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29 de janeiro de 2019

Crónicas do cavalheiro de calças clássicas - O Anjos

Soube há dias, poucos, que o Anjos, o Jorge Anjos, será candidato à presidência do Figães Sport Clube, agremiação graúda nas redondezas, já com uma vetusta história e uma sala repleta de canecos e galhardetes conquistados entre o futebol, o voleibol, o bilhar e os matraquilhos. Mas não sem surpresa, pois Figães é terra de segunda vizinhança, a uma boa légua de distância de Cagalhães. Aqui ,o Anjos a bem dizer nunca por cá fez parte de nada, nem de grupo da paróquia, nem de Junta ou Assembleia de Freguesia. Apenas, na folha de serviço, época e meia como vogal do Conselho Fiscal do Cagalhães F.C.. Assim sendo, por que raio é agora candidato a presidente dum clube forasteiro e de uma terra alheia? Nem sequer de Lomba da Burra, onde nasceu? Já seria grande a admiração de que fosse sócio desse clube, com cotas em dia, quanto mais abalançar-se a uma candidatura à sua presidência.

Realmente, espalhada a notícia, cá em Cagalhães ficamos todos a fazer figura de anjinhos perante a novidade do Anjos. É certo que, já na pré-reforma de professor, que junta à da esposa, também ela docente reformada, tem tempo e dinheiro para "fazer qualquer coisa pela humanidade", como sentenciou o Zé do Portal na tasca da Micas, mas que é surpreendente, é.

Em todo o caso, o que mais há por aí são Anjos, que pouco ou nada fazem pela "humanidade" da terra onde nasceram ou moram, mas um dia, vá lá saber-se por que carga de água, abrem as asas e esvoaçam para outros poisos, para maiores desígnios, para ali fazerem parte da história da cidadania local. É certo que o Anjos, homem de igreja, sabe que Jesus foi expulso da sinagoga nazarena, tido como o simples filho do carpinteiro local e que por aí ninguém é profeta na sua terra, mas não precisava de tanto, armar-se como tal em terra alheia. Afinal de contas não faltam por Cagalhães cargos e funções onde possa demonstrar o seu voluntarismo. Junta, Assembleia, Comissões de Festas, Centro Social, Paróquia, etc, etc, um rosário de necessidades. Até o Pe. Agostinho está a precisar de um diácono para o ajudar na sua missão espiritual. Logo um anjo, vinha mesmo a calhar.

Mas ele há coisas, e o Anjos surpreendeu. Virá mesmo a ser presidente? Por mim acho que não! Deve ter sido aliciado por algum doutor importante, na expectativa de mais altos voos, porque, foda-se, o lugar de um Anjo, mesmo que só de apelido, deve ser num poiso mais alto, num poleiro ou pedestal aveludado de nuvens de algodão. Mas acho, eu e muita gente por cá, que não. Quando o peido espreitar ao cu, vai-se encolher e desistir, como desistiu da função de Juiz da Cruz. Regressará à placidez das tardes calmas e tranquilas na tasca do Petróleo, a desfiar os jornais do dia e a fazer caminhadas solitárias pelas ribeiras. Quanto ao Figães, só de longe a longe, e até duvido que tenha as cotas em dia, que abrir mão não é com ele.

Cagalhães não terá a urbanidade de Figães, há muito elevada a vila, mas é modesta, bonita, e maneirinha como um presépio napolitano, quase mesmo um céu, bem ao jeito de um anjinho. O Jorge é mesmo desses: na hora de meter pés ao caminho, encolhe-se, recolhe as asas e transforma-se em anjinho, o que nem se importa se tal significar distância de canseiras e responsabilidades.
Tudo no seu lugar. Como diria Mário Quintana, "Os anjos não dão os ombros, não; quando querem mostrar indiferença os anjos dão as asas.” 

