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2 de novembro de 2022

O culto da ofensa

Num tempo de coisinhas politicamente correctas, andamos a criticar todo e qualquer acto de descriminação, xenofobismo, racismo, etc, apelando a princípios de civilidade e inclusão. Em suma, respeito.

Todavia, pelo que li e ouvi, um futebolista português ao serviço de uma equipa estranjeira, terá sido assobiado durante todo o tempo em que actuou num certo estádio, ofendido e desrespeitado, incluindo com a exibição de uma tarja insultuosa à sua vida pessoal.

E qual o pecado de tão vergonhoso tratamento: O de apenas, no exercício da sua profissão e liberdade, ter sido, antes do seu actual clube, um jogador de uma equipa rival.

Este tipo de comportamento, que é transversal ao nosso futebol e a alguns clubes ditos grandes, é de todo intolerável, porque comporta sentimentos de rancor e mesmo de ódio, de forma gratuita e sem qualquer motivo maior. Custa a crer que pessoas civilizadas, jovens ou adultos, vão para um estádio de futebol com comportamentos indignos como se a uma tribo se desculpe toda a animalidade, não para ver o espectáculo ou apenas para apoiar e incentivar o seu clube, mas para insultar um atleta tratando-o como um reles e indigno criminoso.

E andamos todos a assobiar para o ar e a dizer com o peito cheio que somos este ou aquele clube, no fundo a pactuar com estes comportamentos. 

Vai sendo tempo de as coisas irem mais além no que toca a consequências. Há limites, e o que se viu já não é so rivalidade, mas fanatismo do mais primário, porque mesmo a rivalidade deve assentar sempre no respeito pelos adversários. 

1 de novembro de 2022

Vela acesa

A missa do "Dia de Todos os Santos" é, sem dúvida, a mais participada de todas quantas se celebram na nossa paróquia. De há anos. Creio que não será diferente nas demais. Nem mesmo em dias tão solenes quanto a Páscoa e o Natal, a nossa igreja fica tão apinhada de gente. 

Creio que pela importância litúrgica, tanto a da Páscoa como a do Natal mereceriam mais participação, mas seja como for, é igualmente simbólico que assim seja neste dia. Afinal os santos que em primeiro lugar celebramos são os da casa, os nossos familiares, recentes ou antepassados que já partiram. Mas também amigos e demais pessoas da nossa comunidade. Porventura só depois virão os santos a sério, mais ou menos conhecidos, cuja lista é interminável, porque os populares, esses têm festa própria garantida e com festança a acompanhar.

Estou convencido que  em grande parte assim é porque tendemos a viver estas coisas de forma tradicional e rotineira, porque é feriado, porque é habitual, porque todos vão e mal parece que fiquemos por casa. 

Mas por outro lado, mesmo um relógio parado aponta horas certas duas vezes ao dia, e assim mesmo nestas nossas rotinas há sempre algo de genuíno e profundo e um sinal de que mesmo que por uma ou poucas vezes ao ano, damos conta de quem já partiu à nossa frente e isso chama-nos à realidade de que um dia, cada um no seu momento, também partiremos, sem malas nem bagagens. 

Aproveitemos pois este dia e o de amanhã, de resto, todos, para ter, tanto quanto possível, esta reflexão em conta. 

Uma vela, protegida do vento, dá sempre luz enquanto lhe durar a cera.

O comboio do tempo - A Estação dos Sessenta

Tinha eu embarcado na Estação dos Cinquenta, com ar de decidido, ainda alegre, bem disposto e fresco, já esquecido que a Estação dos Quarenta ficara para trás.

Mal o comboio do tempo deu sinal de partida, abri a janela da carruagem, respirei fundo, e naqueles primeiros metros de viagem  a Estação dos Sessenta parecia-me ainda bem distante e dei comigo a pensar que seria um percurso para saborear calmamente em cada curva da linha. Faltaria ainda muito caminho a galgar e carril a romper.

Mas agora, depois de várias paragens em outros tantos apeadeiros, com o olhar a comer planícies, montes e vales, cheguei finalmente à Estação dos Sessenta. E a viagem já passada pareceu-me agora  tão curta como uma noite bem dormida.

