águas".


[imagem: D´Évora com Amor]

18 de agosto de 2023

Vamos lá ver...o bife à Zé de Vér

 


Andava eu a encharcar abundantemente as raízes de tudo quanto era árvore de citrinos cá no quintal, e são apenas oito, para depois lhes aplicar o Garbol, quando o telefone estremeceu no bolso. Era o Geadas, a convidar-me para irmos comer um bife ao Zé de Vér, em Escariz, a pretexto de estar ele na reforma, eu de férias e sobretudo para pormos a conversa em dia. - Não tenho nada marcado - disse-lhe - pelo que pode ser. - Mas é melhor reservar, porque estamos em férias e os emigrantes querem passar por lá como quem passa por Fátima, a marcar ponto. - Ok! Então liga! É melhor, é!

Lá liguei, e já por especial favor, por ser apenas mesa para dois, e à conta de que disse que era primo de gente que por lá é tida em conta, lá ficou reservada a mesa para as 19:30 horas. -Mas não se atrasem! Recomendou alguém do lado de lá. Não nos atrasamos, porque apanhou-me o Geadas pelas 19:00 horas pelo que ainda não era a hora marcada na capela de Ver, que vai ter festa este fim-de-semana, e já estávamos a estacionar o Mercedes. Cá fora, já alguma malta a aprontar-se, outros à espera de gente para compor grupos e encontros marcados.

Quem frequenta esta popular casa de pasto, uma designação que nos faz pensar que somos ovelhas ou gado bovino, mas que é antigo e bem tradicional, sabe que por ali não se esperam luxos, guardanapos de pano com monograma bordado, nem mesas separadas nem outras merdices de gourmet onde o bife servido no tamanho de um selo sai a 500 euros o quilo. Para malta dessa finura é melhor nem passar à aldeia, quase sempre a cheirar a vacaria ou a silagem. Assim, dali a nada  fomos arrumados na ponta da mesa onde ao lado já se aviava um casal a batalhar num bife maior que a travessa. 

Agarramo-nos a umas azeitonas galegas, pequeninas mas saborosas. Entretanto, acomodados mais alguns esfomeados, lá fizemos o pedido: - Um bife grelhado para os dois! Para beber, porque fazia calor, uma caneca das grandes de maduro branco, bem fresquinho. Dali a pouco chegou o bife, que parecia um chapéu de três bicos, grande, espalmado, com boa cor e a cheirar a grelhado. Tenro e passado no ponto.

A acompanhar, umas batatas fritas, toscas, cortadas à foice, mas saborosas. Sem verdura, apesar de por esta época ser tradição feijão de vagem, como no Inverno são os grelos. Mas importava dar conta do recado do bife e as vagens verdes e viçosas, cultivadas naquelas hortas generosas, ficaram para outros, até porque as tinha comido em casa, ainda ao almoço.

E lá fomos comendo e pondo a conversa em dia. Ao nosso lado, saiu o casal  já farto e ainda a levar para casa. Logo de seguida, toalha de papel na mesa e mais uma dupla pronta para o mesmo. Entretanto a sala foi-se enchendo de grupos, com muito mulherio, novas e velhas, ao contrário do que era habitual noutros tempos, quase exclusivo para machos. Por ali parecia um coreto com uma banda de música desafinada, mas em vez das bocas nos trombones, trompas e clarinetes, a encherem-se de garfadas de bife de arouquesa e canecadas de vinhaça.

O bife lá foi desaparecendo, como o gelo no Pólo Norte, e pouco sobrou, apenas umas pequenas aparas que se trouxeram, porque cá em casa o cão pesa 50 quilos. Ainda se pediu mais meia porção de batatas cortadas à foice e foram-se.

Passamos ao lado da sobremesa, que seria, como de costume, talhadas generosas de queijo e de marmelada, numa combinação de Romeu e Julieta, cortadas pela mesma foice que cortava as batatas e apenas se pediu café, gostoso, por sinal. 

Já no balcão do café o Geadas não quis que eu pagasse e parte que comi e na velha tradição de que quem convida paga (coisa que não se aplica aos modernos casamentos), pelo que lá pediu a conta, feita ali mesmo em cima do jornal, sem prova dos nove ou real, mas nem foi preciso porque por 30 euros comemos um bife do tamanho da fome de quatro trolhas.

Lá regressamos, nas calmas, porque o litro de vinho branco fresco e de boa qualidade, tinha ido todo. E pusemos mais alguma conversa em dia, e só nos lamentamos de já não sermos gente nova e por isso a importar haver algum regime e cuidado com a boca e exercício (e por isso hoje de manhã já corri 15 km), porque não fosse assim, marcávamos, como alguns que cá conhecemos, mesa diária no Zé de Ver.

Mas, passe o exagero, até ver, come-se bem e relativamente em conta no Zé de Ver. É claro que o bife é mesmo assim, uma lotaria, e porque há gado como as pessoas, ruins e nervosas, por vezes a coisa dá em tudo menos em tenrura, mas compreende-se. Mesmo o bacalhau, que anda caro comó caralho, por ali é quase sempre grande  e bom, seja cozido, frito ou grelhado.

O serviço, as instalações e a mobília não são, seguramente, de 5 estrelas, e há por ali mais barulho que num festival de heavy metal, mas talvez mereça uma meia estrela, e mesmo assim, porque a comida é de 6 estrelas,  não faltam por ali clientes a encherem a tasca, entre gente pobre e remediada, que também têm direito a meter o dente na xixa. Comem por ali doutores e engenheiros,  mesmo que naquela de para fotografarem o bife e dizerem nas redes sociais que já lá foram, a modos de quem vai a Paris ou a Punta Cana. Alguns desses doutores são mais pobres que os pobres que por ali comem, mas isso já são outras histórias, lendas e narrativas, como costuma dizer o Joel Cleto.

Chegados a casa, concluímos que a conversa voltou a ficar como dantes, desactualizada, e por isso um dia destes, quiçá pela Santa Eufêmia (15 de Setembro), vamos ter que voltar à casa de pasto do Zé de Vér, mas dessa vez talvez com o bife frito e de cebolada, como manda a tradição da Santa Eufêmia. Talvez a conversa volte a ficar em dia. Talvez!

4 de agosto de 2023

Santa trindade

Era pequena a aldeia de Guidães e quem se pusesse bem no coruto do seu mais alto monte  abraçava-a de lés-a-lés a com o olhar. Ao fundo, a serpentear o vale, a ribeira generosa de águas a regar pelo pé os densos milheirais e a fazer rodar as mós dos moinhos do Quintas e da Cesteira. Mais ao lado, por onde o sol se esgueira ao fim de todas as tardes, lá estava a igreja matriz, branquinha como um ovo, com o sino velho a cantarolar o meio-dia. Olha ainda a esguia ponte do Padrão, o cruzeiro dos Três-Caminhos,  a ermida de Nossa Senhora do Desterro pousada numa das duas colinas do Outeiro Grande, estas dois seios revestidos de castanheiros e carvalhos alvarinhos.

Era, pois, maneirinha a aldeia e não surpreeende que toda aquela gente que ali nascia, crescia e fazia pela vida até à hora de se entregar ao Criador, se conhecessem mutuamente como se fossem da mesma família. Mas isto, claro, entre os mais velhos, porque para a criançada, mesmo que pequeno aquele mundo rodeado de soutos e pinhais, era um constante segredo a desvendar, como o descobrir de um ninho de melro entre as espadas de um fiteirão ou de uma carriça no buraco de um muro. 

Era assim também para o Custodinho, que quando calhava acompanhar a bisavô Dina em visita à filha ao lugar da Azenha, mesmo à saída de Guidães, parecia-lhe que pelos seus passos pequeninos, andava a dar a volta ao mundo, tanta era gente, coisas e sítios que nunca conhecera nem por onde passara. Por conseguinte, para além do caminho diário para a escola no lugar da Torre e das frequentes idas à igreja para a catequese, terço e missas, o mundo do Custodinho era o seu lugar, o seu casario, os seus caminhos, os matos e campos próximos. Esses conhecia-os como as suas mãos e os pés quase sempre descalços encresparam-se a percorrê-los todos os santos dias, até mesmo aos domingos nas suas brincadeiras com os da sua igualha do lugar. Conhecia, por isso, toda a gente do lugarejo, desde os mais novos aos mais velhos, que saudava pelo próprio nome quando com eles se cruzava. - Bom dia Ti Laura, dê-me a sua benção! - Boa noite Ti Alfredo! - Bom dia! Boa noite, Deus te abençoe Custodinho! Vai com Deus, rapaz!

Muito do seu pouco tempo livre, do que sobrava da escola, dos deveres e dos trabalhos da casa, matava-o o Custodinho com os filhos da Ti Arminda, o Alberto, um pouco velho que ele, já saído da escola e com os pés fora da catequese porque com a comunhão solene já feita, e ainda o Tonito, mais ou menos da sua idade, colega de escola e de carteira.