 CCCC

22 de setembro de 2018

Perfume do céu


Quando o chorou em dia de descer à cova funda e fria, a Celeste lamentava-se por ter partido tão cedo, tão novo, o seu Simão.
Não era propriamente novo, pois já andava nos setentas, mas, como o diz o ditado que "o olho do dono é que engorda o gado",  compreende-se, salvo as devidas diferenças, que o olho azul da Celeste passados quase cinquenta anos ainda visse no seu Simão o rapazola viçoso e alegre que numa dança no terreiro da festa ao Santo Ovídeo, a conquistou para sempre. Talvez por dançar, quiçá por cantar, porventura por dançar e cantar tão bem, a ponto de, por carinho, o ter baptizado de o seu "Pisco". 

É certo que a foice da morte quando teima em ceifar tanto se lhe dá se tomba joio, centeio ou trigo. Vai tudo a eito e nessa ceifa inesperada, porque em tempo em que repousavam as searas lá por Novembro, lá se foi o "Pisco", não sem antes, num último "pio", pedir à sua Celeste, que bem sabia o quanto ele gostava dessas flores, sobretudo do seu intenso perfume, para quando lhe fosse enfeitar a sua campa, que não se esquecesse de a adornar de beladonas, porque queria sentir o seu perfume no Céu, presumindo, catolicamente, que era para lá o seu destino. E deve estar por lá, porque aparte umas pequenas malandrices, que os padres aliviam facilmente com três avé-marias e um padre-nosso, nem era mau diabo o Pisco. Era de facto alegre e de bom coração e animava qualquer terreiro por onde lhe cheirasse a festa. 

A Celeste consolou-o com a jura, prometendo-lhe que enquanto fosse viúva lhe havia de cobrir a lápide com rosados ramalhetes de beladonas logo que a partir dos últimos suspiros de Agosto elas pusessem a cabeça de fora nos vários cantos do jardim e do quintal onde o Pisco, como um cão a enterrar ossos, diligentemente foi depositando bolbos. Talvez já sonhasse que viria a precisar dessas inebriantes flores para as cheirar no Céu, quando o Pai de todos o chamasse para a sua companhia.

Verdade seja dita, a Celeste viúva continua a cumprir sagradamente essa promessa e não me espantei, por isso, quando ainda numa destas manhãs de sábado a vi a caminho do cemitério com uma frondosa cesta de beladonas acabadas de colher.
Acredito que o Pisco estará por esta altura a extasiar-se com o seu perfume e mesmo que tão forte e intenso não morrerá de asfixia ou intoxicado, pela simples razão de que morto já está.

Nesse Céu perfumado, descansa em paz, Pisco!

23 de agosto de 2018

Mata borrão

O Venâncio já não tem idade para brincar aos cucos, pelo que no peso dos seus sessenta anos, bem feitos - assegura - considera que já viu de tudo e o que faltará para ver já pouco ou nada contará para o totobola da surpresa. 
Educado sobre valores que pelos tempos actuais vão definhando como minhoca em pedra quente, até que pereça mirrada, mesmo assim contemporizava com  a naturalidade das mudanças, de resto em consonância com o que já nos seiscentos poemizava o grande Camões: 

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Apesar de compreender a mutação dos tempos e das vontades, continuava o Venâncio a não encaixar certas coisas que ia vendo, por as achar tão simplisticamente difíceis de perceber, se não as consequências pelo menos as origens. Como, por exemplo, logo ali ao seu lado, na praia, onde, de barriga ao sol, não conseguia evitar ver e ouvir um grupo de adolescentes, mais para crianças do que para adultos, em cenas e predicados próprios de um filme, no mínimo para maiores de 16 anos, tendo eles, os actores num palco real de areia quente e macia, talvez uns 13 ou 14 anitos. Aquela rapariguinha de corpo delgado e cabelos compridos, quase da cor da areia em que se rebolava com um rapazola pouco mais velho, possivelmente dois ou três anos antes celebrara a comunhão solene. Na escola, onde certamente "aprendera" algumas daquelas disciplinas próprias de adultos, frequentaria o sexto ou sétimos anos.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

