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11 de outubro de 2022

Saber ocupar o lugar

A história da introdução dos bancos nas nossas igrejas por si só daria para uma longa história. Bastará dizer que originalmente as igrejas não tinham bancos e era comum os fiéis participarem nos serviços todo o tempo de pé, o que ainda acontece nas igrejas ortodoxas orientais. 

Por esses primeiros tempos uma liturgia comportava várias movimentações. Mais tarde após a reforma protestante e sobretudo por influência da igreja anglicana começaram a ser introduzidos bancos, mesmo fabricados e pagos pelos próprios fiéis que assim os tinham como seus. Nos Estados Unidos, para onde a prática passou, chegou a ser autorizado o aluguer contra um pagamento. Adiante, que esta coisa de bancos nas igrejas daria para uma homilia longa. 

Quem frequenta as nossas igrejas e participa nas suas missas, pelo menos com a frequência dominical, sabe que é assim: Há pessoas que ocupam quase sempre os mesmos lugares e têm-nos como “seus”. Ali sentem-se melhor e mais preparados “espiritualmente”. Ou porque mais recatados, num sítio menos exposto, ou o contrário, mais perto ou mais longe dos olhares do padre, ou pela simpatia de quem tem por vizinhos e amigos, até para fugir das correntes de ar, etc. Outros, ainda, meios escondidos nos corredores ou até mesmo com um pé dentro e outra fora da igreja. Há ainda quem, desde que não chova, fique mesmo da parte de fora, e cumpre o preceito sem sequer ver a cara do padre ou a hóstia sagrada.

Seja que por motivo for, essa é uma realidade ainda muito nítida, mesmo que já não tanto como noutros tempos, em que havia uma nítida separação de género, com os homens na parte da frente e as mulheres na de trás.

Na nossa igreja de Guisande, esta realidade também acontece mesmo que de forma já não tão vincada pois com a crescente redução de participantes, os lugares vagos por vezes são mais que os ocupados e assim permite uma escolha mais alargada de lugar.

Mas, claro está, este hábito ou mesmo tradição – chamemos-lhe assim – só é percebida, compreendida e respeitada por quem frequenta com regularidade esses espaços de culto. 

Não surpreende, pois, que sempre que vem à igreja alguém de fora e mesmo pessoas mais novas, esporadicamente, por vezes ocupem, sem saber, esses lugares “certos” fazendo com que os habituais tenham que procurar outro e sair da sua zona de conforto. Conheço casos que quando alguém chega à igreja e vê o “seu” lugar ocupado, dá o recado ao ocupante ou até mesmo abandona a igreja. Extremos.

Mas tomando esta situação como uma analogia, podemos extrapolá-la para outras realidades e assim em muitas situações da nossa vida e quotidiano, por vezes lá chegam os mais novos e não habituais e habituados ao “status quo” e tomam o lugar de alguém, sem qualquer incómodo ou esmorecimento. 

E, todavia, mesmo que em rigor esses “lugares” não tenham lugar pago e cativo, como nas bancadas de futebol, ficaria sempre bem uma palavrinha, uma satisfação, um saber quem por ali costuma estar. Em resumo, adaptar-se e tomar à letra os ditados “em Roma sê romano” ou mais prosaicamente “à terra onde fores ter, faz como vires fazer”.

Mas nos tempos que correm, essas preocupações respeitosas e decorrentes de tradições pouco ou nada valem. Quem não as conhece nem procura conhecer, naturalmente que lhes passa por cima com a ignorância de um analfabeto a tentar ler sem o conseguir.

É o que é! 

Nestas como em muitas outras coisas, cada vez mais menos.

10 de outubro de 2022

Clientes e minotauros

O meu fornecedor de telecomunicações é a Meo. Não por ser a melhor, mas é o que se pode arranjar na sentença do mal o menor.

Prezo-me por nunca  ter deixado de pagar uma factura a tempo e horas, no máximo, com um dia dia de atraso, isto porque, por opção, não tenho débito directo, e assim sujeito ao esquecimento.

Mas ontem, estava já deitado quando me lembrei que o prazo limite era o dia 7 e se o fizesse ainda hoje, mesmo que à primeira hora, já seriam 3 dias de incumprimento. Que remédio, saltar da cama e ir ao computador ajustar as contas, no limite dos 2 dias. 

Não sei se dormi melhor do que dormiria, caso não o tivesse feito, mas pelo sim pelo não, ficou feito.

Mas admito que esta situação acaba por ser caricata porque creio que poucos farão o mesmo. A regra até será arrastar ao limite dos limites, até à ameaça de corte. De resto, numa certa empresa de que me falaram, a norma é mesmo essa, os atrasos e incumprimentos são recorrentes e por conseguinte a suspensão do serviço é também frequente, com a agravante de ser indispensável à actividade.

 O certo é que, pagando, mesmo com o atraso do costume, por vezes já com duas ou três facturas somadas, a coisa vai rolando, porque a operadora naturalmente quer evitar ao máximo perder o cliente.

Mas dou comigo a pensar, novamente, nestas como noutras coisas, qual é, afinal, o merecimento, ou o oposto, o desmerecimento por um cliente ser fiel e cumpridor, ou o contrário: Quem quer mesmo saber? Eu acho que nenhum, e até, feitas as contas, os incumpridores são regra geral os mais beneficiados, como naquela parábola evangélica do filho pródigo em que o desbaratador da fortuna é recebido com beijos, abraços e jantarada com vitelo gordo. O outro, o certinho, o cumpridor, esse continua no campo a trabalhar para o bem comum, sem prémios ou distinções.

Mas isto acontece porque acima de tudo, para as empresas, como no caso as operadores de telecomunicações, mas outras mais, desde logo como os bancos, etc, os clientes já deixaram há muito de ser pessoas, mas apenas simples números com uma data de dados associados. 

Nas agências há cada vez menos pessoas e tudo é encaminhado para processos digitais. Somos atendidos por vozes virtuais e encaminhados por um labirinto de opções, como um minotauro a dar marradas nas paredes até que encontre uma saída. 

Por conseguinte, os valores associados ao respeito e cumprimento pelos acordos, pela seriedade, honestidade e verticalidade, em rigor nada valem ou significam. 