À chegada do comboio, que se deteve vagarosamente entre uma nuvem de vapor arrotada pela locomotiva negra e cansada, o chefe da Estação dos Sessenta anunciou cerimoniosamente com a sua voz forte e pausada: - Deu entrada na Linha 1 o comboio do tempo, proveniente da Estação dos Cinquenta. Os passageiros que se dirigem para a Estação dos Setenta é favor prepararem-se. O comboio vai parar em todos os apeadeiros. Gozem a viagem enquanto puderem porque nem todos lá chegarão!

O comboio apitou num lamento longo e todos os passageiros, mesmo os que tinham ido fazer xi-xi, apressaram-se a retomar os seus lugares porque não lhes era permitido ficar por ali suspensos no tempo. O fogueiro abriu as válvulas da caldeira e a pesada locomotiva envolta em fumarada começou a engolir metros daquele par de linhas de aço tão próximas quanto separadas.

A recomendação do chefe da estação tinha esmorecido o já reduzido entusiasmo dos viajantes. Não era necessária. Afinal, todos sabiam que entre as estações principais de um comboio, até mesmo este especial,  o do tempo, há sempre passageiros que ficam pelos apeadeiros intermédios e serão menos os que chegarão à Estação dos Setenta, prontos a seguirem viagem até à estação seguinte.

Seja como for, chegado aqui, que remédio senão embarcar. É que não há outro transporte alternativo nem algum que faça a viagem em sentido contrário. É contra as leis do Senhor do Tempo, dos seus comboios, locomotivas e carruagens.

Parto, pois, na expectativa de entretanto poder chegar ao primeiro apeadeiro e depois ao seguinte e por aí fora até que se possa avistar e atingir a Estação dos Setenta. Há quem diga que fica a longa distância mas outros auguram que é já ali ao virar da curva.

A vantagem, é que a partir destas estações  avançadas, há menos passageiros e há lugares de sobra nas poucas carruagens. Todavia, dizem que os carris que a ela conduzem são mais estreitos e irregulares e que são frequentes os descarrilamentos antes da chegada à estação seguinte.

Não há nada a fazer. Apenas embarcar e seguir em frente na linha. Dos apeadeiros e as estações que faltam percorrer a cada passageiro do velho comboio, só o Senhor do Tempo o saberá. Alguns chegarão concerteza à Estação dos Setenta, talvez menos à dos Oitenta, menos ainda à dos Noventa e seguramente já poucos à dos Cem. 

Dizem que para lá da Estação dos Cem, talvez nem haja estações, quando muito dois ou três apeadeiros. Poucos o sabem. Todavia, em boa verdade, talvez já nem interesse saber, porque com tantos quilómetros já percorridos, com passagens por apeadeiros e estações, os passageiros deste comboio do tempo vão ficando cansados, amassados dos ossos e com os olhos já turvos de ver as paisagens a fugir-lhes. Talvez seja mesmo preferível fechar os olhos e tentar dormir no embalo daquele torpor constante do comboio a rolar no aço frio e a velha locomotiva a gemer, a gemer, a gemer.

Quem, sabe, talvez o fim da linha, o final da viagem seja numa esplendorosa e imensa estação forrada de  brancas e fofas nuvens, e o seu chefe seja o S. Pedro, a colher-nos numa voz suave e murmurada por entre uma espessa barba da cor das neves: - Senhores passageiros do comboio do tempo, chegaram à Estação do Tempo Final. Terminou a vossa viagem! O Grande Senhor do Tempo espera-vos para vos dar as boas vindas com um chazinho quente e bolachinhas celestiais! Façam bom e eterno proveito!

30 de outubro de 2022

Os Manuéis da vida como ela é


Não é novidade. Num qualquer hospital e numa qualquer das suas enfermarias, mesmo no serviço de urgências, há vizinhanças que se estabelecem nas longas horas ali passadas. Uns mesmo mais novos, outros de idade parecida, outros ainda mais velhos parecendo mais novos ou mesmo mais novos parecendo mais velhos. É o que é!

Assim, ali ao meu lado direito, numa maca, alguém deitado, coberto pelo lençol, talvez para se proteger das luzes fortes no tecto, do ar condicionado, daquela algazarra de gente a gemer, a pedir ajuda, ou mesmo do emaranhado sonoro das gargalhadas do pessoal, porque nestas coisas não leva a lado algum ambientes carregados de tristeza, angústia e dor. Para isso lá estão os doentes.