As conversas e as "acções" daquele grupo de rapariguitas e rapazitos soavam ao Venâncio como algo pouco natural e fora de tempo e como não visse por perto a sombra de adultos com ares de pais ou, modernamente, encarregados de educação, questionava para si próprio se aquelas criançolas, sobretudo as raparigas, não tinham pais, ou  pai ou mãe. E se tinham, sabiam eles ou preocupavam-se em saber onde, quando e como passavam o tempo os filhos e filhas, e com quem? Poderiam tais filhos de tenras idades ter noção das consequências de algumas das suas "brincadeiras"? Ou, como na escola de antigamente, confiava-se no mata-borrão para apagar ou remediar certos excessos líquidos? É certo que nos tempos que correm consomem-se pílulas, mesmo do dia seguinte, como quem come gomas ou se chupa rebuçados da tosse, mas lá vem o dia em que a cântara parte a asa e mesmo sob a alçada da legalidade, não cheira nada bem a perspectiva de um aborto a uma criança, porventura de forma recorrente. E ser mãe adolescente, não sendo, infelizmente novidade, também não se afigura como positivo para nenhuma das partes. Os maus resultados sobram para todos, até para os pais que, invariavelmente, seguindo uma atitude de "deixa andar", de facilitismo e excessiva permissividade, criam as bases certinhas para estas brincadeirinhas de crianças a fazer de adultos.

Mesmo que lhe causem confusão estas coisas a destempo, o Venâncio voltou os olhos para o jornal desportivo e rematou bem à sua maneira, a de quem já não tem pachorra para debates e arrebates de moralidade ou falta dela: - Se der merda, alguém que limpe! E para certas borradelas não há mata-borrão que valha.

Continuou distraído, o Venâncio, a ler uma qualquer notícia sobre o tema das eleições no Sporting onde um labrego chamado Bruno Carvalho, como lapa, parece teimar em não se despegar do poder num clube histórico, mas poderia muito bem ter lido que as mães adolescentes em Portugal são mais de duas mil por ano, seis por dia, e só não são mais porque a pastilha faz "milagres" e os abortos são mais que muitos. Afinal de contas, ali, bem ao lado do Venâncio, a estatística poderia estar a consolidar-se.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E enfim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

31 de julho de 2018

Sporting sempre!



Um Domingo à tarde, em pleno Verão. Por cá já muitos emigrantes em merecido período de férias, a ajudar a encher as estradas, os restaurantes e as esplanadas. 
Nunca fui emigrante mas percebo e compreendo que esta nossa mania portuguesa dos saudosismos leva-nos a querer encher o corpo e a alma revendo pessoas, lugares e coisas mal se cruze a fronteira. Ora se o Casimiro esteve três dias a banhos no Gerês e quando chegou sentiu-se como estivesse ausente três anos, não surpreende que o Manel da Zira, depois de um ano longe de Guisande, logo que chegado à aldeia, mesmo antes de rever a família, passe por Espinho, para ver e sentir o mar e embriagar-se daquele ar salgado e sentir no rosto as frescas nortadas, as mesmas das idas à praia em solteiro. Já o Chico do Albertino, logo que arrumadas as trouxas vai direitinho à Tasca da Aida encostar-se ao balcão e beber o melhor "paralelo" do mundo e arredores, incluindo a Suiça. A Fernanda do Neves, essa faz questão de ir a Fátima agradecer a Nossa Senhora e aos pastorinhos. No regresso faz paragem na Mealhada, tão sagrada quanto a da Cova da Iria, e ver regalada na travessa um rosário de pedaços dourados de tenro leitão, seja no Virgílio, no Pedro, na Meta ou no Rocha (este já na estrada do Luso). Cá vai! Amém!