Os algoritmos que gerem as relações entre empresas e clientes, não são programados para fazerem distinções positivas e premiarem os valores e atitudes que nos foram ensinados pelos nossos pais como sendo os correctos.

As coisas são como são. 

Tudo se resume a números. O Sr. António, o Sr. Justino ou a Sr.ºa Josefina, são um qualquer código binário composto por zeros e uns.

Para o caso, o Sr. Américo não passa disto:

01000001 01101101 11101001 01110010 01101001 01100011 01101111

29 de setembro de 2022

Futebóis, cães e gatos


A propósito da discussão que anda por aí sobre se Ronaldo, Pepe, Fernando Santos e companhia já estão a mais na selecção portuguesa, se deviam já ter dado o lugar a outros jovens e igualmente talentosos, ou, se pelo contrário, ainda têm muito para dar, tanto agora no Mundial do Qatar, como depois no Europeu de 2024 e ainda de novo no Mundial de 2026 e por aí fora.

Por mim é-me indiferente, mas parece-me que para o caso, não importa confundir reconhecimento e agradecimento. Todos reconhecemos o valor e contributo de todos esses jogadores.

Tudo tem o seu tempo e seu lugar. A indústria do futebol é isso mesmo, uma indústria em que tudo gira em torno de dinheiro.

Eu não vejo a selecção como uma coisa supra-patriótica e transcendental, mas antes um entretenimento. 

É apenas um grupo de jogadores de elite quem vive e ganha muito bem, porventura mais com um prémio de jogo que a maioria dos portugueses a trabalharem toda a vida numa fábrica ou na agricultura.

Não fazem nada de borla e qualquer vitória, só lhes acrescenta mais prestígio e mais dinheiro. Mesmo que num sector estupidamente exorbitante na relação do rendimento/benefício, não os invejo. Só não lhes dou valor acima do que é suposto dar.

São os futebolistas que ganham milhões anualmente, doutores, engenheiros, médicos, investigadores, cientistas, biólogos, etc, etc, que contribuiem para o crescimento da ciência, da saúde, da humanidade? Não! Apenas alguém com habilidade para dar uns chutos na bola. Alguns, muitos, apenas com formação básica.

Por conseguinte, o ponto aqui é tratar-se de pragmatismo.

Ora o pragmatismo nestas coisas indica que há lugar e tempo para o reconhecimento, para o agradecimento, mas também para a renovação. Em suma, seguir em frente.

Mas outros, naturalmente, têm uma diferente opinião. Regra geral são esses que compram o bilhetinho, cachecóis e camisolas, pagam as quotas, leem jornais e assinam canais premium, contribuindo para que toda essa indústria prospere. Alguém tem que pagar os Bentleys, os Porches, os Jaguares, os iates, a vidinha boa da malta da bola, etc. Estão no seu direito e há sempre a quem o dinheiro sobeje.

As coisas são como são. Gosto de futebol, tenho um clube de simpatia, gosto das selecções na justa medida, embora os veja cada vez menos. Seguramente que já não os vejo com lirismos ou paixões exarcebadas. 

Como dizia um antigo spot publicitário "um cão é um cão, um gato é um gato. Tudo no seu justo lugar, tempo e medida.

27 de setembro de 2022

Falar bem, maldizer, o fácil, o difícil

Não tenho muitos amigos no Facebook.  Em número ainda não reuni 500. Talvez porque desses terei pedido amizade apenas a meia dúzia. De todos os demais tive o privilégio de me terem solicitado amizade. Também terei recusado outros tantos, desconhecidos, ou de raparigas bonitas com nomes abrasileirados que nos aparecem por cá com uns convites para partilhar coisas boas. Mas como sou de um tempo em que aprendi a desconfiar de grandes esmolas a troca de palha, prefiro recusar tais generosas "amizades".

Desses quatrocentos e muitos amigos que tenho nesta rede social, naturalmente que serão bem menos os que me têm mesmo como amigo e  menos os que tenho como tal. Alguns até parecem inimigos, mas, vá lá, toleram-se.

Mas ainda bem que assim é. Fossem esses quatrocentos e muitos, bons e verdadeiros amigos, daria uma trabalheira a tratar deles. Sim, porque a amizade, é dos livros, deve ser cultivada. Ora cultivar amigos e amizades não é como plantar batatas, cebolas ou alhos. É bem mais trabalhoso e requer o uso de bom estrume, rega frequente e cuidado na protecção contra as inconstâncias do tempo e parasitas.

De certo modo, um cultivador de amigos e amizades é como um lavrador, que comprometido com as suas culturas, não tem horas para se deitar, para comer, enfim, não tem tempo para tratar de si próprio porque por vezes preocupado com os outros.

Nos tempos que vão fazendo os dias presentes, convenhamos, a malta de um modo geral não gosta de empregos de lavrador. Prefere o certo ao incerto, pegar e despegar a horas normais; Andar de espinha direita, com mãos sem calos e unhas sem terra ou estrume. Talvez por isso o negócio de quem pinta e decora unhas está em alta.

Não perdendo o fio à meada, dizia que de todos classificados pelo Facebook como meus amigos, naturalmente que sempre que tenho oportunidade e pretexto, sobre um ou outro mais próximos, gosto de os enaltecer, nas suas virtudes, mesmo que com alguns humanos defeitos, com sentimento mas sem paninhos quentes. No fundo, exercer e aplicar a tal analogia de usar bom estrume nas plantas para que estas sejam produtivas.

Mas, por isso, dou comigo a pensar e mesmo a confirmar, que nestes coisas de falar e escrever bem sobre os outros, os nossos amigos, mesmo que não entrando em intimidades, mas apenas raspando no lado público, é bem mais difícil do que falar mal, de maldizer, criticar. 

Não supreende, pois, que a norma, porque mais fácil, seja o dizer mal, desprestigiar, desconsiderar. E estas acções nem precisam ser executadas na forma de escrita. Há muitas outras formas, por vezes mais penosas e acutilantes  porque subliminares, ocultas. E deste mal padecemos todos. Não me excluo. 

A vida, é pois, uma aprendizagem permanente. É como um mar amplo em que, desde que se aviste um farol a rasgar o breu da noite, há sempre tempo de virar o leme, de fugir aos penhascos traiçoeiros, em última análise, evitar o naufrágio.