Mas esse vizinho de circunstância estava ali, imóvel, a ponto de nem saber se morto se vivo ou se morto vivo. Entretanto, descobri que estava vivo, porque à solicitação cordial da enfermeira para colher sangue para análises, reagiu grosseiramente: - Outra vez! Já estou farto de ser picado! Porra! É demais!

- Mas, ó Sr. Manuel, tem que ser! Você não quer ser tratado? Você é que desmaiou, não fui eu! - rematou a enfermeira para o conformar e chamar à razão.

- Tá bem, tá bem! Tire lá o sangue! - anuiu vencido pela razão.

Pouco depois relatava a sua situação: Tinha 83 anos, era de Milheirós de Poiares e vivia ali pela Feira. Andara pela Guiné, logo desde o início de uma guerra onde pretos e brancos se matavam sem dó nem piedade, por razões e motivos que não entendiam mas que a mando de alguém e de um eufemismo chamado dever, assim o determinavam.

- Não morri na guerra, escapei a minas e armadilhas, a balas a zoar nos ouvidos e agora estou aqui derrotado, pronto para ir! Mas já pouco me importa! A minha boa esposa já foi há dez anos! Era uma santa! - Disse numa voz lamentosa. - Casamos antes três meses de ir para a guerra e um sacana de um vizinho que a desejava, andava sempre a moer-lhe a paciência a dizer que era melhor juntar-se a ele, porque eu, na guerra, não sairia de lá vivo. - Continuou a desfiar o rosário das suas memórias. - Era o filho do merceeiro local onde o carteiro ali depositava as cartas de todo o lugar e o “filho-da-puta” desviava todas  cartas que eu escrevia semanalmente, para convencer a minha mulher a desanimar e a dar-me mesmo como perdido e dela desinteressado. - Contou e continuou. - Mais tarde, a mãe dele descobriu a sua tramoia e obrigou-o a devolver as cartas. A minha mulher, que nunca perdera a esperança, recebeu um monte delas e levou uma semana para as ler.

Entretanto desligou o disco dessas memórias passadas e voltou-se para as do presente. Estava ali naquela situação porque, sem saber como nem porquê, começara a desmaiar como se alguém com um comando à distância o desligasse. Caiu, pois, na rua onde caminhava, desamparado, como morto, e torcera o pé, rachara a cabeça e outras amolgadelas menores. Dois ou três dias depois de deixar o hospital, onde passara duas intermináveis noites sem dormir, voltou a acontecer-lhe o mesmo, desta feita na casa-de-banho. Não sabia o que lhe estava a acontecer e receava o pior, pois os desmaios não davam qualquer aviso que lhe dessem tempo a prevenir-se e a preparar a pista de aterragem para o avião descontrolado. 

A história foi longa e os lamentos angustiantes, mas de facto pareceu-me uma situação extremamente perigosa. 

Entretanto, já quase todo examinado, fui deslocado para outra enfermaria mais confortável e ali ficou o Sr. Manuel, não sei das quantas, entregue à sua sorte ou falta dela. Nem tive tempo de me despedir e de lhe desejar as melhoras porque novamente debaixo do lençol procurava esconder-se da sua situação ou mesmo de si próprio.

De facto o que não faltam nos hospitais são estes senhores Manuéis, frutos de uma geração com histórias de vida, invariavelmente duras e reportadas a tempos difíceis, como se todas as suas existências tenham sido uma múltipla condenação, em que todas as fases das suas vidas, infância, adolescência, juventude, idade adulta e velhice não fossem mais que um ramalhete de muitos espinhos e poucas flores.

A vida é assim mesmo. Felizmente para as novas gerações, mesmo com as dificuldades próprias dos tempos modernos, jamais experimentarão as dificuldades e agruras dessas anteriores gerações. Ainda bem, mas bastará isso para que todos os senhores Manuéis deste país, enquanto por cá andarem, mereçam ser tratados com todo carinho e atenção  possíveis. Que mais não seja, é o mínimo que merecem e têm direito, em nome da dignidade, justiça e gratidão. 

As melhoras, Sr. Manuel, mesmo que, inevitavelmente, o botão do desligar um dia deste, mais cedo ou mais tarde, seja accionado pela última vez! 