Ora o Zé Canadas, chegado da Suiça, nesse Domingo à tarde, encheu o carrão com a mulher e os filhos e foi de abalada até Castelo de Paiva e na Rua da Boavista, apontada à praça dominada pelo austero conde lá do sítio, entrou na concorrida Adega Sporting, lugar de antigas petiscadas e pela qual, nos domingos cinzentos entre  La-Chaux-des-Fonds e Le Locle, tanto suspirou, imaginando o doce sabor acanelado das rabanadas, o picante das moelas ou o vinhadalho do bucho.
Depois de alguma espera, porque ali o espaço é pequeno para tanta fama, lá arranjou uma mesa corrida e os cinco instalaram-se. - Então, o que vai ser? Para mim quero moelas e no final uma rabanada. E para vós? Quereis uma rabanada, bucho, moelas, rojões, orelha? E tu Nandinha? Vai uma punheta de bacalhau? Não querem nada?!!! Mau...
Que nada. Nem xus-nem-mus. Nem a filharada nem a esposa, de calcinha branca, medrosa de a pintar de tinto, estranhadiços naquele ambiente de tasca, mostraram qualquer interesse na petiscada. O Canadas percebeu o recado de tantos narizes torcidos e logo esmoreceu. Envergonhado e rendido, pediu apenas uma rabanada e "uma malga" (de verde tinto). O empregado recolheu as toalhas e os talheres dos putativos comensais. Toda aquela mesa cheia de gente para comer uma rabanada, terá questionado, intrigado e surpreso.

O Canadas, comeu rapidamente e nunca uma rabanada de Paiva lhe soube tão amarga. Saiu triste e envergonhado e de tão acompanhado sentiu-se sozinho e desamparado. Já nada era como dantes e as trainadas de outros tempos que viveu na Adega Sporting com os amigos do namoro, já eram apenas uma saudade e desejo que o atormentava no pouco tempo desocupado na Suiça.

Confesso que fiquei com pena do Canadas, ainda por cima com o Tono Henriques a testemunhar tal infortúnio, sorrindo, maroto, por debaixo do bigode branco ainda bordado do grosso tinto.
Já de saída, ainda vi o Canadas a esgueirar-se ligeiro para o carrão e contornar apressado a praça, certamente a jurar para si próprio que para matar estas saudades de petiscada numa adega castiça de paredes de um granito duro, mais vale só que mal acompanhado. - E anda um homem a vir por aí abaixo apressado, a comer quilómetros e a contar horas para vir comer uma rabanada sozinho no meio de uma multidão a torcer o nariz! Foda-se!

27 de dezembro de 2017

Ficção - Quando ser bom cansa

Aviso prévio: Contém linguagem comum e corriqueira, mas numa apreciação politicamente correcta, pode ser entendida como incorrecta.

Se havia na aldeia de Cagadães pessoa generosa, altruísta, confidente, amigo do amigo, não era o pároco Pe. Elias, ainda que com nome do santo profeta a seu favor, ou nem sequer o presunçoso presidente da Junta, o Jacinto das Dornas, mesmo que dono de casa farta, o melhor cliente do alfaiate Carlinhos das Tesouras e condutor do melhor carrão da terra. Não! Não era nenhuma destas figuras, mesmo que na presunção de que os respectivos cargos devessem ser modelos de bons exemplos ou de melhores acções, de humildade e dedicação à causa alheia dos fregueses. Mas o povo, de longa data já desconfiado e experimentado, é das pessoas com tais responsabilidades públicas e comunitárias que menos espera em matéria de bondade e bem-fazer a favor dos outros, dos próximos ou dos afastados. Ficavam assim de fora, excluídas, estas duas “importantes” figuras da terrinha.