Em conclusão ou remate, devemos sempre teimar em realçar o lado mais positivo das coisas e de modo especial, das pessoas. Terão, naturalmente, facetas escondidas, mas talvez nelas a luz supere a escuridão e bastará isso para prevalecer um centelha de humanidade. Afinal, até as plantas mais espinhosas dão doces e saborosos frutos.

19 de setembro de 2022

Raridades


Não sou muito, ou até mesmo nada, de realitys shows na televisão. Mas de quando em vez vejo com agrado o documentário observacional que passa no canal Odisseia, "Uma quinta, 9 filhos e 1000 ovelhas", no original "Our Yorkshire Farm".

A série acompanhou durante 5 anos o dia-a-dia de uma família proprietária de uma quinta (Ravenseat) com um enorme rebanho de ovelhas, localizada nas típicas chanercas inglesas na região de Yorkshire.

Para além da já por si interessante história da família, em que Amanda Owen, aos 19 anos deixa uma vida tranquila e confortável de modelo, na cidade, e decide como opção de vida dedicar-se a ser pastora e com ligação à terra. 

Com 21 conheceu e casou em 2000 com Clive, um criador de ovelhas, com 42 anos. De lá para cá a família cresceu e tem 9 filhos, a mais velha a entrar na universidade em Biomedicina e a a mais nova de tenra idade. A acrescentar aos 9 filhos com Amanda, Clive tem mais dois, da sua primeira esposa.

Para além de tudo, do género televisivo, da sua exposição pública, que lhes confere  inconvenientes mas também mediatismo e popularidade e dela receita e proventos, desde logo em venda de produtos da quinta, livros publicados e outros artigos de marketings, etc, percebe-se que ali há  de facto uma família concreta no conceito clássico do termo.  Mas simultaneamnete uma família normal sujeita a diferentes momentos e tensões.

Diferentes idades, entreajuda, com os mais velhos a olharem pelos mais novos, momentos de brincadeira e contacto com a natureza, com a terra e os animais, a aprendizagem, o enfrentar das realidades e o ultrapassar dificuldades, sempre com o trabalho como base. Em suma, a conquista da autonomia, da independência na vida tal qual ela é, o que é raro nos dias que correm.

A par disso, naturalmente que com todas as exigências educativas. Os filhos do casal frequentam a escola, mesmo que percorrendo longas distâncias diariamente por estradas sinuosas e estreitas até à cidade mais próxima.

Vê-se que o dia-a-dia é duro, trabalhoso, incerto e inconstante como todos os trabalho ou actividades relacionadas à agricultura e pecuária, tanto mais naquela região, muito sujeita à inconstância e particularidades do tempo, habitualmente chuvoso, frio e nevoso no Inverno.

Mas de tudo, ressalta a naturalidade como aquelas crianças se relacionam em família, aos pais e irmãos, à quinta, à terra, à natureza e aos animais. Sem descontrolo, sem excessiva protecção. A valorização do trabalho na ajuda aos pais. Um bom testemunho como crescem e se educam mulheres e homens a sério capazes de cedo serem autónomos e determinados.

Nada de excessivos confortos, mimos e proteccioniso, que vai sendo norma na nossa moderna sociedade.

Esta família, por todos os aspectos inerentes ao mediatismo e escrutínio a que está sujeita, naturalmente que está condicionada nos diferentes momentos do dia-a-dia, mas quem assiste com regularidade, percebe que apesar disso há ali uma autenticidade, que já deixou de ser norma. 

Entretanto, como nada é perfeito, e que só reforça alguma normalidade, foi noticiado em Junho passado que o casal Amanda e Clive se separaram, mantendo no entanto, como prioridade, a educação dos 9 filhos e mesmo a trabalharem juntos na Quinta Ravenseat. Não sabemos, obviamente, os motivos do divórcio, mas não será dispiciendo supor que a exposição pública terá contribuido para alguma instabilidade e tensão, bem como, não menos importante, a diferença de idades entre ambos (20), que naturalmente não se nota quando mais novos mas que se acentua com a velhice.

Se porventura esta realidade vivida em Ravenseat decorresse em Portugal (e quantas famílias modernas, mas ligadas à terra e que vivem do seu trabalho, terão 8 filhos?), dou comigo a questionar se aquelas crianças não seriam retiradas institucionalmente aos pais e estes acusados de incapacidade, desleixo ou de exploração infantil? Sim, porque em Portugal somos o topo, um paíz civilizado, na linha da frente educacional, em que às crianças nada falta, nada se recusa, nada se priva, excepto a desresponsabilização, o trabalho e o mexer no estrume e na terra.

É certo que mesmo em Portugal, no país interior ainda muito ligado à terra, até haverá exemplos semelhantes, em que as crianças também são inseridas cedo na realidade da vida e do trabalho, mas regra geral num contexto de pobreza e raramente como opção por um modo de vida mais terra-a-terra, mais natural, mais primordial, se quisermos.

Digo isto com a naturalidade de quem aos 5 anos já guardava gado e ajudava nas lides da casa e do campo. 

Mas nesse tempo não havia o canal Odisseia. O dia-a-dia já era, em si, uma odisseia.

Mas, voltando aos tempos actuais, modernos, não deixa de ser interessante que o que devia ser a coisa mais natural do mundo, seja, afinal, uma raridade, uma excentricidade, digna de passar na televisão, tornando-se popular aos olhos de milhões de pessoas que seguem a série documental..

15 de setembro de 2022

Efemeridade

Ainda ontem, durante a minha corrida, cruzei-me duas vezes com ele, um gato estilo siamês, ali entre a rotunda da Farrapa e a Rua das Fogaceiras (Urbanização de Linhares). Na parte inicial, fugiu assustado à minha frente, subindo com agilidade ao mato, mesmo entre tojo e silvas. Passado algum tempo, no regresso, 10 Km depois, já na berma, com ares de assustado, mas manteve-se calmo e parado enquanto eu passava ofegante. Percebeu que a minha corrida não era de perseguição mas a de um tolo qualquer a cansar o corpo.

Era, pois, um gato que por ali andava. De resto já o tinha visto dias antes.

Hoje, novamente no regresso da corrida, dei com ele nas piores circunstâncias, já na valeta, defunto por uma forte pancada certamente de automóvel. O chão ainda ensanguentado. Teria sido durante o dia de hoje.