[foto: JN]

28 de outubro de 2022

Estas coisas só acontecem aos vivos


E de repente, sem grandes alaridos, são mais que muitos a contactarem preocupados para saberem da minha estadia no hotel do SNS. Não só familiares, naturalmente, mas muitos amigos. 

Não é caso para tanto, e tudo esteve sempre bem, mas fico naturalmente satisfeito com a preocupação por muitos demonstrada. Sabe bem ter amigos sinceros. Bem hajam.

Quanto ao hotel do SNS, recomenda-se sobretudo pela excelência do pessoal, nomeadamente dos enfermeiros (em rigor das enfermeiras), do pessoal auxiliar e dos médicos, embora estes pouco se vejam.  E tudo gente jovem. E além disso, porque quase todos vestidos da mesma maneira, quase indiferenciados, não sabemos a quem chamar doutora ou enfermeira, Os médicos parece que usam agora umas batas iguais às que usam os serralheiros. Modernices e as batas brancas já são ali raras, talvez porque se sujem , tanto mais depois de 12 ou mais horas de serviço.

Não vi por ali profissionais seniores, como agora se diz.  Esses, porventura  já com menos paciência para as tropelias e desconsiderações do Ministério, deram à sola para sítios mais bem calmos e melhor remunerados. Vi por ali muita gente a fazer mais de doze horas, no fundo a queixarem-se tanto como os doentes com dores de costas, ossos partidos ou falta de ar.

Em rigor, todos aqueles dedicados profissionais também estão ali eles próprios em urgência, não nas macas nem ligados a ventiladores ou a soro, mas feridos na sua dignidade.

Gente boa, preocupada, simpática e atenta. Não fazem mais porque os meios são insuficientes e os hóspedes são muitos e não se pense que só velhinhos ou meias idades, mas também alguns jovens, naturalmente que por diferentes motivos.

Dos quase três dias ali internado, colhi sensações, emoções e realidades com significado fundo, que se os for a escrever, darão um livro.

Mas isto é coisa de quem gosta de adornar as palavras e as ideias a descrever emoções, sentimentos e estados de alma. No geral, um hospital e o seu serviço de urgências não se compadecem com lirismos.

O SNS é tão importante e necessário quanto a dimensão da sua doença e dos seus problemas crónicos,  porque os que lhe têm tratado da saúde (os sucessivos governos) têm sido, em regra, maus profissionais. Quando assim é, o SNS é ele próprio um doente em permanente serviço de urgências.

15 de outubro de 2022

A família como morangueiras

 


As famílias e os seus membros são como estolhos de morangueiras que às tantas começam por aí a enraizar e a dar frutos ao largo e quando transplantados, mesmo que para longe da cepa materna, continuarão a produzir os mesmos frutos.

Neste sentido, parece-me que em todas as famílias e sobretudo nas numerosas, às tantas perdemos o fio à meada e temos por aí dispersos, primos, segundos e terceiros,  que até, eventualmente, se cruzam connosco nos cruzamentos do dia-a-dia mas que não passam de desconhecidos e como tal não há partilha de acenos nem cumprimentos.

Isto acontece na minha família, tanto na parte de meu pai como de minha mãe e acontecerá no geral com todas as famílias. E claro, quando no estrangeiro já ramificados, a coisa piora quanto ao contacto próximo.

Pessoalmente tenho procurado pelo menos seguir os primeiros ramos da árvore paterna e deles os rebentos e frutos primeiros, mas depois disso a orgânica das células e a química da vida continuam os seus passos de multiplicação e torna-se tarefa mesmo impossível confinar todo o morangal num único vaso.

Mesmo com as actuais ferramentas que possibilitam o contacto com gente de longe, as coisas são mesmo difíceis e complexas tanto mais que, por força do desligamento e das circunstâncias da vida, a separação e o desligamento aconteceram já há muito. 

Não há papel capaz de comportar o desenho de uma tão grande árvore genealógica a abarcar gerações passadas e presentes. Mesmo uma árvore digital é complexa de gerir e de actualizar. Teria que ser uma tarefa comum a todos os ramos, mas isso, convenhamos, é uma missão digna de Hércules.

Neste aspecto, são importantes os encontros e convívios familiares, o registo e actualização das árvores genealógicas, e até temos alguns em Guisande, mas no geral, quando muito aparece apenas uma reduzida percentagem dos membros catalogados, muitos deles até de perto da base mas que desprezam esta questão de encontro a fraternização entre os seus.