Viviam os dois irmãos com a mãe, mulher alta e magra, de rosto triste, enfaixada numa roupa negra como a noite. Moravam os três numa casita térrea, com uma pequena meia cave escura e húmida, voltada para as traseiras, onde morava uma salgadeira que a bem dizer poucos porcos salgou mas que pelo Inverno acomodava uma caixa de sardinhas que ao jantar compunham duas batatas envoltas em couves. Mas se o casebre era pequeno e escuro, era amplo e airoso o quintal em toda a volta, disposto em várias e estreitas leiras desniveladas entre si, repletas de muitas e boas árvores de fruto. Macieiras, pereiras, ameixoeiras, pessegueiros, laranjeiras, tangerineiras, etc, etc. Até uma enorme nogueira brava e um imponente castanheiro que lá pelo fim do Outono abria-se à fartura, com ouriços arreganhados a mostrarem dentes sadios e brilhantes. Até mesmo os muros e cômoros daquelas leiras eram generosos, com morangueiras e amoreiras entre os quais, logo por meados da Primavera, cantavam grilos à porta dos seus buraquinhos.

O Custodinho, naquela amizade e companhia frequente com os dois filhos da Ti Arminda, tinha naquela casa e naquela horta toda a generosidade da natureza e apenas com uma maçã de Santa Isabel, enchia a pança e só com vontade de guloso é que amanhava o condeito que a mãe lhe punha no prato ao jantar Mesmo na casa, em tempos em que a televisão só na tasca do Quim da Lebre, tinham os dois irmãos muitos livros, incluindo de banda desenhada, que lhes eram oferecidos de vez em quando, diziam, por um primo mais riquito, que vivia para os lados da Cruz Velha, a meia dúzia de léguas dali.  

Devorava, pois, o Custódio, todas aqueles aventuras de ver e ler e só saía dali quando ouvia no largo a mãe a barregar pelo seu nome que lhe soava ao habitual “põe-te já em casa!”. Mas imbuído daquele manancial de índios e cow-boys, sempre que tinham tempo ao Domingo à tarde, lá improvisavam um “filme” a condizer como se aqueles matos e pinhais do lugar fossem um far-west. Outras vezes, eram “filmes” de espada e arcos de setas, à laia do Robin dos Bosques, em que o mato da Touça era a Sherwodd e o barracão do Ti Miguel o castelo de Nottingham, ou então os Três Mosqueteiros com lençóis a fazerem de capas.

Vivia, pois, naquela amizade sadia o Custodinho com os filhos da Ti Arminda e em tudo tão absorvido que não dera conta que nunca lhe vira o marido. Mas um dia, à noitinha, comido o condeito e acabado de rezar o terço, ouviu a mãe a falar com o pai e reteve esta conversa: - Ó Manel, então é verdade que o homem da Ti Arminda já saíu da prisão? - Disse-me a São do Lano, que já o viu um destes dias a entrar na casa dela, mas que sai antes de acordarem as galinhas e volta noite cerrada para que ninguém o veja. 

O Custodinho ficou aparvalhado com esta novidade e não a entendeu logo mas no dia seguinte, nascido o sol, pôs-se em casa da Ti Arminda e meio em segredo perguntou colado às orelhas dos irmãos: - Vocês têm pai? Eu nunca o vi! Os irmãos olharam-se tristonhos e numa lição recomendada disseram que a mãe não queria que eles falassem no pai. - Mas onde é que ele mora? - perguntou o Custódio. Que não sabiam e que nunca o viram nem queriam ver.

Os dias passaram e no lugar não se falava noutra coisa até porque entretanto o homem, que ninguém conhecia, começou a acordar mais tarde e a vir para casa mais cedo, agarrado a uma bicicleta, que nunca o viram montar e em breve toda a aldeia era um mexerico, do lavadouro do Cimo da Aldeia até ao fundo do lugar dos Lameiros.

Receoso de dar de cara com alguém que esteve numa cadeia, deixou o Custodinho de procurar os amigos. Certo é que passadas algumas poucas semanas, ainda antes do Natal, chegou-se à casita  mas encontrou-a fechada. Ó Tonito! Ó Beto! Ainda rondou do lado de fora o quintal voltado ao lugar mas não viu sinais de ninguém nem mesmo quando a rondou pelas traseiras do lado norte. Até o cão, o Jani, que sempre que o farejava lhe vinha lamber as pernas, não deu de si, nem xús nem mús. Ficou admirado e sem compreender, mas no dia seguinte ouviu o lugar a comentar que a Ti Arminda e os filhos tinham saído da casa, que era de renda, e que nudaram não se sabe para onde. Talvez para a beira de uma irmã que tinha a Arminda em Duas Igrejas, outros que para mais longe, para a terra do homem, que os levou. 

O Custodinho naturalmente ficou por esses tempos triste e encabucado, já sem a habituada companhia dos irmãos e dos seus livros de aventuras e sem a fartura do quintal. Entretanto, nesse abandono repentino, não tardou que a casa entrasse em ruína e a horta apossada por silvas e tojo e, à falta de cuidado, a morrerem as árvores e os já minguados frutos eram assaltados pela criançada ainda antes do tempo de maduros. Mais tarde o terreno foi vendido ao Zé da Aurora e tudo arrasado para dar lugar a uma casa tipo franciú. Da velha casa e do quintal, hoje já só a memória mas até ela deslavada pelo tempo.

Os anos passaram e o Custódio, já homem e pai de filhos, continuando a viver no lugar, em rigor pouco descobriu do paradeiro daquela santa trindade que fez parte da sua infãncia. Foi, de quando em vez, ouvindo uns zuns zuns de que o Alberto estava a viver longe dali, numa certa terra, mas que bem de vida pois tinha uma oficina automóvel. O Tonito, um pouco mais lerdo, esse seguiu os estudos da nobre arte de pedreiro e trolha e ía andando. A Ti Arminda, que já em criança lhe parecia velha, teria naturalmente morrido, mas não antes sem ter dado mais um irmão ao Alberto e ao António, que o ex-prisioneiro não perdeu tempo a engendrar. Quanto a ele, de tão habituado daquela vida de prisão, que ninguém sabe ao certo por quantos anos, parece que logo depois da mudança e de fazer um filho à triste da Arminda, voltou a pôr a mão no alheio e regressou para trás das grades. Terá, naturalmente, já alcançado a liberdade plena que a morte a todos concede. 

Hoje em dia, quando não lhe vem o sono, põe-se a recordar o Custódio naqueles tempos e dias e nos muitos episódios felizes vividos com os seus amigos. Se pela infância não via a Ti Arminda para além de uma mãe tristonha mas zelosa dos filhos, percebe agora que essa negrura do rosto e da roupa tinham uma semente, uma razão de ser bem mais profunda, e se nessa altura lhe parecia obscura ou não a compreendia, era agora clara e límpida.

A vida é assim e nem sempre os nossos puros olhos de criança veem para além da penumbra das coisas alegres e felizes. Talvez por isso, percebe agora o Custódio, nunca viu naqueles dois olhos uma centelha de brilho e de alegria, nem mesmo nos momentos em que nas brincadeiras, à sua vista, ria e cantava com os seus dois filhos. Nem mesmo nos dias em que o lugar ou a aldeia estavam em festa e estourava-se em foguetes.

Que descanse em paz a Ti Arminda e que o Alberto e o António, mais o irmão serôdio, fruto da liberdade, se vivos, que hão-de ser, que sejam felizes e orgulhem-se da mãe, que sozinha os criou e os manteve naquela ilusão inocente de que o pai ausente não fazia falta porque ela era mãe mas também pai. Uma santa trindade materna. Mãe e filhos de espíritos santos.

1 de agosto de 2023

Questionário para frequentadores de festas de aldeia

Um estudo de mercado é uma pesquisa sistemática e detalhada que tem como objetivo analisar e compreender o ambiente e as condições em que um determinado produto, serviço ou ideia será comercializado. Ele é realizado para obter informações relevantes sobre o mercado-alvo, os consumidores, os concorrentes, as tendências, as oportunidades e os desafios que possam afetar o negócio em questão. Essa análise é fundamental para auxiliar na tomada de decisões estratégicas de empresas, empreendedores e instituições governamentais e até mesmo uma Comissão de Festas.

Assim, importará, talvez, a quem organiza uma festa de aldeia saber o pensamento da maioria dos potenciais visitantes. Daí e com esse propósito poderá ser feito um questionário junto das populações para apalpar o pulso à coisa e para em face dos resultados ser possível tomar as melhores decisões e assim garantir o êxito da mesma coisa.