Posto isto, quem seria, então, a alma mais caridosa dessa típica aldeia encravada entre mar e serra? Até poder-se-ia pensar na professora D. Margaridinha, aposentada, sempre generosa nas esmolas e peditórios para a igreja, ou mesmo no Carlinhos das Cavadas, filho único, solteirão, dono de uma pequena fortuna em bens ao luar, frescas ribeiras e frondosas tapadas a perder de vista lá para a serra da Parada. Mas não, mesmo com as esmolas da velha professora ou com a banda de música e pregador na festa da Senhora do Amparo, pagos como antiga promessa pelo herdeiro das Cavadas, bem arranjada estaria a freguesia que a sua melhor alma se ficasse apenas por essas vaidosas benesses. Era, pois, quase de consideração geral que a melhor prenda humana da aldeia era o Toninho da Quintão. O homem, para além de toda a sua dedicação à arte de carpinteiro, qual S. José, tinha uma família, se não sagrada, pelo menos exemplar, e a todos ajudava. Mais do que a sua quota parte das ofertas a peditórios para as causas da igreja e da freguesia, estava sempre disponível para tudo e para todos. Nas tascas era um mãos largas, pagando rodadas a toda a gente. À sua volta não havia tristeza. Quanto a convívios era sempre o primeiro na organização e no encargo das despesas. Ele fazia parte de quase todos os movimentos da paróquia e de quase todas as confrarias e comissões de festas e festinhas. Tomou parte da direcção do Clube Desportivo de Cagadães, pagando a atletas e a árbitros, não que concordasse com os favorecimentos no apito, mas porque era assim que se "dançava" nos regionais da bola. Participou, também, em juntas e assembleias de freguesia, etc, etc, num nunca mais acabar de dedicação à sua terra e sua gente. 

Era, pois, esta uma alma exemplar e como tal uma figura querida e popular. Tanto que quisesse ele voltar a ser presidente da Junta de Cagadães e mesmo sem o apoio de qualquer partido daria uma abada ao cagão do Jacinto e seus pares da concelhia. Desejasse ele voltar a fazer parte da Comissão Fabriqueira e o padre Elias o acolheria como a uma criada roliça de cores sadias.  Mas, com a idade já a avançar para a reforma e farto de comer poeira e serradura de mogno e macacaúba, o Toninho já estava a ficar cansado de ser bom e com isso a perder a paciência como um velho serrote a perder a trava. Falando com os seus botões, enquanto moldava pinázios para portas e janelas, já não eram raras as vezes em que questionava o que tinha ganho até ali com essa sua boa e samaritana disponibilidade. Não que alguma vez esperasse receber dividendos pela sua natural forma de ser e estar, mas pelo menos quanto ao reconhecimento efectivo e afectivo da sua comunidade. É certo que reconhecia que num sentido geral era uma figura popular e por muitos realmente querida, mas também concluía, agora, mais lúcido, que de muitos outros essa era uma popularidade interesseira, daquela que os espertalhaços usam e abusam em benefício próprio.

Certo é, que fruto dessas cada vez mais regulares reflexões, quase existenciais, o Toninho da Quintão aos poucos começou a desprender-se de alguns compromissos com a freguesia e mesmo nos seus tempos livres, aparecendo menos vezes à tasca do Lacrau e com menos bondade nas esperadas rodadas. A quem lhe batia à porta, pedintes, associações de recuperação de drogados e bêbados, bombeiros ou comissões de festas, já começava a saber responder com um “fica para a próxima” ou já mesmo com um “não”, mesmo que justificando-o. A princípio muito a custo, a roer-lhe os fígados, porque contra a sua natureza, mas depois já com convicção, tornaram-se frequentes as negas, levando a desconfiar todos quantos a cada pedido ou solicitação esperassem a acostumada resposta sorridente e positiva, como se bastasse um abanão à árvore para dela caírem generosos frutos..