Tantas vezes, somos estranhos dentro da própria família. De resto o que seria dos rebanhos sem as suas ovelhas negras e ronhosas?

Neste contexto de perda do caminho dos membros familiares, ainda há dias faleceu em Pigeiros um meu primo paterno, que sabia ali viver, até por informação de outro primo que de quando em vez o contactava, mas em rigor já não o veria há longos anos e por conseguinte nem a esposa, nem os filhos e muito menos os netos, meus segundos e terceiros  primos, são por mim conhecidos. Este é um exemplo comum a quase todas as famílias.

Para além disso, parece-me, no geral nota-se um desinteresse pela valorização da família e da sua história e por isso, não surpreende que ao fim de duas ou três gerações se perca o fio ao novelo base.

É o que é, porque nestas como em muitas coisas do nosso actual modo de vida, para o bem e para o mal, vão rolando desta maneira. Colocámo-nos como o centro do universo e tudo o resto é colateral.

13 de outubro de 2022

Vida de cão num filme com cabra


Porque já se faz tarde para bicicletar antes do jantar, ontem fui correr: Só para quem gosta de números, 10 Km em 55 minutos. É o que se pode arranjar para quem está à porta dos 60 e com a balança ainda a queixar-se. 

Mas não é isto que interessa porque interesse não tem para quem isto escreve muito menos para quem o lê.

Passe o prefácio, o principal da jornada é que já na parte final da corrida, ali pela Leira, vi uma cabra amarrada a um poste com um metro de corda, a balir insistentemente apesar de ter erva fresca à sua volta.

Estranhei e questionei a mim próprio quem é que ali amarraria o raio de uma cabra apenas num metro de corda? Seria para limpar as ervas da valeta, metro a metro? A ideia não seria inovadora mas teria a sua piada.

Por outro lado fiquei a pensar que as cabras às tantas são como as  galinhas, e àquela hora (19 e picos) já com o sol a esconder-se, quereria recolher à corte e mais não fazia que reclamar ao dono.

Mas logo de seguida, percebi: Afinal a cabra viera perdida do lugar de Azevedo, como um cão vadio sem rumo, e às tantas alguém ali na Leira meteu-lhe as mãos aos cornos e prendeu-a à espera do dono, que já estava a chegar com uma corda mais comprida, certamente para a levar de volta e agradecendo a quem ali a parou e reteve na sua caminhada de cabra solta que saltara a cerca. 

É claro que este filme foi exibido em poucos segundos.

Enquanto corria para casa fiquei a pensar na cena e a imaginar se em vez de cães vadios, de tantos que por aí andam, fossem cabras ou cabritos? Mas foi um pensamento inútil, porque se assim fosse ao fim de um dia já estavam todas, pelo menos os cabritos, recolhidas. 

Uma cabra dá leite e mesmo já velha come-se em chafana. Quanto a cabritos, que o diga o Relvas, que não dá mãos a medir a aviar assadeiras domingueiras lá para os lados da Gestosa.

Por conseguinte, andam por aí cães vadios porque em rigor ninguém os quer, nem dentro nem fora da porta muito menos salteados com batatas. É que nisto de os comermos, ainda não estamos na China.

Ora por cá ninguém abandona uma cabra, muito menos um cabrito, mas um cão não tem essa sorte e o que não faltam por aí é cabrões a abandonar cães ou a tê-los presos a um metro de cadeado em que, ao contrário da cabra deste filme, não têm erva verde mas um chiqueiro polido de pó ou lama.

Será por isso, com certeza, que se diz, em lamento, "vida de cão"!

11 de outubro de 2022

Saber ocupar o lugar

A história da introdução dos bancos nas nossas igrejas por si só daria para uma longa história. Bastará dizer que originalmente as igrejas não tinham bancos e era comum os fiéis participarem nos serviços todo o tempo de pé, o que ainda acontece nas igrejas ortodoxas orientais. 

Por esses primeiros tempos uma liturgia comportava várias movimentações. Mais tarde após a reforma protestante e sobretudo por influência da igreja anglicana começaram a ser introduzidos bancos, mesmo fabricados e pagos pelos próprios fiéis que assim os tinham como seus. Nos Estados Unidos, para onde a prática passou, chegou a ser autorizado o aluguer contra um pagamento. Adiante, que esta coisa de bancos nas igrejas daria para uma homilia longa. 