Um pouco antes, tinha ouvido o sino de Guisande a gemer a finados. Não foi pelo gato, pois não, mas poderia ter sido. 

Rais´parta a vida como ela é!  Uma feliz criatura num dia, vivaço e livre, e no dia seguinte uma amálgama de nada, inerte, sem vida. 

Estragou-me o dia. Não o gato, mas o seu triste fim. Ainda tinha muita gatice pela frente, mas o destino ou o raio de gente apressada a conduzir que, mesmo podendo, nem se desvia, encurtaram-lhe a vida, ali, bem perto do território que marcara como seu.

Acredito que os animais também têm alma. Se não a têm, têm a que lhe damos.

Paz à sua alma!

7 de setembro de 2022

A vida em papéis




Quando temos algum tempo livre, mesmo que já no queimar dos últimos cartuchos de uma pausa no trabalho, designado por muitos, de férias, há a tentação de deitar mãos à obra e mexer em velhas papeladas, dando o devido destaque a umas, organizando outras e queimando outras mais. 

Com esta minha velha mania de guardar caixas e embalagens e outros papéis (e ainda bem, porque à conta disso tenho cadernetas de cromos dos anos 70 a valerem 500 e mais euros, e cromos a valerem 5 euros por unidade), às tantas damos de caras com a box do telemóvel Nokia 6600, da máquina fotográfica Sony DSC-P71, do CD da Sapo ADSL, de uma colecção do “Bits & Bytes” – suplemento do Jornal de Notícias, da colecção da revista PC Guia dos anos 90,  revistas dos anos 70, como a Tele Semana e a Crónica Feminina, etc, etc, coisas e tecnologias que ainda há duas ou três dezenas de anos eram a cereja no topo do bolo e que hoje nos parecem as velhas mocas dos homens das cavernas.

As coisas são como são. Nem sempre é saudável mexer no estrume com que plantamos e fizemos crescer as nossas vivências e convivências, mas verdade se diga, tudo o que somos hoje, para o bem e para o mal, somos o fruto dessas árvores.

E posto isto nestes termos, porque guardados, damos de cara com os cadernos diários dos primeiros tempos de escola dos nossos filhos, e dos seus desenhos inocentes, e percebemos que, como num flash, passaram vinte anos, duas décadas. 

E o lugar comum de que "ainda parece que foi ontem" torna-se mesmo realidade.

Ficamos assim atados nesta dicotomia do que é mais certo, se o guardar tudo aquilo que um dia nos vem dar um murro no estômago sobre a saudade do reviver em imagens o tempo passado se, pelo contrário, queimar tudo na primeira oportunidade e com isso fazer das memórias e testemunhos apenas cinza que o vento leva.

Tem que se lhe diga. E se há gente que queima os vestígios do seu passado sem o mínimo de esmorecimento, já outros, como eu, teimam em guardar tudo o que um dia nos possa abrir a janela do passado, mesmo que isso nos possa fazer chorar. Se de dor ou de saudade, ou de vergonha, isso pouco importa.

Mas, verdade se diga, com tanto já vivido e incerto quanto ao que virá,  pouco importa mudar agora a agulha como num velho gira-discos. O sulco já é demasiado profundo.

5 de setembro de 2022

A vida em papelada



Quando temos algum tempo livre, mesmo que já no queimar dos últimos cartuchos de uma pausa no trabalho, designado por muitos, de férias, há a tentação de deitar mãos à obra e mexer em velhas papeladas, dando o devido destaque a umas, organizando outras e queimando outras mais. 

Com esta minha velha mania de guardar caixas e embalagens e outros papéis (e ainda bem, porque à conta disso tenho cadernetas de cromos dos anos 70 a valerem 500 e mais euros, e cromos a valerem 5 euros por unidade), às tantas damos de caras com a box do telemóvel Nokia 6600, da máquina fotográfica Sony DSC-P71, do CD da Sapo ADSL, de uma colecção do “Bits & Bytes” – suplemento do Jornal de Notícias, da colecção da revista PC Guia dos anos 90,  revistas dos anos 70, como a Tele Semana e a Crónica Feminina, etc, etc, coisas e tecnologias que ainda há duas ou três dezenas de anos eram a cereja no topo do bolo e que hoje nos parecem as velhas mocas dos homens das cavernas.

As coisas são como são. Nem sempre é saudável mexer no estrume com que plantamos e fizemos crescer as nossas vivências e convivências, mas verdade se diga, tudo o que somos hoje, para o bem e para o mal, somos o fruto dessas árvores.

E posto isto nestes termos, porque guardados, damos de cara com os cadernos diários dos primeiros tempos de escola dos nossos filhos, e dos seus desenhos inocentes, e percebemos que, como num flash, passaram vinte anos, duas décadas. 

E o lugar comum de que "ainda parece que foi ontem" torna-se mesmo realidade.

Ficamos assim atados nesta dicotomia do que é mais certo, se o guardar tudo aquilo que um dia nos vem dar um murro no estômago sobre a saudade do reviver em imagens o tempo passado se, pelo contrário, queimar tudo na primeira oportunidade e com isso fazer das memórias e testemunhos apenas cinza que o vento leva.

Tem que se lhe diga. E se há gente que queima os vestígios do seu passado sem o mínimo de esmorecimento, já outros, como eu, teimam em guardar tudo o que um dia nos possa abrir a janela do passado, mesmo que isso nos possa fazer chorar. Se de dor ou de saudade, ou de vergonha, isso pouco importa.

Mas, verdade se diga, com tanto já vivido e incerto quanto ao que virá,  pouco importa mudar agora a agulha como num velho gira-discos. O sulco já é demasiado profundo.

31 de agosto de 2022

Carlos Paião - 34 anos

Para além de tudo, e como foi tanto tanto, a fatídica data da morte de Carlos Paião, a 26 de Agosto de 1988, ficará sempre associada à minha data de casamento, que aconteceu um dia depois, porque nessa véspera de fadigas e canseiras para que tudo corresse bem, a nós, noivos, e aos familiares e amigos, foi a única coisa que a entristeceu. E ainda a entristece porque, pela circunstância, dela sempre me lembro.