Fica, pois, de seguida, uma versão de um questionário possível, com apenas 15 questões de resposta múltipla para não se perder muito tempo a responder:


Questionário para frequentadores de festas de aldeia


1 - Costuma ir à festa anual das aldeias?

A - Sim! Eu vou a todas!

B - Mas ainda se fazem? É dinheiro fodido à toa!

C - Não! Prefiro ficar no sofá a ver a CMTV ou a Fanny.

D - Vou, mas contrariado, só porque a mulher/marido obriga.


2 - Quando vai, entre primeiro na capela ou igreja para rezar aos santos?

A - Primeiro vou à tasca mamar uma bejeca.

B - Vou sempre. Rezo uma oração e depois siga a diversão.

C - Não sei rezar, mas vou ver as flores dos andores. Tão bonitas!

D - Vou rezar, mas não ajuda quando lá fora o Quim Barreiros canta o "Chupa Teresa"


3 - Gosta mais de cantores pimba ou bandas de baile?

A- Gosto mais das bailarinas.

B- O que vier morre.

C- Gosto mais da Cuca Roseta. Aquele traseiro...

D- Prefiro os "Irmãos Leais"


4 - Gosta mais de ficar a assistir ou dançar?

A- Gosto de ficar sentado a ver a banda.

B- Festa sem dança não presta.

C- Eu é mais tasca.

D- Fico só a ver o ambiente e as cenas.


5 - Se fosse parte da Comissão de Festas, como é que gastaria o dinheiro?

A- Primeiro fazia obras na capela/igreja. O que sobrasse era para a festa.

B- Estourava-o todo em foguetes.

C- Contratava os Rolling Stones.

D- Contratava o Padre Borga.


6 - Acha importante que uma festa de aldeia tenha uma Banda Filarmónica?

A - Acho que não pode faltar, pois faz parte da tradição.

B - Dispenso! É sempre a mesma coisa e sempre a mesma banda. Pó. pó, pó, pó!.

C - Se não tiver banda não dou os meus 5 euros de oferta.

D - Adoro! A missa e a procissão solene não seriam a mesma coisa sem a banda.


7 - Se fosse da Comissão de Festas, quem contrataria entre estes 3 artistas, o José Malhoa, o Quim Barreiros e a Mónica Sintra?

A - Nem uns nem outros, antes pelo contrário.

B - Preferia o pequeno Saúl, mas ele agora está grande.

C - Você faz cada pergunta difícil...contratava os 4!

D - Se a Junta de Freguesia e o Mestre da Cor ajudassem contratava os 5 e ainda o Augusto Canário, a bomba da Ana Malhoa e ainda os 3 Carreiras.


8 - O que é que mais aprecia numa procissão solene numa festa de aldeia?

A - Os andores, tão bonitos com flores, lenha de poda, casca de palmeiras e rosas azuis.

B - Gosto de ver os homens de calção e sapatilhas a levaram bandeiras e lanternas. Ficam tão bonitos com aquelas opas vermelhas.

C - Gosto de ver as criancinhas mascaradas de três pastorinhos.

D - Gosto de ver a Banda a passar a tocar a marcha da "Transfiguração" a respirar o incenso.


9 - Costuma participar na missa solene?

A - Raras vezes, pois são sempre em cima do meio dia. Deviam ser pelas 8 horas da matina.

B - Não posso falhar. É o momento mais significativo da festa.

C - Gosto de ouvir o pregador a pregar a pregação.

D - Vou, pois gosto daquele ambiente solene com muita fumarada de incenso e foguetes a Santos. Até me vêm as lágrimas aos olhos.


10 - Costuma pagar a sua oferta à festa antes ou no dia da mesma?

A - Sou muito esquecido pelo que pago quando é feito o peditório.

B - Pago mesmo na última hora. É tradição da casa.

C - Pago só depois de ver se a coisa correu bem.

D - Se puder faço-me esquecido e não apareço para pagar, pois se o dinheiro sobrar eles já não vêm chatear.


11 - Se houver saldo positivo como deve ser aplicado?

A - Todo para o padre.

B - Deve ser gasto na conservação da capela/igreja.

C - A Comissão de Festas deve fazer uma jantarada com marisco e leitão, pois merecem.

D - Deve ser passado para a Comissão do próximo ano na condição de ser aplicado em foguetes.


12 - Na missa e procissão solenes é importante convidar pessoal da Junta e da Câmara?

A - Os da Junta vêm quase sempre a não ser quando vão para o Algarve. Já da Câmara, depende da importância eleitoral da terrinha. Mas é importante porque o respeitinho é muito bonito.

B - Não ligo a isso. Aos olhos de Deus somos todos servos inúteis.Por mim nem me incomodava a convidá-los.

C - É importante, pois são gente importante, e fico sentido quando o presidente da Câmara vai à freguesia vizinha e põe fotografias no Facebook e não vem à nossa. Lá de casa, são menos 5 votos.

D - Acho que não! No fundo é só protocolo e  é tudo uma feira de vaidades. Preferia que viesse o presidente da Confraria do Chouriço Bem Cheio.


13 - No geral o que mais gosta na festa da aldeia, a parte religiosa ou a profana.

A - A parte religiosa deve ser sempre a mais importante.

B - Por mim acabava-se com a parte religiosa. Só pimbas e comediantes a dizer asneirolas.

C - Deve haver um equilíbrio pois há lugar para ambas.

D - Já não há respeito pela parte religiosa. O povo quer é farra e comes e bebes. Uma vergonha!


14 - Acha que a Viagem Medieval prejudica as festas de aldeia quando coincidem?

A - Claro que sim. Mas o que é que se há-de fazer? Acha que isso os incomoda?

B - Não! Não faz mossa e que me importa a mim que vão para lá pagar cerveja a preço de Barca Velha, comer  sandes de porco a preço de Filé Mignon e tremoços como se fossem camarões?

C - Não aquece nem arrefece. De resto quanto mais gente mais pó e cheiro a suor e a mijo.

D - Por mim troco a nossa festa pela Viagem Medieval. Por mim aquilo duraria 13 meses por ano.


15 - Finalmente, uma só palavra que defina as nossas festas de aldeia?

A - Lindas!

B - Tradição!

C - Vaidades!

D - Pró ano há mais! (desculpe mas só sei contar até dois).

14 de julho de 2023

A Ti Zulmira

Nascida, criada e casada no terrão viçoso que é a aldeia de Guilharães, a Ti Zulmira já marcha a caminho dos noventa, com oitenta e sete bem feitos, precisamente no dia da festa de S. Miguel, patrono da terra. Nasceu, pois, ali mesmo debaixo da latada de americano que bordejava a ribeira dos Pousados, de onde já pendiam gordos cachos de americano de bagos bem pintados. 

A sua saudosa mãe, então habituada pelo parir de uma rebanhada de filhos, levara até à última a gravidez e quando se lhe rebentaram as águas andava ela por entre o milho alto a regar numa manhã bem fresca desse Julho, sarapintada pela caruma do pendão das bandeiras. Sentindo aquele manancial a rebentar dentro de si, só teve tempo de se aninhar num largo lençol que trouxera, não fosse o diabo tecê-las, que abriu sobre e erva ainda orvalhada, e mandar recado urgente pelo Minguitos, que trouxera consigo a vigiar três ovelhas a pastar. Que fosse depressa, bem ligeiro, a correr à Leirosa a casa da Ti Bernarda. Que lhe viesse ajudar!

O rapazito, que se entretinha com o rodízio de bogalhos na borda do rego da água, percebeu a aflição da mãe e como um galgo disparou veloz pelo caminho em direcção ao cimo do lugar e dali a pouco chegava já acompanhado da velha, parteira experimentada da freguesia e arredores, levezinha, de mãos finas, parece que já talhadas por Deus para penetrar naquelas nascentes quentes. Talvez por isso gozava da alcunha de “mãozinhas” o que não a incomodava pois bem sabia da importância que tinha para aquele rebanho de mulheres parideiras da aldeia. 

Mas isto é a gente a contar, porque a Ti Zulmira, tal como a sua mãe, que Deus já a tem, nunca teve em tamanha conta o dar à luz fora da cama. De resto nem era novidade na freguesia e num tempo em que os cuidados de saúde não eram tidos nem achados por aquelas e outras  bandas, as mulheres pariam com os mesmos cuidados que os animais. Aceitavam essa condição sem qualquer esmorecimento porque lhes era instintivo. Além do mais, viam nela a mesma naturalidade com que assistiam ao nascimento dos filhotes das vacas, dos porcos e das ovelhas.