Em pouco tempo, esta é que era a verdade, o Toninho estava uma pessoa mudada. É certo que continuava a ser dedicado ao trabalho e à família, mas fechou quase a torneira à sua bondade e participação nas coisas da terra e a favor dos outros. E já não era uma posição que se lhe oferecesse dúvidas mas antes uma plena convicção. E quando interpelado dessa sua mudança, começou até a ser um pouco rude, ou curto e grosso como costuma classificar o povo. Os palavrões começaram a tornar-se vulgares nas suas apreciações, até ali caso raro, porque pautava-se pelos valores do respeito e simpatia. Mas agora as caralhadas saíam-lhe da boca com naturalidade e, de repente, parecia estar de mal com tudo e todos. Até o Pe. Elias que até ali lhe parecia estar à altura da sua função de pastor, desculpando-lhe o "rigor" nas contas do "venha a nós", apresentava-se-lhe agora na sua consideração como um “cheio-de-nove-horas”, interesseiro, avarento e até mesmo um rufia na forma como desconsiderava os paroquianos pobres e elevava os ricos. Já quanto ao presidente da Junta, o Jacinto das Dornas, era um “merdas” um "caga-latas" vaidoso, arrogante, de sorrisinho hipócrita, colector discreto das comissões dos empreiteiros do regime como se a discrição e o "saber fazê-las" não beliscasse a camada de honestidade.

Por outro lado, perante situações que antes, no exercício de cidadania, procurava resolver ou fazer com que resolvessem, mostrava-se agora indiferente e até revoltado. Ainda há dias, passando na Travessa dos Concharinhas viu que a rede pública de água estava com uma fissura perdendo uma grande quantidade de água. Noutros tempos teria de imediato telefonado para a companhia das águas  a avisar da avaria, mas agora, passando indiferente com o carro por cima da enxurrada de água, comentava para si próprio: - Que se fodam! Cabrões de merda que ainda há tempos, porque atrasei um dia a pagar a factura da água, tiveram a puta da lata de me cobrar juros de mora. É deixá-la correr. Está por conta do dono!
Já depois desse dilúvio, porque se andava em preparação para eleições para a Junta, foi convidado pelo Jacinto das Dornas a fazer parte da lista. Recusou, tanto educadamente quanto possível, mas já depois de o despachar, comentou para si próprio: - Vai-te foder, Jacintinho! Querias era mama! Alguém que te fizesse o trabalho para andares aí feito cagão a mostrar os dentes. Já mamas que chegue, incompetente de merda. O povo que abra os olhos! À minha custa, não! Vai-te foder!

Até aí, mesmo para algumas pessoas que sabia que por inveja lhe cortavam na casaca, nas suas costas, claro, mostrava-se indiferente à ofensa, sempre simpático e disponível, quase dando a outra face, mas agora perdeu essa paciência e a recomendação da doutrina e há dias sabendo por terceiros que o Zézinho Faneca, entre uma barba e um cabelo, esteve a dizer mal de si na barbearia do Alfredinho, confrontou-o à saída da tasca do Lacrau: - Ó meu grande filho da puta! Andas para aí feito tagarela, armado em cobarde a dizer mal de mim sem que eu te tenha feito algum mal? Qual é o teu problema? Queres que te amasse os cornos? Trata da tua vida senão tenho que te partir as bentas! - O Faneca, esperando o habitual e cordial cumprimento, ficou atordoado por esta reacção e mudou de cor para um branco pálido e mal conseguiu bocejar uma mentirosa negação. Foi ligeiro para o carro, como um rafeirito assustado, com o rabinho entre as pernas. Nunca mais lhe cortou na casaca e agora nas suas caminhadas desvia-se se o vir na sua direcção.