Quem frequenta as nossas igrejas e participa nas suas missas, pelo menos com a frequência dominical, sabe que é assim: Há pessoas que ocupam quase sempre os mesmos lugares e têm-nos como “seus”. Ali sentem-se melhor e mais preparados “espiritualmente”. Ou porque mais recatados, num sítio menos exposto, ou o contrário, mais perto ou mais longe dos olhares do padre, ou pela simpatia de quem tem por vizinhos e amigos, até para fugir das correntes de ar, etc. Outros, ainda, meios escondidos nos corredores ou até mesmo com um pé dentro e outra fora da igreja. Há ainda quem, desde que não chova, fique mesmo da parte de fora, e cumpre o preceito sem sequer ver a cara do padre ou a hóstia sagrada.

Seja que por motivo for, essa é uma realidade ainda muito nítida, mesmo que já não tanto como noutros tempos, em que havia uma nítida separação de género, com os homens na parte da frente e as mulheres na de trás.

Na nossa igreja de Guisande, esta realidade também acontece mesmo que de forma já não tão vincada pois com a crescente redução de participantes, os lugares vagos por vezes são mais que os ocupados e assim permite uma escolha mais alargada de lugar.

Mas, claro está, este hábito ou mesmo tradição – chamemos-lhe assim – só é percebida, compreendida e respeitada por quem frequenta com regularidade esses espaços de culto. 

Não surpreende, pois, que sempre que vem à igreja alguém de fora e mesmo pessoas mais novas, esporadicamente, por vezes ocupem, sem saber, esses lugares “certos” fazendo com que os habituais tenham que procurar outro e sair da sua zona de conforto. Conheço casos que quando alguém chega à igreja e vê o “seu” lugar ocupado, dá o recado ao ocupante ou até mesmo abandona a igreja. Extremos.

Mas tomando esta situação como uma analogia, podemos extrapolá-la para outras realidades e assim em muitas situações da nossa vida e quotidiano, por vezes lá chegam os mais novos e não habituais e habituados ao “status quo” e tomam o lugar de alguém, sem qualquer incómodo ou esmorecimento. 

E, todavia, mesmo que em rigor esses “lugares” não tenham lugar pago e cativo, como nas bancadas de futebol, ficaria sempre bem uma palavrinha, uma satisfação, um saber quem por ali costuma estar. Em resumo, adaptar-se e tomar à letra os ditados “em Roma sê romano” ou mais prosaicamente “à terra onde fores ter, faz como vires fazer”.

Mas nos tempos que correm, essas preocupações respeitosas e decorrentes de tradições pouco ou nada valem. Quem não as conhece nem procura conhecer, naturalmente que lhes passa por cima com a ignorância de um analfabeto a tentar ler sem o conseguir.

É o que é! 

Nestas como em muitas outras coisas, cada vez mais menos.

10 de outubro de 2022

Clientes e minotauros

O meu fornecedor de telecomunicações é a Meo. Não por ser a melhor, mas é o que se pode arranjar na sentença do mal o menor.

Prezo-me por nunca  ter deixado de pagar uma factura a tempo e horas, no máximo, com um dia dia de atraso, isto porque, por opção, não tenho débito directo, e assim sujeito ao esquecimento.

Mas ontem, estava já deitado quando me lembrei que o prazo limite era o dia 7 e se o fizesse ainda hoje, mesmo que à primeira hora, já seriam 3 dias de incumprimento. Que remédio, saltar da cama e ir ao computador ajustar as contas, no limite dos 2 dias. 

Não sei se dormi melhor do que dormiria, caso não o tivesse feito, mas pelo sim pelo não, ficou feito.

Mas admito que esta situação acaba por ser caricata porque creio que poucos farão o mesmo. A regra até será arrastar ao limite dos limites, até à ameaça de corte. De resto, numa certa empresa de que me falaram, a norma é mesmo essa, os atrasos e incumprimentos são recorrentes e por conseguinte a suspensão do serviço é também frequente, com a agravante de ser indispensável à actividade.