Já não se fazem artistas do calibre do Paião, e em 34 anos passados aparecerem mãos cheias deles e delas, mas no geral feitos e projectados sobretudo pela máquina televisiva e do entretenimento, em que uma qualquer loura enche um arraial sem que nada, artisticamente, o justifique. 

Mas é assim que as coisas vão funcionando e quanto mais fora da linha ou da “box”, como se diz, mais gente arrastam para a frente de um palco. 

A música já não é apenas uma experiência sonora, auditiva, mas sobretudo visual, das roupas, das luzes, das poses, dos tiques. Mais do que a música, a melodia, a letra, o ritmo, importa o aspecto de quem a debita. As câmaras, que todos temos no bolso, são ávidas destas “drogas” e precisam delas como do pão para a boca.

Carlos Paião era um artista puro e daí tudo o que escrevia, compunha e cantava, era igualmente puro e mágico, e bastava ser ouvido. A sua música não precisava de condimentos para lhe dar sabor, nem de corantes e conservantes. Perdura.

Tal como a outros grandes nomes da música que partiram demasiado cedo, em que destaco Mozart (e nem me refiro aos que por força de excessos, como é comum a figuras do pop rock), fico sempre angustiado, não pelo muito e belo que produziram, mas sobretudo pelo muito mais que teriam deixado como legado caso o destino lhes tivesse concedido mais uns anos de vida, uma dezena que fosse.

Mas a vida é assim e Carlos Paião, então a caminho de uma actuação em Penalva do Castelo, ficou-se ali numa curva da EN1 perto de Rio Maior, deixando o país consternado.

Mas ainda que jovem (30 anos), deixou muito e bom e por isso continua a viver

21 de agosto de 2022

Sempre a aprender

Uma festa genuína, algures por aí. Está-se mesmo a ver!

Mas, sempre a aprender, os altifalantes não debitavam música de folclore ou de cantores pimba. Nada disso! Nada mais que um relato de futebol!!!

Eu não sei se o S. Miguel Arcanjo ou a Nª Sª da Saúde são adeptos do Porto ou do Sporting, e até acho que não são por ninguém em particular, porque são pelas pessoas e não por clubes de futebol. E gente fanática pelos clubes é o que mais há por aí e não é preciso que o fanatismo chegue a gente santificada. Era o que faltava! 

Mas, esta é novidade, e  se a moda pegar, até pode ser vantajosa para as comissões de festas. Assim, quem sabe, em vez de gastarem balúrdios em cantores pimbas e em bandas de baile, passamos a ter uns relatos de futebol. Na sexta á noite, um Arouca-Vizela, no sábado, um Braga - Famalicão, e na segunda feira, uma coisa em grande, um Benfica-Porto ou um Sporting-Benfica. 

Josés Malhoas, Toys e Zés Amaros, ponde-vos finos! A pólvora acaba de ser inventada!

18 de agosto de 2022

A inflacção é uma treta

Contou-me, hoje, o Manel do Mindo, que ontem por volta das 21:00, porque atrasado por um biscate de última hora, a modos de grávida deu-lhe, a ele e à patroa, apetites por uma "francesinha". 

 Para não irem ao engano, ligou para quatro restaurantes onde o pitéu tem fama, e ainda para mais outros três, onde à falta da francesinha marcharia qualquer coisa que lhe pusessem no prato, mas qual quê? O Wimpy, em Sanguedo, àquela hora tinha  gente à espera e a cozinha fecharia pelas 10. Os restantes, que nem pensar, porque estavam cheios e a abarrotar.

Ora o Manel, porque ainda ligou para mais dois mas ninguém atendeu, a modos de férias sem precisar de facturar,  depois de uma valente rodada de impropérios, lá decidiu, com a patroa, recolher aos aposentos domésticos e preparar uma saladinha de tomates com atum. Bem bô!

Moral da história (verdadeira), esta cena da inflacção, preços altos e dificuldades e coisa e tal, é apenas um ar que lhe deu. No geral, o povo está todo bom de saúde (graças a Deus!), incluindo a financeira. Tudo a assapar!

Cozinhar em casa numa quarta-feira? Esquece!

26 de junho de 2022

O sabor das coisas



Faz-me sempre confusão que algumas pessoas teçam elogios à paisagem e aos lugares, quando passam por elas e por eles a correr, apressados, com minutos contados e metas por destino. É, pois, um quase paradoxo, senão total. 

Não poder ver ao longe uma torre de igreja a rasgar o verde, nem um ponto branco de uma capela a luzir na crista do monte, o apreciar uma flor, o pormenor e contraste de uma folha, ver um lagarto a absorver o sol, seguir com o olhar um pássaro a saltitar de ramo em ramo, ouvir o canto lamuriento, alegre ou impetuoso de um regato ou ribeira é tudo menos saborear a natureza. E nestas coisas não podemos estar com Deus e com o diabo. São incompatíveis e os meios termos são apenas pretextos filosóficos.

Quem engole apressado um prato de assado no forno, sem se deter nos pormenores que levaram a isso, desde o que esteve na origem daquele animal sacrificado para nosso deleite, o lavrar, o semear e o colher dos ingredientes, até ao saber e paixão de quem preparou, confeccionou e serviu, não pode simplesmente exclamar, de boca cheia - Isto está bom p´ra caralho! Quem assim procede está a passar pela vida demasiado apressado, sem se deter a questionar se aquele aroma e sabor é de tomilho, de hortelã ou alecrim..

Em suma, há coisas que só nos são plenas se absorvidas da mesma forma, cheia e intensa. O resto são cantigas de trovadores mal amanhados.

31 de maio de 2022

Números astronómicos e reencarnação

Há quem goste, adore até, de assitir a “reality shows” e outros programas de entretenimento em que a nossa TV é farta, sobretudo a envolverem gente do jet-set. Afinal a nossa TV prima por espetar os espetadores com coisas de que gostam, mesmo que baseadas em boçalidades que nada acrescentam. Mas nada a obstar. Afinal na diferença e diversidade, dizem, é que está a riqueza,. 