Desse nascimento térreo, agreste, quase animal, impregnado de pólem do milho e dos aromas das uvas e da erva fresca, a Zulmira foi sempre vigorosa, saudável, mesmo que atingida com as habituais maleitas que, como o sol, quando vinham era para todos e todas, como o sarampo, a varicela, o tesourelho e outras que tais, mas nada que as rezas, talhaduras e mezinhas da avô Tomásia não remediassem. Era a farmácia viva de Guilharães e no tecto de soalho da loja da sua casita escura pendiam ramos secos de tudo quanto era erva curadeira. Lá estavam a erva-de-s.roberto, o louro, a cidreira, o limoneto, a cavalinha, a gilbardeira, as urtigas, as malvas, a camomila, o hipericão, etc, etc.

A todas essas pragas a Zulmira resistiu e de cada uma saía mais forte, corada e viçosa. Na escola, então apenas para alguns rapazes, mal teve tempo de aprender a escrever o seu nome e as aulas tinha-as no campo e à volta da casa com as lições bem administradas pelo pai Belmiro e pela mãe Teresa. As disciplinas eram várias e seguiam os critérios das estações e das lides do campo. Cavar, sachar, mondar e regar , eram pai-nossos de todos os dias para além das lides da casa como limpar, arrumar, remendar, costurar, tecer, fazer as camas, tratar do gado, ordenhar vacas e ovelhas, matar galinhas e tudo quanto no galinheiro mexesse e tivesse bico. Todas as lições de cada dia conduziam a uma finalidade única e básica , a de semear para colher ou de sobreviver para viver.

Mulher assim, bem licenciada nas coisas da terra, ainda por cima de boa estampa, trigueira de pele, de uns profundos e brilhantes olhos castanhos e cingida de cabelo farto, cedo foi colhida pelo Hilário dos Azevedos e ainda não contava vinte primaveras quando uniram as mãos e as vidas defronte do padre Tobias. Seriam sombra um do outro, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença.

Dessa vida, que continuou ligada à terra, os trabalhos e canseiras duplicaram porque o Hilário não dava descanso aos instintos progenitores e a Zulmira não os recusava pelo que conforme a natureza assim o consentisse, os filhos foram nascendo daqueles entranhas a um ritmo certinho e como se não bastasse até gémeos teve, o António e o Miguel.

O tempo foi passando e somadas as festas ao S. Miguel e os foguetes que a ele estouravam eram também para a Zulmira.

Louvado seja o Nosso Senhor Jesus Cristo! Apesar dessa constante labuta para manter a casa e os filhos sadios e limpos, com canseiras e sacrifícios para que nada lhes faltasse, mesmo em tempo de vacas magras, o tempo foi passando, ela o Hilário envelhecendo e perdendo o vigor do tempo primeiro e os filhos a crescer e a abandonar a casa, para eles próprios continuarem aquele ciclo bíblico do crescei e multiplicai-vos. Como amostra da dúzia da prole, ficou a Cacilda, uma das mais velhas que, avessa a rapazes, foi ficando por casa como galinha choca e é quem agora vai cuidando da mãe Mira. Ainda, dedicada, cuidou do pai, mas este, teimoso em não largar o tabaco, acabou por partir bem cedo, pouco depois dos sessenta, mirrado dos pulmões.

Chegada  aqui, vive pois, a Ti Zulmira naquele casarão velho que herdou dos pais, ajudada por uma filha pouco mais nova que ela. Mas vive em constante sofrimento e em todas as orações e terços que reza de fio a pavio, invoca todos os santos e santinhos, a começar pelo da porta, o S. Miguel, para que Deus a leve deste mundo porque já nada mais tem nele a produzir ou, pior do que isso, já nada mais poder fazer. Bem se tenta a ir pelo menos à horta mexer nas couves, nas favas, alfaces e tomates, ou ao jardim endireitar os crisântemos, mas as pernas e todos os ossos de tão castigados por uma vida dura de casa, campo e mato, que parecem os gonzos gastos e desconchavados das portas velhas dos aidos, não ajudam ao calvário dos tempos derradeiros e até suplicam por descanso. Mas com esta idade e artroses até o descanso cansa. Toma a horas certas uma mão cheia de diferentes comprimidos, para todos os males antigos e modernos e já não tem, de há muito, a avô Tomásia para lhe valer com as velhas medicinas. Agora é viver e gemer até quando Deus quiser e tomara que não se atrase na decisão.

A Cacilda e os demais filhos bem que a andam a azucrinar com a ideia de que ela estaria bem melhor no Lar de Idosos da vila, que teria companhia de gente como ela, estaria bem cuidada e com médico e enfermeira a fazerem a ronda diariamente. Mas que não, que nem pensem em tal coisa. Seria melhor que a atirassem ao fundo da ponte do Padrão onde a esperavam os penedos lavados pela ribeira.

Os filhos bem tentam fazê-la compreender que seria melhor para ela, e naturalmente para eles porque não têm vida para fazer de anjos da guarda dia e noite, mas a Zulmira apesar de entender para si o acerto dessas recomendações, porque mesmo que com uns lapsos de memória que dizem ser de um tal alzheimer, ainda não perdeu de todo o juízo, mas vai-lhes dizendo que será por pouco tempo e que já não chegará aos noventa, como chegaram os avós, como se não acreditasse na robustez das cepas ancestrais.

Não sabemos como acabará a história da Ti Zulmira de Guilharães, e sempre que por ela perguntamos à Cacilda, responde que está a sumir-se de dia para dia.  A ser assim, um dia sumir-se-á de vez, que mais não seja pela fatalidade da lei da vida, mas sabemos que o que não faltam por aí, sobretudo pelas nossas aldeias, são  muitas zulmiras, que desde que paridas em condição felina, cresceram e viveram de forma arreigada às canseiras da casa, da família, dos animais, do campo e do mato. Nunca tiveram outra realidade para além desse horizonte e mesmo já no fim da curva do caminho da existência, rendidas à incapacidade do corpo e da tristeza da alma, não querem abandonar as paredes que durante uma vida confinaram a sua existência, nem renegar a essa condição primordial, a de que a morte deve estar em harmonia com o que foi a sua vida. Dura e penosa, mas digna até ao fim.

Nós, os mais novos, os filhos e filhas das ti zulmiras, porque já nascidos noutras palhas e crescidos em menos apertos, e mesmo com mentalidades moldadas pela formação e modos de vida modernos, não estamos com a vela bem virada ao vento que empurra o barco dos nossos pais quando velhinhos e decrépitos e vemos nessa forma de ser apenas uma teimosia e casmurrice que atrapalham as nossas vidas, mas sem sabemos lá o que verdadeiramente lhes vai na alma. Para o compreender temos ainda que percorrer e subir o caminho que falta até ao miradouro de onde é possível alcançar esse pleno vislumbre. Mas, que mais não seja, por imperativos da ordem natural das coisas, será fatalmente sempre tarde para acertar as agulhas. A vida não se compadece com preciosismos ou desacertos de ritmos na dança.

A morte, com mais ou menos aparato, virá sempre resolver os dilemas e fechar contas, que mais não seja pela forte razão de que, como diz o ditado, o que não pode ser resolvido, resolvido está.


A. Almeida – 14 de Julho de 2023

12 de junho de 2023

Tascas e tabernas, branco e tinto

Apesar de ainda ser possível uns vislumbres delas, à conta de gente que resiste na idade e no ofício, talvez já não por necessidade mas por mera ocupação e distracção dos longos dias de quem vive só, e porque há sempre um ou outro cliente desocupados em que a pretexto de um copo de vinho se trocam dois dedos de conversa, as antigas tascas, tabernas ou mercearias das nossas aldeias, que na maior parte dos casos eram a mesma coisa, estão fatalmente condenadas ao desaparecimento. Devido a novos hábitos de consumo, novas culturas de socialização, concorrência de outros espaços com condições incomparáveis de modernidade, em tamanho, diversidade, luz e cor, mas também por um excesso de zelo de autoridades que se foram estabelecendo para meter sem critério no mesmo saco questões de higiene e segurança alimentar mas também colheres de pau, tachos e panelas e cozinhas onde não brilhe a chapa inox. Já na década de 1980 surgiram como cogumelos os cafés e snacks-bares, com ares de modernidade e deram uma valente machadada na árvore das patacas que até essa altura eram as tabernas e tascas.

Nalguns centros históricos de algumas das nossas cidades, mesmo que remodeladas e com serviços mínimos nos padrões ditados pelas autoridades, ou com estas a fazerem vista grossa, porque nestas coisas raramente se come pela mesma medida, ainda vão subsistindo pontos ou lugares emblemáticos procurados pelas multidões de turistas, como curiosidades ou exemplos de um certo passado castiço e bucólico. São uma espécie de amostras vivas num arquivo morto, mas mesmo essas aos poucos vão morrendo em grande parte pela pressão imobiliária que se faz sentir nas zonas históricas, porque, apesar do Governo pretender colocar um freio na actividade, não tanto por razões objectivas mas como assomo de subjectividade relacionada a políticas de habitação que não servem a gregos nem a troianos, fosse a coisa navegando ao sabor dos ventos e marés e grande parte das nossas cidades mais turísticas estariam quase na sua totalidade transformadas em alojamentos locais, como modernas minas que rendem ouro em que um quarto minúsculo e uma casa de banho trapezoidal, onde não se podem abrir os braços nem esticar as pernas, é pago a preço de uma sofisticada suite em muitos hotéis.