Poderiam ser aqui apontados mais exemplos dessa mudança do Toninho da Quintão, mas as descritas demonstram por si só que por vezes um homem cansa-se de ser bom. Ora verdade seja dita, na nossa sociedade sempre houve o pecado de se pretender abusar da bondade e generosidade de quem é bom e quase apetece dizer ou concluir que para gente má a bondade é um desperdício e porventura o Toninho, mesmo que um pouco tardiamente, chegou à sábia conclusão que a bondade é só para quem a faz por merecer e não para quem a dá como adquirida.  
Poderemos então concluir que o Toninho da Quintão deixou de ser uma alma boa? Talvez não! Quando muito aprendeu a distribuir a bondade apenas a quem a merece. Ora, dirá ele, os cabrões e filhos-da-puta deste mundo e de Cagadães não merecem qualquer gesto de bondade. Merecem mesmo um valente pontapé no cú ou bem apontado aos tomates, mas, vá lá, bondosamente, pelo menos a total indiferença.

Nunca é tarde para aprender e o Toninho, carpinteiro, de tanto "serrar" na bondade desperdiçada, aprendeu às suas custas. É que ser bom e generoso para cabrões e filhos da puta, cansa. É como "chover no molhado" ou "dar pérolas a porcos". Um desperdício. 

2 de junho de 2014

Podia ser verdade… D. Sancho II

 

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Agora que o Condado Guisandensis  até já tem um rei, seria interessante que a governação pudesse ser entregue a esse D. Sancho II de caracóis e barba rebelde. É verdade que a História o considera como "um rei ausente" e que acabou  "escorraçado" das terras portucalenses, indo acabar os seus dias sem glória a Toledo - Castela, mas certamente que poderia fazer grandes cousas a favor deste nosso condado.


No estado em que estão as coisas, algumas poderiam ser resolvidas à espada, nem que esta fosse política e correctamente substituída por um pau de marmeleiro. Por exemplo, poderia começar por quem no Monte do Viso andou a queimar lixos de limpezas e ali deixou o monte de cinzas e restos da fogueira junto à escada/bancada. De seguida poderia aplicar a justiça real a quem deixou espalhadas no chão do terreiro do mesmo Monte do Viso umas cintas plásticas que terão sido utilizadas para prender uma rede de ensombramento num recente encontro de idosos. Limpeza e asseio não é para todos porque alguém se esqueceu que depois da festa e do desmontar da barraca há que limpar o que se sujou.


Será certamente curto o reinado deste rei D. Sancho II, que até poderia ser o rei Artur de Camelot e da Távola Redonda, mas para além de reinar sobre o real evento da Viagem Medieval ao Reino das Fêveras e do Porco-no-Espeto, lá para os calores de Agosto, poderia no entretanto ser usado em nosso benefício, pelo menos nesta fase em que a governação da União de Juntas de Freguesia está numa espécie de reino de faz-de-conta.


Podia ser verdade...mas o mais importante por agora, é dar os parabéns ao Artur por ser figura de cartaz. Tem figura e estilo. Parabéns!

26 de maio de 2014

Podia ser verdade…. Passadiço na ribeira da Mota

 

Pode já ninguém lembrar-se, mas as obras do que seria o Parque de Lazer da Ribeira da Mota, próximo da ponte da Lavandeira, foi uma das bandeiras do programa eleitoral da lista do Partido Socialista nas eleições autárquicas de 2009 para a freguesia de Guisande. Claro que foi uma das muitas promessas por cumprir. Nada se fez como, pelo contrário, o espaço original, com alguma vegetação e árvores, foi destruído com o depósito de terras e britas que ali funcionou durante as obras de construção da A32, sendo que ninguém sabe quanto rendeu tal aluguer. Uma triste tristeza mas nada que espante tal a miséria de governação a que estivemos sujeitos.


Entretanto, e podia ser verdade, sabe-se que uma das primeiras obras a realizar no território de Guisande pela futura Junta da União de Freguesias de Lobão, Gião, Louredo e Guisande, será a construção de um passadiço e circuito na margem da ribeira da Mota, desde o lugar da Igreja até ao lugar do Reguengo, sendo que a obra será para continuar para norte passando pela ponte do Cascão entre Louredo e Gião e continuando pelo menos até ao lugar da Mota já em território de Canedo.