Como nestes coisas fujo um pouco à norma, e daí na anormalidade, prefiro e gosto de documentários sobre cultura, natureza e ciências. Fascina-me tudo relacionado ao universo, ao sistema solar, às galáxias, às estrelas e aos planetas. E por aqui impressionam-me sempre os números, desde as distâncias medidas em anos-luz até à idade do universo após o big-bang, por si só uma teoria em que se procura justificar a criação  a partir do nada, ainda a idade do sol e a forma como há-de terminar os seus longos dias, expandindo-se a ponto de engolir, no caso incinerar o nosso belo berlinde azul, ambora quanto a isto, acho que pela nossa loucura a Terra há-de durar bem menos tempo. E nestes dias de guerra irracional, há dedos nervosos ao lado de botões vermelhos, prontos a isso.

Estimam os cientistas, mesmo que em controvérsias, que o universo terá cerca de 14 biliões de anos (13,82), qualquer coisa como o número 14 seguido de 12 zeros e nem importa saber se pela medida da Europa, em que um bilião são mil milhões, se dos Estados Unidos, Reino Unido e Brasil, em que um bilião afinal são mil milhões. Mais zeros menos zeros, são muiiiiiiiiitos anos.

Quanto à Terra, dizem que terá um pouco menos, ou seja 3,5 biliões. Aqui, o conceito de “pouco menos” é mesmo uma questão de semântica. 

Já o sol, a nossa estrela, terá qualquer coisita como 4,5 biliões de anos e estima-se que tem combustível (hidrogénio) para queimar (600 milhões de toneladas por segundo) no seu reactor por mais durante 5 biliões de anos. Está, pois, a metade da sua previsível vida. Mas esse processo englobará várias etapas e uma vez queimado o hidrogénio o sol consumirá os elementos remanescentes mais pesados, como o hélio, o carbono, o oxigénio e por fim o ferro  e como este não poderá ser queimado, já que a energia necessária é superior à produzida, então a nossa estrela colapsará e explodirá espalhando todos os elementos acumulados pelo universo. Afinal a continuação de um ciclo, já que em rigor todos os seres vivos, incluindo nós humanos, são formados por essa massa primordial de átomos. Em rigor, dizem os cientistas, nesse processo de transformação da parte final da vida do sol, este irá expandir-se, crescendo para o dobro, transformando-se numa "gigante vermelha", e incinerar literalmente o nosso planeta  e todos os demais que o orbitam.

Neste contexto de distâncias e idades expressas em números gigantescos, quase imensuráveis à nossa percepção terrena,  ficamos todos com a plena certeza que a nossa vida (dos humanos) e a de todos os seres vivos, animados e inanimados, não é mais que uma ínfima fracção de segundo quando comparada aos tais números astronómicos. Uma borboleta ou uma abelha vivem poucos dias ou semanas e mesmo os seres vivos com mais expectativa de vida, como algumas espécies de corais, baleias, tubarões, que podem andar pelos 200, 500 ou mesmo 1000 anos, são sempre vidas curtas. Há até um estudo de 2012 que sugere que uma esponja do mar, a Monorhaphis chuni terá a idade de 11 mil anos. Mesmo tendo em conta estes 11 mil anos, a coisa continua ínfima na escala da vida do universo, do sol e da terra.

Por conseguinte, para aqueles que acreditam que todos nós havemos de reencarnar mesmo que enquanto um animal, não restam dúvidas que durante um milhão ou bilhão de anos temos tempo de viver e reviver na pele de todos os seres vivos que existem na terra, nas águas e no ar. Podemos assim vir a ser um cão, um gato, uma cabra, um rato, uma cobra, uma minhoca, um papagaio, uma sardinha, um atum, uma lula, uma mosca, uma borboleta, um morcego, etct, etc, etc, etc,. Tempo  ao universo é o que não falta.

Assim sendo, pelo sim e pelo não, dentro do possível e desde que não nos ponham em risco, será preferível que respeitemos todos os seres vivos na sua dignidade, pois podemos vir a ser um deles. Se daqui a 100, 200, 500, mil, cem mil ou um milhão de anos, não sabemos. Mais vale prevenir.

E vamos deixar por ora esta questão, porque tanto número e ordens de grandeza deixa-nos baralhados, confusos, e a perspectiva de podermos vir a ser um qualquer insecto rastejante ou um escaravelho-da-bosta não é lá muito inspiradora e muito menos animadora, convenhamos.

Boa Terça-Feira!

12 de maio de 2022

Estados de alma


Dou razão ao amigo Luís: O Facebook não é o melhor sítio para virmos expressar as nossas dores de alma, seja na alegria, mas sobretudo na tristeza. Não porque o não possamos fazer ou não tenhamos esse direito, mas essencialmente porque não deixa de ser uma banalização dos nossos momentos mais íntimos, como se precisássemos de um palco do tamanho do mundo para o fazer, para os mostrar.

Na tristeza bastará o recolhimento e tantas vezes a solidão. E sim, o conforto dos amigos próximos, mas daqueles que nos conhecem nas nossas virtudes e misérias e não, tantas vezes, de meros desconhecidos.

Na alegria, também não importará extravasar para além do círculo de quem realmente nos quer bem e capazes de se alegraram, em comunhão, de forma verdadeiramente sentida. Ademais, podemos ter um grande "grupo de amigos" nas redes sociais mas na verdade e no geral, se espremido é um limão amargo, quase sem sumo.

Posto isto, longe de mim pretender dar lições de moral ou de comportamento, mas tenho como válido que há coisas que ainda devem ser reguladas pelo bom senso, pela razoabilidade, pela discrição. 

Não é fácil, pois não, porque no fundo queremos, de uma forma ou outra, ser sempre o centro do mundo ou o palco das atenções e é incessante a busca por despertar invejas com as nossas belas estampas, os nossos feitos, o nosso estilo de vida e as nossas vaidades ou então, em sentido oposto, procuramos com avidez a comiseração alheia para as nossas fatalidades, os nossos desencantos e as nossas tristezas. 

Em última análise, somos seres gregários e da condição evolucionista não conseguimos desprender-nos dessa teia de dependência social. Está-nos no sangue e no instinto.

2 de maio de 2022

O valor do agradecimento


Tenho, em diversas ocasiões, contribuido com donativos para causas que me sensibilizam, pessoal, animal ou pela natureza, mas com pena por não o poder fazer mais vezes e de forma mais substancial. Todavia, mesmo que de forma simbólica, procuro fazê-lo sempre que a causa me parece honesta, justa e fundamentada. Mais recentemente, na campanha do Movimento Gaio para aquisição de um terreno na serra da Freita, para reflorestação com arborização autóctone (objectivo já conseguido). Também ali deixei o meu simbólico donativo.