Nas aldeias mais remotas, onde ainda não chegaram os carrões do pessoal da ASAE, e fica longe para compras regulares no centro das vilas, ainda escapam algumas pequenas mercearias e tascas à moda antiga, mas mesmo aí são raridades porque de um modo geral por ali não há moradores, quanto mais clientes.

Cá por estas bandas, mesmo na nossa pequena freguesia, chegaram a existir em simultâneo uma meia dúzia de mercearias que também eram tascas ou tabernas, onde tanto se aviava um quilo de arroz, um pau de sabão e uns quinhentos gramas de broa, como um quarteirão de vinho a acompanhar com umas azeitonas ou uma talhada de queijo. No balcão corrido onde imperava a clássica balança de braços ou de ponteiro da António Pessoa, L.da, aviava-se a mercearia mas também os copos e os petiscos. Para casa levava-se as compras para a semana, sobretudo de coisas que os campos e as hortas não produziam, mas também, quase sempre, pequenas pielas ou grandes bebedeiras. O pagamento em dinheiro era arrastado e valia o livro dos calotes para tomar nota da contabilidade de cada cliente na esperança de que pelo final do mês, com o recebimento da quinzena de leite ou de outra receita, fosse dado algum por conta. Por sua vez, o rigor e  aprumo das contas em comunidades interiores onde abundavam a ileteracia e o analfabetismo,  dependiam sempre da honestidade dos merceeiros. E se esta fosse pouca, valia de nada a prova dos nove com que no final se confirmavam as contas do deve e haver.

Aos Domingos as tascas e tabernas enchiam-se de homens a jogarem cartas ou o dominó, e na rua defronte, as malhas, ou simplesmente a conversar enquanto o tasqueiro andava num vai-e-vem atarefado e constante a aviar quarteirões e quartilhos de branco e tinto, servidos directamente dos pipos. Em garrafa só mesmo as cervejas, as gasosas e os pirolitos.

Mesmo os consumíveis líquidos como azeite e petróleo eram comercializados a granel, assim como pedras de carboneto para os gasómetros ou outros produtos similares. As mercearias eram também, em grande medida drogarias. Nalgumas até se servia o alvaiade, o óxido de ferro e óleo de linhaça para preparar a tinta com que tudo se pintava.

Da mercearia mesmo a alimentar, pouca tinha embalagem própria e quase tudo era vendido a granel e aviado em sacos de papel grosseiro. O plástico não era novidade, porque então há muito inventado, mas era coisa ainda não corrente. Mesmo azeitonas ou chouriços saídos das oleosoas latas, eram enrolados em folhas de papel vegetal. Queijo, marmelada, biscoitos, bolachas e outras lambarices para momentos festivos, tudo era vendido ao peso que permitisse a carteira e despachado num embrulho ou saco de papel. As mercearias eram boas clientes das fábricas de papel.

Em resumo, a época dourada das mercearias, tascas e tabernas das nossas aldeias, pertence já a um passado, se não distante,  pelo menos a passos largos do esquecimento. Os mais velhos delas já só têm lembranças, mas os mais novos nem sabem o que isso é. E fotografias que os convençam, não há muitas.

Num destes dias, num Domingo à tarde, calhando em saída com amigos para beber uma cerveja ou lamber um gelado, porque a tarde estava quente, passamos por uma aldeia vizinha onde se anunciara que abrira ao lado de umas bombas de gasolina, um novo espaço do tipo padaria e pastelaria. Onde antes havia um sórdido salão de jogos com uns bilhares e onde entre tacadas se reuniam bêbados e fumadores, há agora um espaço com ar moderno, airoso e asseado, apesar dos tremoços, salgados e com sabor a velho, não convidarem a uma segunda rodada, mas percebe-se que se a coisa não se desmazelar na qualidade dos produtos e da eficácia e simpatia do serviço, será um espaço interessante para os locais e gente das redondezas socializaram, seja pela manhã com chã, café e torradas, seja à tarde com umas cervejas fresquinhas e uns tremoços. Ainda não é snack-bar mas um papel colado numas das paredes anuncia que todas as sextas-feiras ao almoço haverá “francesinha” a preço convidativo.  

Dali, demos um salto a uma aldeia próxima, mas já de Arouca, em cujo centro um pelourinho  reconstituído do antigo, mostra orgulhosa que já foi sede de concelho antes de sucumbir  às reformas administrativas do liberalismo. Ali, nas bordas do casario denso, um café moderno, semeado de clientes e ao lado um café à moda antiga, vazio. Mas como a cerveja é igual em todo o lado, desde que devidamente fresca e não em fora de prazo, nele entramos numa de contra-corrente. Um típico café, de que retirados alguns produtos modernos, poder-se-ia pensar que estávamos nos anos 1970, antes ou depois a revolução dos cravos. Um balcão simples, corrido, com tampo em fórmica desgastada pelo roçar de copos e garrafas e ladeado por uma dúzia de bancos altos, redondos para fazerem do balcão a mesa comum. De resto o espaço dentro e fora do balcão é comprido mas pouco largo e não dá para grandes ajuntamentos e nem convém porque ali em dia de feira mensal ou festa anual não importa fazer sala mas antes beber, pagar e sair. Perguntei se toda aquela procissão de bancos já estivera ocupada em simultâneo. - Ui! Tantas vezes! Vezes sem conta! 

Assim terá sido durante os quase cinquenta anos que a tasqueira, uma senhora bem composta, simpática e faladeira, com ares de octagenária, disse estar aberto o estabelecimento naquela configuração. Por conseguinte, para além da máquina de venda de tabaco e pouco mais, as coisas por ali quase nada terão mudado e nem teria valido a pena, porque o vender vinho a copo, cerveja ou esta com gasosa não tem arte nem precisa de grande coisa e conforto, bastando o balcão e um banco alto redondo desconfortável para ali não se fazer ninho. Até mesmo os pequenos cartazes com trocadilhos e ditos populares mais ou menos maliciosos expostos defronte ao balcão, são de leitura rápida.

Perguntámos se não servia petiscos. Que não! Noutros tempos sim, iscas, pataniscas e peixe frito, mas que agora não tinha condições para isso, não compensava nem valia a pena. Os novos não querem nada e indo os velhos à sua vida  a coisa encerra e estas coisas fechando portas dificilmente voltam a abrir porque já não deixam. A porta de saída dá directamente para a rua e não convém ter ali gente enfrascada a sair aos trambolhões. Noutros tempos não haveria problema porque o trânsito era de carros de bois, cavalos e outras cavalgaduras e mesmo os automóveis contavam-se pelos dedos de uma mão os que ali passavam por dia. Arouca ficava longe e por maus caminhos e quase só se lá ía anualmente para pagar as contribuições e pela Feira das Colheitas.

Continuando a manter conversa, perguntamos como é que ía o padre, que ali paroquiava a freguesia e mais duas vizinhas. Que ía indo e andando, mas os horários dos serviços e missas é que são uma trapalhada porque a modos de agradar a todos, vai alternando os horários e missas nas capelas e igrejas e às tantas o povo perde os nortes e não raras vezes dão com as portas das igrejas e capelas fechadas porque afinal o serviço decorre noutro local. 

Continuando a tirar nabos do púcaro, até porque a senhora era boa conversadeira, perguntamos qual a freguesia da melhor preferência do pároco. Achava que era uma, a sua, mas as outras achavam diferente. Ou seja, cada uma das três acha que é a enjeitada a desfavor das outras como amantes ciumentas. Neste ponto da conversa veio-me à memória aquele velhinho a quem perguntaram qual vinho preferia, a que respondeu com ares de não ter dúvidas, - O tinto!. Mas então o branco? - Também gosto! Ou seja, no fundo um pároco que tenha duas ou mais freguesias a seu cargo tem-nas, por princípio, na mesma conta do vinho. Gosta sem dúvida do tinto mas também, com toda a certeza, do branco e certamente que ainda do rosé. Afinal, vinho é vinho mesmo que vindo de pipas de diferentes tamanhos. Depois, se dizem que o tinto se propicia a acompanhar densas carnes vermelhas, fumeiro e enchidos, já o branco combina na perfeição com a leveza do bacalhau, peixes e carninhas brancas. O rosé, como nem branco ou tinto, presume-se que deve ir bem com qualquer coisa, até com uns doces e sobremesas.

Nisto de padres, paróquias e vinhos, como de resto em tudo o mais, o racismo, discriminação e preferências interesseiras e interessadas não devem ter lugar. Pelo sim e pelo não, coma-se e beba-se  de ambos. Haja vontade, sede e fome! Amém!