Esta obra, a exemplo do que já acontece nas Caldas de S. Jorge, Lobão e Fiães, junto ao rio Uíma, permitirá a prática saudável de passeios e caminhadas junto ao rio num ambiente de natureza, podendo-se ouvir o coaxar das rãs e sinfonias de melros e outras passaradas canoras. Podia ser verdade…

Abaixo algumas imagens de como poderá ficar (clicar para ampliar):

 

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16 de janeiro de 2014

Os Loureiros

 


Na aldeia de Sandiães não havia família mais numerosa que a dos Loureiros, que só à sua conta formava quase o lugar inteiro de Casal do Viso.

O rasto da origem da família recuava a Bonifácio Loureiro, bisavô daquela gente toda. Ainda criançola e de pés descalços viera ter a Sandiães, a casa de um parente afastado, mandado e recomendado pelos pais, pobres caseiros dos lados de Cabreiros, com pedido de lhe dar carga de trabalho e rédea curta. Em troca receberia apenas a escola primária e pouco mais que uma côdea molhada de caldo de couves e feijões.

Quase de origem misteriosa, que as poucas falas adensavam,  cresceu e fez-se homem o Bonifácio Loureiro, que à custa de tanto trabalho e de um casamento feliz e espertalhão com a Alzirinha, filha única do João dos Travassos, timbrado debaixo de uma meda de palha à sombra do estio de um Agosto, em poucos anos conseguiu aumentar o rol de leiras, várzeas e tapadas e morreu de velhinho com fama de lavrador abastado com bens ao sol e ao luar e várias cabeças de gado a pastar pelos viçosos lameiros.

Deixou uma corja de filhos e filhas que entre si dividiram propriedades e nelas, dispostas ao longo do velho caminho, edificaram  um casario juntinho como ramos apegados ao mesmo tronco. É esta, pois, a breve história da origem dos Loureiros em Sandiães.

Unida nessa fraternidade serrana, nunca ninguém subtraiu a fama de trabalhadores a essa famelga. Lavradores, pedreiros e trolhas, os Loureiros eram exemplos de como se faz vida cavando e construindo de sol a sol. 

Apesar dessa imagem de mouros e gente de trabalho, os Loureiros não gozavam de grande fama na freguesia porque poucas vezes iam ao redil do padre Arnaldo e deste pouca farinha faziam da cantilena de que nem só de pão vive o homem. Desde o mais velho, o Joaquim até à mais nova, a Celina, os Loureiros gostavam pouco de missa e muito menos de sermões. Por desfastio, e porque até por entre tojo e carqueja brotam as mais delicadas flores, eram, todos eles, devotos zelosos de S. Tiago, que se abrigava na capela do lugar e onde, lá pelos calores de Julho, se celebrava uma rija romaria. 

Por essa altura, era ver os Loureiros, zelosos e vaidosos, ou  na sua opa escarlate a empunhar a vara do juiz da festa ou a segurarem as pernas da aranha do pálio que regava de sombra a careca macia do padre Arnaldo, ou então na sacristia a recolherem as esmolas e promessas. Mesmo na véspera, a Celina, a Rosa e  Cassilda bordejavam o arraial e capela de enfeites e grinaldas de papel de crepe.

Porém, dançada a última cantiga e estourado o último foguete, a famelga voltava à aridez do trabalho e da canseira nos campos, e para com as demais festas, fossem elas quais fossem, mesmo que pelo Natal ou Reis, a carranca de Lazarim era a cara com que recebiam peditórios e rusgas de Janeiras. Para estas, mal se ouvia o tinir do ferrinho e o chocalhar da pandeireta lá no alto da curva do caminho velho, trancas à porta e luzes amortiçadas. – Que passassem e andassem! - Dali, esmolas só para o S. Tiago!


Américo Almeida