Isto sem bandeiras, mas apenas para salientar que em várias dessas ocasiões em que contribuimos era expectável um agradecimento, mesmo que simples e breve, ou mesmo, vá lá, automático. Mas nem sempre há esse retorno. 

Ora o agradecimento fica sempre bem a quem pede e recebe.Não é necessário que seja público, acompanhado de fanfarra e foguetes, mas bastará que discreto e pessoal.

Por conseguinte, em alguns dos serviços de partilhas de ilustrações em que participo, recebo muitas vezes alguns donativos, a que no meio se designam por "café"; ou seja, alguém gosta do nosso trabalho, aproveita-o e de forma reconhecida pode doar um qualquer valor para "se tomar um café". Ora sempre que isso acontece, e felizmente muitas vezes, procuro sempre agradecer, mesmo que seja 50 cêntimos ou 1 euro. 

Ainda agora, a troco da imagem aqui publicada, uma ilustração muito simples como fundo (background), base decorativa para mensagens, recebi 50 euros de uma italiana. Dá para cafés para o mês todo e ainda sobra, mas naturalmente que, para mais de forma expressiva, dá gosto ser reconhecido e por isso o agradecimento é tão saboroso como a recompensa.

Infelizmente o valor do agradecimento anda pelas ruas da amargura porque enfunados com a nossa importância e com os nossos reis na barriga, somos pouco dados ao agradecimento, ao reconhecimento ao "obrigado!",ao "obrigada!, ao "parbéns!". Em contraposição, o normal é a inveja. 

Somos, no geral, uns mãos largas no que toca a distribuir inveja e ressentimentos.

Se chegou até ao fim de texto, obrigado!

29 de abril de 2022

O caminho da infância perdida



Era uma vez um caminho como muitos outros, sinuoso e largo quanto baste para nele transitar o carro-de-bois, essa importante máquina de simbiose de homem e animal, que ajudou a mover montanhas, a arrotear e a lavrar campos, a transportar milho, uvas, pasto, lenha, madeira, pedra e tudo o mais que importasse à sobrevivência de quem labutava no dia a dia no campo e na floresta.

Vieram outros tempos, outras capacidades, e o difícil tornou-se fácil, o longínquo chegou-se ao perto, o estreito alargou-se e assim esse velho caminho também foi ampliado nas suas costuras e de um carro-de-bois à justinha, poderiam agora passar grandes tractores e maiores camiões.

Mas, ironia, esse alargar, vestido de uma semântica chamada progresso, afinal não serviria de nada porque os campos há muito abandonados e ocupados por uma fila de enormes pilares de betão, os pinhais e matos desprezados e entregues aos incêndios e a urbanização dos sítios estrangulada pela burocracia dos PDMs definidos nos gabinetes. 

Desse ímpeto inicial, parecia que a coisa era para ser pavimentada e assim o povo de Cimo de Vila pouparia 2 ou 3 minutos caso quisesse ir ver a bola ao Reguengo. Pela poupança e comodidade, valia o esforço e o investimento. Mas até a bola deixou de rolar e o velho caminho, agora dito novo, continuou ali inoperacional na sua largura, sem pavimento cinzento que o aplainasse, sem trânsito, sem gente de Cimo de Vila para ir à bola.

Depois, numa magestosa manhã de Primavera vieram os construtores da auto-estrada que haveria de mutilar a amazônia cá do sítio e ali ao pé do campo da bola, vazio e deserto, montaram um estaleiro. Alguém ganhou com isso, dizem. Então essa gente de capacete nas cabeças, começou, por conveniência, a usar esse velho novo caminho e para nele transitarem dezenas de camiões e maquinaria pesada, aplainaram-no e parecia um tapete de barro e saibro. 

Foi assim durante  largos meses. Na altura falava-se que como compensação, essa gente das obras iria no final dos trabalhos pavimentar o dito cujo caminho novo. O tanas! Foi usado e abusado e ao contrário de uma mulher da má vida, a quem no final se paga pelo uso, o velho caminho, fodido a valer, nada recebeu em troca para além do abandono. Em pouco tempo voltaria a ser um caminho erodido pelas águas, um depósito de lixo, onde oficinas de carros, jardineiros e empresas de construção ali cagavam à tripa farra os seus dejectos. Tudo boa gente.




Pois bem, por estes dias voltei por ali a passar e no mesmo sítio onde há bem pouco existia uma pilha de pneus e lixos de uma qualquer oficina automóvel, encontrei ali mais uma descarga de lixo, essencialmente roupas e calçado de criança, mas também brinquedos.

Para quem vê estas coisas sem poética, era apenas um monte de lixo ali deixado cobardemente por alguém a coberto do lusco-fusco ou mesmo da noite, num caminho por onde ninguém passa a não ser raposas e texugos. Mas aquele lixo era mais do que isso, era nitidamente a memória de uma qualquer infância ali despejada, sem qualquer pejo ou constrangimento. Porventura cada um daqueles brinquedos tinha uma história a contar porque usado por uma ou mais crianças. Aqueles pequenos sapatos devem ter servido aos primeiros passos e passeios pela casa ou jardim. 

Tudo ali naquela anarquia disruptiva, num universo distópico. Com um pouco de atenção por ali ainda se ouviriam os primeiros passos, titubeantes, os choros, os risos, as algazarras infantis.


Poderiam ainda ser resgatados naquele inferno alguns brinquedos, em que alguns bonecos descompostos e desarticulados pareciam gritar em socorro a pedir que os salvassem. Às suas feridas, de nada lhes valeria aquela bisnaga de Betadine também ali deixada. 

Não os pude salvar, mas sempre lá resgatei um pequeno elefante cinzento, de tromba esticada como se o seu pedido de socorro soasse como uma trombeta nos últimos dias do Apocalipse. Está agora em casa, depois de um banho de álcool. Está mais sorridente e os seus dentes mais brilhantes e os olhos mais luminosos.

Chama-se Agrelas, lembrando o sítio onde esteve às portas do desprezo de uma infãncia da qual fez parte. A vida como ela é.