31 de maio de 2023

Querida avó - Querida neta - 2

Querida neta, cá arrecebi o teu amail. Ainda me atrapalho com estas coisas do computador e tenho que ler as instruções que me escreveste, mas lá conseguir abrir a caixa de entrada. Raio da caixa esta que não tem tampa.

Olha, como sabes que não andei na universidade como tu, e só fiz a terceira classe à custa de muita porrada do professor Lúcio e do teu bisavô, ainda dou muitos erros mas o que me socorre nalguns é o tal tradutor do amail. Estas ferramentas modernas fazem de tudo e até um cego consegue ver e um mudo falar.  

Olha, fiquei triste por saber da morte do Zeca do Caneiro. Pobre homem, não era mau diabo apesar de não gostar de tomar banho nem cortar a barbucha. Deus Nosso Senhor, que é pai de todos, o enxergue ao seu lado mas que o S. Pedro lhe dê primeiro um valente banho. Já lhe rezei dois terços e quando cá vieres levas 10 euros para uma missa aí em Guizarães. Gostaria de mandar rezar mais mas o raio das missas aí estão caras comó diabo. Bem que podiam ser mais em conta como aqui com o padre Tobias. Assim as almas do purgatório têm que penar mais tempo por falta de missas.

Querida neta, é  um segredo mas estou a tricotar umas meias de presente para quando fizeres 27 anos. Ainda andei tentada a tricotar umas cuecas para no frio do inverno ficares com o cu bem agasalhadinho mas a vizinha Francelina, quando lhe contei, disse que era asneira porque a juventude de agora não quer tapar o traseiro, mas andar com ele destapado. Modernices e poucas vergonhas é o que é. Quando eu tinha a tua idade para fazer as necessidades perdia 10 minutos a destapar a barrica. Desculpa lá, mas sabes que sou um bocado desbocada.

Olha cá na aldeia sempre vão fazer obras na capela de S. Tomé, mas, a jeito do santo, primeiro ver para acreditar. Que a capela está uma miséria, está. Até chove na careca do S. Domingos e a serra do S. José está cheia de ferruge. O padre Tobias diz que vai ser preciso fazer um peditório à freguesia porque o saldo em caixa não chega p´ra nada. O presidente da Junta sugeriu que se fizessem uns leilões de orelheiras e pernis de porco para arrecadar dinheiro pelo menos para as pinturas e vedações mas o padre Tobias disse que para isso tinha que decapitar e amancar mais de 100 porcos e nunca mais seria noite para além da carne salgada fazer mal aos paroquianos. A freguesia está farta de peditórios mas vai ter que se virar para mais um. Também vão fazer umas rifas e o primeiro prémio será três livro de rifas pró próximo sorteio e o segundo prémio dois livros de rifas e por aí abaixo.

Olha, se gostares de brócolos passa cá a casa que eles já estão bem cheios. O Dr. Mirandela diz que são bons para prisão de ventre e para mais uma carrada de coisas.

Querida neta, já escrevi muita coisa e sabes que escrevo devagar, por isso fico-me por aqui. Vou tirar a ficha do computador e ver o “Preço Certo”. Depois de jantar vou ver se me alembro de rezar mais dois terços pelo Zeca do Caneiro.

Muita saúde aí para casa e o teu pai que não abuse dos brufenes que ainda é novo e é preciso sofrer pelos pecados do mundo como sofreu o santinho do padre Pio!

29 de maio de 2023

Querida avó - Querida neta - 1

Querida avó, espero que este email te encontre de boa saúde e que já não te doam as costas. Por cá em Guizarães  vai indo tudo bem e na família vai-se indo. Apenas a mãe anda com uma tosse danada que mais parece a fanfarra de Vila da Açorda. Diz que deve ser restos da covid. O pai também anda a abusar dos brufenes e dos benurons com as dores do ácido úrico mas recusa-se a fazer dieta. Sabes como o teu filho é teimoso...Tem a quem sair !(lol).

Olha, foi bom teres conseguido tirar a formação para saber usar o email no computador que o pai te ofereceu no Natal. Bem vês que assim é bem mais fácil escrever-te a contar as novidades da terra e da família. És uma avô esperta e espevitada e não ficas atrás da Isabel II que, coitada, também já foi à vida. Só acho que também devias aprender a usar o Facebook  e o Whatsapp pois assim podias publicar fotos de gatinhos e de postais de flores e passarinhos  para partilhares com as tuas amigas. Quando eu estiver de férias da empresa vou ver se tiro umas horas para te ensinar. Vais ver que é fácil. A tua amiga, a Zeferina, tem Facebook e um dia destes mostrou-se na padaria de Travassos a comer um "jesuíta" e a beber um copo de Fanta, com a Amélia do Oiteiro. A danada até tem conta no Tinder mas é melhor não te dizer o que isso é porque ainda de atentas.

Não sei se soubeste, porque não tens Facebook, mas faleceu o Zeca do Caneiro. Ainda no dia anterior estava vivo e na manhã seguinte encontraram-no morto à entrada do barracão. Devia ter ido deitar comer ao Ringo porque ainda tinha nas mãos umas costelas de porco rapadas. Deve ter-lhe dado qualquer coisa, coitadito. Mas bem sabes que já andava nos 97 e a dizer que ía chegar aos 100 para lá irem a casa os presidentes da Junta e da Câmara tomarem chã a tirar fotografias para o Facebook. Se quiseres vir à missa do 7.º dia passo aí na quarta-feira para te trazer. Mas depois confirmo porque o padre Rufino ainda não marcou a hora. É capaz de ser às 7. 

Olha, quem não anda contente é o Albino do Costeira. Apanhou uma multa da Câmara de Santulheira por ter aumentado 13 centímetros a altura do muro com o vizinho e não ter metido projecto. Não se conforma até porque o muro do Armando é mais alto do que o dele. Mas diz que o que mais o arrelia, para além dos 500 euros da coima, é que sabe que o Fernando da Noronha anda a fazer obras na casa para o filho e que clandestinamente construiu uma garagem para o seu Mercedes, mesmo encostadinha ao rio Salgueiro, e que no PDM até está a calcar a reserva agrícola e ecológica, mas que nisso a Câmara não liga. Também diz que o João da Costa, do lugar de Covelinho anda a fazer um grande barracão  em chapa verde para criar avestruzes e porcos pretos na leira da ribeira de baixo, também em reserva agrícola e ecológica e que os fiscais por lá não passam ou se passam desviam o olhar para a capela de Santa Luzia, padroeira dos cegos e vesgos, e fazem disso vista grossa. E olha que a coisa deve ter uns 100 metros quadrados e uns 4 de altura. Anda danado o homem e com razão, parece-me.

Outra coisa, avó: Não te esqueças que tens consulta de ortopedia no dia 22. Toma banho, lava-te por dentro e por fora e põe-te pronta por volta das 8:00 horas que a Tia Nanda passará por aí para te levar. Também ligaram da Minisom a dizer que o teu novo aparelho já está pronto. Vais ver que ficarás a ouvir melhor e assim escusas de fazer confusão com o que ouves na televisão e rádio Se estiverem a faltar medicamentos para as tensões, para sangue grosso e para dormir, avisa para pedir mais no posto médico.

Por agora é tudo, avó. Fica bem e não andes na horta a cavar ou a arrancar ervas com o nariz no chão com ares de javali. Não tens necessidade disso. Depois não te queixes que andas com as costas e os joelhos num sofrimento de via sacra.

Fica bem, avó! ...não te esqueças da cena da consulta que a Tia Nanda não gosta de esperar nem chegar tarde e já sabes que para arranjar estacionamento no hospital da vila  é mais difícil que arranjar um lugar no céu.

Entretanto volto a escrever!

29 de janeiro de 2023

Até de burro...


Somos assim, e mais  nada! Corremos o mar e a marinha, como quem diz o mundo e arredores, e quem tiver vontade e algum tempo para a coisa, porque parece que as viagens, se marcadas com tempo, são ao preço da uva chorona, em pouco tempo tem um álbum fotográfico de selfies com os ex-libris de vários sítios e cidades do mundo como cenário. Há quem o faça só por isso, porque no essencial é passar e andar. Importa obter o carimbo dos lugares de passagem e depois é publicar nas redes sociais para mostrar aos amigos e aos outros que se é uma pessoa fixe, viajada e aventureira.

O Mingos é uma dessas pessoas e, até porque emigrante desde cedo pelas franças, já correu meio mundo, pelo menos aquele em que todos querem ir. Pois se para além da França, já esteve em quase todos os países da Europa, incluindo a Grécia , imagine-se, tendo nascido e feito casa a 30 quilómetros de distância e a meia hora de viagem, pouco mais, nunca foi a Arouca. Até mesmo Castelo de Paiva, Vale de Cambra ou Sever do Vouga, etc, são destinos onde nunca pôs os pés nem os olhos. E, claro está, tirando uma ou outra cidade mais grandita, desconhecerá por completo o país onde nasceu, Portugal, incluindo o seu interior e aldeias e vilas dispersas por montes e vales.