Entretanto, convinha que alguém que representa a nossa incapacidade colectiva mandasse limpar aquele montão de infância destroçada. Em nome do ambiente e da decência. Mas será sempre um caso perdido porque a seguir virá mais do mesmo, porventura lixo com outras histórias a contar.

6 de abril de 2022

Pormenores


Apressados, em correria, a olhar para o relógio, para o telemóvel, para as médias e ritmos, tantas vezes passamos ao lado de alguns pormenores, mesmo que com uma lanterna na testa. 

Já nem falo das pessoas com quem nos cruzamos, às quais,  mutuamente, já não cumprimentamos, nem com palavras ou gestos ou olhares. Apenas uma indiferença maquinal.

Deste modo, como o da foto, na maior parte das vezes nem reparamos nos pormenores que nos surgem, como esta pedra na borda do caminho, envolvida por "aleluias". 

Uma pedra escavacada mas que nos diz muito. Foram umas alminhas, certamente, a que por motivos que se desconhecem ou puro vandalismo, retiraram os elementos interiores e porta. Há quantos anos, feita e colocada por quem?

Seja como for, este elemento na borda de uma das ruas na nossa freguesia está ali, para muitos apenas uma simples pedra, para outros, certamente menos, a merecer um olhar atento.  Quem sabe quantas histórias podem estar ali?

Mas queremos saber delas? No geral não! É passar e andar!

13 de março de 2022

A cabidela e o destino


Entre muitas outras definições, a enciclopédia livre, conhecida como a Wikipédia, diz-nos que " O destino é geralmente concebido como uma sucessão inevitável de acontecimentos relacionada a uma possível ordem cósmica. Portanto, segundo essa concepção, o destino conduz a vida de acordo com uma ordem natural, segundo a qual nada do que existe pode escapar".

Assim, sem grandes empirismos, o destino é o desfecho das coisas e das pessoas. Por mais voltas que demos à nossa vida, todo o desfecho dela é um destino. Em resumo, o destino é uma fatalidade, uma inevitabilidade. Como um buraco negro na astronomia, não há como fugir a ele, nem que luz fôssemos, porque a sua condicionalidade é impossível.

Em todo o caso, a forma como vemos ou interpretamos o destino e as coisas que para ele concorrem, é no fundo um mistério insondável, mesmo que o seu desfecho ocorra por decisões próprias, nossas, individuais.

Assim, sendo certo certo que todos os nossos actos, concorrem necessariamente para o nosso destino, também é verdade que por vezes, porventura muitas, também decidimos o destino dos outros.

Vejamos um caso tão paradigmático quanto real: A D. Brilhantina (e já é abusar do destino dar a uma filha tal nome) decidiu prendar os filhos, noras e genros, com um fausto arroz de cabidela e vai daí, agarrou pelo pescoço do galo maior da capoeira, daqueles com espigões nas patas maiores que navalhas, e num ápice e sem qualquer estremecimento, sangrou-o para a tijela imaculada como numa oferenda bíblica. Mas, coisas do destino, a Brilhantina foi pouco brilhante de tanta rudeza no apertar do gaulês que este estremeceu como se ainda a anunciar a derradeira aurora, e nesse esbracejar alado lá se foi para o caneco, em cacos, o pequeno alguidar e com ele a vitalidade líquida ali sangrada.

Mas, o destino tem destas coisas e o que não tem remédio, remediado está, e o segundo galo na hierarquia da capoeira, que já se preparava para usufruir dos prazeres de tão vasto harém, viu-se logo destronado, agarrado pela manápula dura da Brilhantina e pouco depois o seu sangue já estava reservado para a cabidela. 

Há destinos assim, que se escrevem num instante, como num fogacho de palha seca, que tudo transforma e que não permitiu que o reinado de um galo durasse mais que um golpe de faca afiada. 

5 de março de 2022

Descrença


...E quando damos por ela, os canalhas da guerra usam sempre a violência da invasão como finalidade. Com Hitler, a nazificação, com Putin, a "desnazificação", ou o que isso queira dizer. Por pura semântica ou mero eufemismo, a guerra é assim um pau-para-toda a colher, porque quando há maldade, pura ou disfarçada, as palavras e o seu valor não têm nenhuma significância e mais do que elas, as palavras, as pessoas, as mulheres, idosos e crianças.

Neste contexto, os valores de humanidade e os direitos nacional ou internacional valem absolutamente nada. Uma ONU anacrónica  vale zero porque apenas uma nação se sobrepõe às demais. É urgente a sua refundação. O poder da loucura dos mandantes associado ao das armas, o juntar da vontade à capacidade, valerão sempre mais e impor-se-ão. 

Foi sempre assim ao longo da História e não estou a ver como possa ser diferente. Houve essa réstia de esperança e crença fundada sobre o sangue e destroços das guerras mundiais, mas reerguidas as cidades e esquecidas as vítimas, as lições são ignoradas e tudo volta à estaca zero. No fundo, a vontade de um homem sobrepõe-se à da humanidade porque milhões sempre obedecerão a um.

18 de fevereiro de 2022

Ousadia de ser

Pessoas como eu, que gostam de criticar e chamar à atenção do que acham que é incorrecto e está mal, levam-nos a ter mais inimigos do que amigos.

(..)

O problema para quem escreve, opina, intervém publicamente, tem que ver entre uma linha de se incomodar e uma linha de não se incomodar, não ligar, ser manso, dócil e tudo aceitar. A tentação de nada fazer, por vezes, é mais forte e cómoda do que actuar e intervir.

(...)

Seria mais cómodo, nada fazer e dizer, mas ser "livre" é uma opção política e de vida. Se falamos caímos no ridículo e julgam-nos por segundas intenções. Se nos calamos e nada fazemos , portámo-nos como cobardes e mansos à espera de algo.

(...)

Devemos e temos que ter a ousadia e a determinação de incomodar, chamando à atenção, fazer pensar quem nos lê, escuta e vê, ter uma visão diferente do poder instalado. É importante assinalar os abusos, imbecilidades, cinismo, desfaçatez, as suas razões grotescas, por fim, exigir que nos prestem contas e que expliquem as suas decisões.


Joaquim Jorge

Biólogo, fundador do Clube dos Pensadores

[fonte e artigo completo: Diário de Notícias]