Em resumo, somos uns viajados do caneco, uns cosmopolitas, mas ao longe. Ao perto, mesmo na borda do do nosso ninho, pouco ou nada conhecemos. Será porque é de pouco monta ou significância? Bem sabemos que o convento de Arouca não pode competir com a torre Eiffel ou com o Partenon nas rotas do turismo de massas, mas, porra, é Portugal e para lá ir nem é preciso andar de avião ou de barco. Até de burro lá se vai numa manhã.

22 de janeiro de 2023

A rotina quebrada

O Francisco do Vieira enviuvou cedo. Depois de desanuviada a negra nuvem da dor do luto, ainda o rondaram, pretensiosas, algumas pretendentes, sabedoras da sua gentileza, boa estampa, casa montada e emprego estável num dos gabinetes da Câmara Municipal, mas a todas esvaziou-as com a subtileza dos comportamentos de lobo solitário. Considerou que o que precisava depois da partida da sua amada Isabelina, era cumprir na solidão uma caminhada de serenidade, física e espiritual. 

Logo depois, à primeira possibilidade, reformou-se e desde o primeiro dia que se impôs a uma rotina disciplinadora para que não se perdesse numa modorra que conduz ao limiar da loucura. Assim, levantava-se sempre às sete e meia da manhã, espreitasse o sol pela janela do quarto ou nos vidros da jenela batessem as gordas bátegas de chuva. A seguir, na casa de banho, eram sempre quinze minutos para o essencial, o escanhoar da barba e do ordenamento da basta cabeleira, já grisalha. Banhos gostava de os tomar antes de deitar. De seguida o pequeno almoço na pastelaria da esquina, a leitura das goradas nos jornais, e minutos depois caminhava já em passo acelerado pelos caminhos da redondezas, tanto quanto possível por onde não andasse alguém. Ao meio dia e meio era cliente diário no restaurante do Quintela. E era assim o resto do dia com coisas certas, a horas marcadas, como que comandado por um treinador de apito na boca e cronómetro na mão. Conversas, poucas com amigos raros e mesmo assim apenas para não dar ares de bicho de buraco. Mas, não fora essa obrigação social, dispensaria de bom grado as conversas de lana caprina sobre o estado do país, da política e dos políticos, do futebol, etc.. Deitava-se sempre às onze, depois de ler algumas páginas de um dos muitos livros, e em regra dormia bem até que o ciclo recomeçava no dia seguinte. Corriam os dias, as semanas e os meses e com eles os anos pareciam  cavalgar num trote certinho.

Um dia, porém o Francisco, não se sabe por que carga de razões, quebrou a rotina e foi tomar o pequeno almoço na freguesia vizinha e foi servido por tão graciosa rapariga, de olhos negros profundos, num corpo esbelto de viço, e tão simpática e afável como se o conhecesse desde sempre. Não consegue justificar-se sobre que aranha lhe mordeu quando percebeu que começou a ir ali, não apenas uma, mas duas ou três vezes por semana. E pouco mais à frente, já era presença diária e fazia por prolongar aqueles momentos que ali passava simulando que se entretinha a ler o jornal de fio a pavio, mas na verdade sempre com os olhos a fugirem para os da empregada que, mais doces que os pastéis que servia, os retribuía. Começou a baralhar as tarefas que tinha na rotina inabalável dos seus dias, saltando umas e adiando outras. Começou a dormir mal e aquela rapariga, tenra e deslumbrante, era presença nos seus sonhos nocturnos e pensamentos à luz do dia.

Certo é que passados alguns meses toda a freguesia ficou pasmada quando foi noticiado que o Francisco se juntara à Teresinha da pastelaria Estrela da Manhã, e mudara lá para os lados de Castro Daire, de onde era natural a moça.

Há assim nas nossas vidas um não sei quê de que destino, fatalidade ou apenas acaso, que quando damos por ela, dá cabo das mais fundamentadas rotinas, descompondo ideias, desorganizando sonhos, distorcendo as linhas rectas e paralelas que nos guiam, fazendo descarrilar o comboio com as dezenas de carruagens onde arrumos as coisas certinhas.

Feitas as contas, terá sido melhor assim. Seria demasiado penoso que o Francisco não fosse capaz de se desamarrar daquela disciplina monocórdica que lhe fazia os dias todos tão iguais, tão minuciosamente agendados e preenchidos em todos os minutos e horas do dia e da noite, que às tantas aquilo já não era vida, mas somente um existir, um ponteiro de relógio preso ao eixo da engrenagem.

Não sabemos como corre a vida para o Francisco com a fresca Teresinha, lá por Castro Daire, mas por mais revolta e imprevista que seja, será certamente vida e vivida, em que cada dia é diferente do anterior como inesperado será o seguinte. Sem regras, apenas de improviso. Porventura, descascada a sumarenta da companheira, já a achará chocha, desenxabida, ou ela, de tanto o já ter espremido, seguiu para outro pomar, mais fresco. Talvez, uma ou outra coisa ou nenhuma delas, mas na certeza de que a vida do Francisco deu uma volta de pernas-para-o-ar. Se caiu de patas como os gatos, se de cu, por ora ainda não se sabe.

31 de dezembro de 2022

Incertezas

Quando chegamos a uma certa idade, em que já podemos dizer a alguns, muitos, que poderíamos ser seu pai ou avô, uma das coisas a que não conseguimos fugir é o reviver de momentos, episódios, situações com que algures, em tempos mais viçosos, fomos confrontados.

O Macedo, já na casa dos sessenta, mas feliz com o que a vida lhe deu e tem, não encontra nela grandes remorsos ou arrependimentos tão simplesmente porque convencido está que isso em nada lhe acrescentará. Mas de quando em vez, como quem faz rewind numa velha cassete do tempo, recorda alguns namoricos e casos sentimentais, ou oportunidades deles, que teve antes de, cansado deles, decidir-se a enlaçar-se com aquela que lhe pareceu ser mais parte de si, a sua Fátima.

Numa dessas viagens ao passado, em que tudo se vê de olhos cerrados, viu-se fresco e viçoso, mesmo na altura em que fora convocado ao serviço militar por onde lá pelas lisboas marchou durante dois anos certinhos. Travara, por essa altura, conhecimento com a Celeste, ainda mais fresca do que ele, quase a transpor a maioridade mas ainda menor.

Durante alguns poucos meses encontravam-se e namoravam sem o saber, em longas ou curtas conversas, em que por vezes falavam mais os olhos que as bocas, o olhar que as palavras. Pelo meio, algumas cartas trocadas, sem subterfúgios ou ideias disfarçadas na semântica. De tão ingénuas e transparentes, poderiam ser cartas de irmãos. E se o Macedo enredava na escrita uma qualquer segunda intenção, só a Celeste a poderia decifrar.

Apesar disso, o Macedo era um rapaz na força da vida e tinha naturalmente desejos de poder colher e saborear aquela frescura rubra de cereja a baloiçar no ramo, que se lhe oferecia, e também o percebia nas feições e palavras da Celeste. Mesmo naquela ocasião em que se viram sozinhos na casa da tia dela, numa tarde de chuvinha macia, ficaram tão perto que o silêncio os cobriu e as mãos tocaram-se numa tímida hesitação. O Macedo, jovem mas maduro o suficiente para saber de como as coisas se complicam, sabia da diferença de idades e do facto dela ser menor e quando lhe passou pela cabeça aproximar os seus lábios dos dela, que lhe pareciam convidativos e serenos como porto seguro, estremeceu e recuou enquanto disse uma qualquer banalidade sobre o tempo. A Celeste enrubesceu e respirou fundo como que a acordar de um sonho de segundos.

Continuaram amigos por mais algum tempo e pouco depois cada um seguiu o seu rumo. Ela emigrou, casou, dizem que ainda não teve filhos. Viam-se, esporadicamente, pelo verão, uma ou outra vez, por circunstância, mas a ele parecia-lhe já distante aquele Celeste, maneirinha, fresca, cabelo comprido, olhos negros e lábios de cereja que ele poderia ter saboreado. 

Ele cumpriu a tropa, casou e teve filhos. Sente-se pleno e feliz e nem esta ou outras parecidas situações, lhe trazem angústias. De resto, para além do medo das consequências, no fundo hesitou e recuou porque jamais poderia lidar com a recusa. Pareceu-lhe que naquele passado momento a Celeste também o convidava, mas nunca se sabe o que vai na alma das mulheres e até mesmo uma rapariga naquele silêncio morno  poderia despertar e dizer, não!

Se de tudo aquilo algum dissabor deixou ao Macedo, apenas a incerteza. Como teria sido se deixasse o corpo seguir o seu instinto? Com que consequências para si, para a Celeste ou para ambos?

Não! Não importa imaginar cenários e desfechos. Afinal, a incerteza é sempre um essência da nossa vida. Porque atalhamos pela esquerda e não pela direita ou porque não recuamos ou seguimos em frente? Se formos a dar palco às incertezas, a nossa vida ficaria de tal modo assoberbada que não restaria tempo para a viver. E tão curta que ela é….

25 de dezembro de 2022

A cagar fininho

O Arménio começou o dia  de Natal a cagar fininho. 

Pergunta aos seus botões se terá sido dos rojões com grelos, besuntados com azeite extra e dentes de alho, comidos na consoada vespertina em casa da sogra, ou se pelos clisteres de  longos intervalos de 20 minutos de publicidade no filme "Sozinho em Casa", já com mais tradição natalícia do que ir à Missa do Galo. 

Sentenciou que não, que não foi dos rojões com grelos, porque lhe souberam pela vida, mas sim da publicidade, dos perfumes, dos relógios, dos azeites e dos telemóveis. Foi, de facto, uma overdose e neste enjoo matinal não arrotava a alhos mas a Chanel N.º 5.

Mais logo à noite, como qualquer bom guisandense bem sabe, é que se cumpre a verdadeira tradição com a consoada no próprio dia 25. Prometeu a si mesmo, o Arménio, desligar a puta da televisão. Mais uma dose daquilo, ou apanhar nas ventas com a notícia de que uma tal Alexandra Reis foi prendada pela TAP com uma insignificância de meio milhão de euros, só porque não cumpriu o contrato, porque lhe arranjaram outro arranjinho, ou mesmo ver o nosso presidente entertainer com uma multidão atrás de si para o ver tomar uma ginginha, poderá resultar numa verdadeira caganeira. É que tratamentos desses são mais fortes do que o PLENVU ou PICOPREC.  A mais grossa será como azeite.

O povo por ora anda entretido com consoadas, rabanadas e aletria, mas logo que as luzes sejam desligadas e os presépios desmontados,  vai arrotar de fastio e enjoo e as caganeiras serão tão óbvias  que até podem ser previstas pelo IPMA e resultar em alertas alaranjados pela Protecção Civil.

Portem-se bem! Com jeitinho, a senhora Reis vai distribuir a prenda pelos mais pobrezinhos.

Feliz Natal!

7 de dezembro de 2022

Pedintes modernos


A campaínha tocou. Pela hora adivinhava-se que seria o "cliente" do costume. Assomou à porta e confirmando-se, protestou:

- Você outra vez? Não sai daqui para fora!

- Já não passava há quase um mês! - desculpou-se do lado de fora o pedinte.

- Mas você está com bom aspecto! Não tem quem lhe arranje um emprego? - Perguntou o dono da casa para lhe medir a reacção.

- Não posso! Eu sou um homem doente! - replicou num tom lamurioso.

- Pois, olhe que não me parece, vejo-o sempre por aqui, com bom ar, a caminhar ligeiro a dar a volta à freguesia! Olhe que não é para gente doente!

- Mas dê-me lá uma moeda! - pediu, desinteressado do sermão.

- Vou dar, mas não apareça aqui antes da Páscoa! - deu-lhe uma moeda de dois euros, como se fora a juntar à moeda habitual o subsídio de Natal.

O receptor olhou para a moeda, acariciou-a, fez uma pausa e disse: - Olhe que já passo aqui há muito tempo e é a primeira vez que você me dá uma moeda de dois euros!

- Ai é? Pois para além de ter boa memória, está com sorte! Mas está a queixar-se ou falar de contente? - questionou o dador. Ele, porém, encolheu os ombros e não lhe respondeu deixando-o sem saber, levando-o a replicar:

- Bem, olhe que não é mau! Se lhe derem dois euros em cada uma de cinquenta casas por aí acima, são 100 euros. Ganhará bem o dia! Mas vá lá à sua vida! - despediu-o para não alongar a conversa.

E lá foi o pedinte à sua vida, que não terá outra. O dono da casa ficou a pensar naquela justificação do ser doente Considerou que fosse mesmo doente, o que de todo não lhe pareceu, certamente  que o nosso amado estado social o socorreria. Ou será que não? Afinal estamos em 2022 e ainda há disto, pedintes, tal qual como no tempo da velha senhora. E já lá vão 50 anos sobre a mudança de direcção. Só que os do antigamente, parecia-lhe, esses pelo menos rezavam, recebiam o que calhasse e agradeciam encarecidamente. Os pedintes modernos, esses não pedem, exigem e resmungam se a moeda é pequena.

Nesta dúvida, ficou o dono da casa, e ficamos nós, sempre com muitas reservas sobre quem ainda anda de porta em porta, a pedir com verdadeiras necessidades ou sem elas. E são muitos, desde bombeiros, a supostas associações de não sei das quantas, para além dos peditórios para as diferentes situações no âmbito da freguesia e paróquia, seja para esta ou aquela festa, para a igreja, para os presuntos, para os pobres, para os ucranianos, para os africanos, para isto, para aquilo. É certo que é bem melhor poder dar do que precisar de pedir, mas para quem tem que trabalhar para poder pagar as suas contas e responsabilidades, sem chorudas pensões ou rendimentos que não sejam os do trabalho, mesmo o pouco que se dá tem peso perante tantas solicitações. 

Mesmo nestas dificuldades, porventura dar dois euros a um cliente recorrente, mesmo considerando que será apenas por vício, terá algum significado e mesmo valor, para quem dá e para quem recebe. Afinal, serão poucas as casas que darão dois euros a quem com insistência toca à campainha. Porventura, quase sempre, quando alguém bate à porta de quem realmente poderia dar, não 2 mas 5 ou mesmo 10 euros, sai despedido sem nada nas mãos e a única coisa que pode almejar levar é o sermão. Esse dá-se ao desbarato.

Não está fácil, pois não, tanto para quem pede como para quem dá!


[foto: sabado.pt]

18 de outubro de 2022

Os lápis de cor



Era uma vez um rapazinho de família pobre e humilde que gostava muito de desenhar, mas só tinha um simples lápis, de cor cinzento, que o seu pai, que era carpinteiro, lhe emprestava.

Gostava ele de desenhar cães e gatos que o seu avô lhe ensinava à noitinha, à luz da vela, enquanto a sua mãe preparava o simples jantar.

Quando completou 6 anos, entrou o menino para a escola primária e a sua família, mesmo com muitas dificuldades, conseguiu pagar os livros onde aprenderia a ler, os cadernos onde escreveria, uma lousa onde faria as contas, um afiador de lápis, uma borracha para safar os erros, e ainda uma bela caixinha com 6 lápis de cor.

Foi uma alegria para esse rapazinho quando recebeu a caixinha com 6 belos lápis, pois já podia fazer os seus desenhos com as suas 6 cores.

Os seus cães, até ali cinzentos, passaram a ser castanhos, verdes, vermelhos, azuis, amarelos e lilás. Às vezes até os pintava às bolinhas e às riscas.

Os gatos eram verdes e vermelhos conforme a sua imaginação.

Mas um dia, o menino pobre conheceu outro menino da sua classe, que era filho da professora, por isso um menino rico.

Ora o rapazinho pobre descobriu que o rapazinho rico tinha também uma caixa de lápis-de-cor mas não apenas com 6, mas com 12 lápis.

Lá estavam entre outras cores, os lápis cor-de-laranja, cor-de-rosa, verde claro, verde-escuro. Tinha, pois, mais 6 lápis com cores diferentes das suas.

Então o menino pobre ficou um pouco triste e ficou a imaginar que com todas aquelas 12 cores conseguiria fazer cães e gatos de cores diferentes e até mesmo desenhar o arco-íris, que aprendera que tinha 7 cores.

Mas tudo se resolveu, pois o menino rico tornou-se amigo do menino pobre e sempre que na escola a professora mandava fazer um desenho, eles partilhavam os lápis e assim fizerem belos desenhos, bem coloridos com todas as cores.

O menino pobre ensinou então o menino rico a desenhar belos cães e lindos gatos e assim ambos viviam naquela amizade bonita e colorida, que durou toda a escola primária.

Ainda hoje, já homens crescidos, são amigos.

Moral da história: Haverá sempre meninos pobres e meninos ricos, mas todos serão felizes, menos pobres e mais ricos se partilharem entre si os seus bens, mesmo que seja apenas uma simples caixa de lápis de cor.


(Pequeno conto infamtil que escrevi e que foi lido por uma criança (a Leonor) durante a  sessão de apresentação do meu livro infantil no passado dia 1 de Outubro, no Centro Cívico de Guisande)