 O certo é que, pagando, mesmo com o atraso do costume, por vezes já com duas ou três facturas somadas, a coisa vai rolando, porque a operadora naturalmente quer evitar ao máximo perder o cliente.

Mas dou comigo a pensar, novamente, nestas como noutras coisas, qual é, afinal, o merecimento, ou o oposto, o desmerecimento por um cliente ser fiel e cumpridor, ou o contrário: Quem quer mesmo saber? Eu acho que nenhum, e até, feitas as contas, os incumpridores são regra geral os mais beneficiados, como naquela parábola evangélica do filho pródigo em que o desbaratador da fortuna é recebido com beijos, abraços e jantarada com vitelo gordo. O outro, o certinho, o cumpridor, esse continua no campo a trabalhar para o bem comum, sem prémios ou distinções.

Mas isto acontece porque acima de tudo, para as empresas, como no caso as operadores de telecomunicações, mas outras mais, desde logo como os bancos, etc, os clientes já deixaram há muito de ser pessoas, mas apenas simples números com uma data de dados associados. 

Nas agências há cada vez menos pessoas e tudo é encaminhado para processos digitais. Somos atendidos por vozes virtuais e encaminhados por um labirinto de opções, como um minotauro a dar marradas nas paredes até que encontre uma saída. 

Por conseguinte, os valores associados ao respeito e cumprimento pelos acordos, pela seriedade, honestidade e verticalidade, em rigor nada valem ou significam. 

Os algoritmos que gerem as relações entre empresas e clientes, não são programados para fazerem distinções positivas e premiarem os valores e atitudes que nos foram ensinados pelos nossos pais como sendo os correctos.

As coisas são como são. 

Tudo se resume a números. O Sr. António, o Sr. Justino ou a Sr.ºa Josefina, são um qualquer código binário composto por zeros e uns.

Para o caso, o Sr. Américo não passa disto:

01000001 01101101 11101001 01110010 01101001 01100011 01101111

29 de setembro de 2022

Futebóis, cães e gatos


A propósito da discussão que anda por aí sobre se Ronaldo, Pepe, Fernando Santos e companhia já estão a mais na selecção portuguesa, se deviam já ter dado o lugar a outros jovens e igualmente talentosos, ou, se pelo contrário, ainda têm muito para dar, tanto agora no Mundial do Qatar, como depois no Europeu de 2024 e ainda de novo no Mundial de 2026 e por aí fora.

Por mim é-me indiferente, mas parece-me que para o caso, não importa confundir reconhecimento e agradecimento. Todos reconhecemos o valor e contributo de todos esses jogadores.

Tudo tem o seu tempo e seu lugar. A indústria do futebol é isso mesmo, uma indústria em que tudo gira em torno de dinheiro.

Eu não vejo a selecção como uma coisa supra-patriótica e transcendental, mas antes um entretenimento. 

É apenas um grupo de jogadores de elite quem vive e ganha muito bem, porventura mais com um prémio de jogo que a maioria dos portugueses a trabalharem toda a vida numa fábrica ou na agricultura.

Não fazem nada de borla e qualquer vitória, só lhes acrescenta mais prestígio e mais dinheiro. Mesmo que num sector estupidamente exorbitante na relação do rendimento/benefício, não os invejo. Só não lhes dou valor acima do que é suposto dar.

São os futebolistas que ganham milhões anualmente, doutores, engenheiros, médicos, investigadores, cientistas, biólogos, etc, etc, que contribuiem para o crescimento da ciência, da saúde, da humanidade? Não! Apenas alguém com habilidade para dar uns chutos na bola. Alguns, muitos, apenas com formação básica.

Por conseguinte, o ponto aqui é tratar-se de pragmatismo.

Ora o pragmatismo nestas coisas indica que há lugar e tempo para o reconhecimento, para o agradecimento, mas também para a renovação. Em suma, seguir em frente.

Mas outros, naturalmente, têm uma diferente opinião. Regra geral são esses que compram o bilhetinho, cachecóis e camisolas, pagam as quotas, leem jornais e assinam canais premium, contribuindo para que toda essa indústria prospere. Alguém tem que pagar os Bentleys, os Porches, os Jaguares, os iates, a vidinha boa da malta da bola, etc. Estão no seu direito e há sempre a quem o dinheiro sobeje.

As coisas são como são. Gosto de futebol, tenho um clube de simpatia, gosto das selecções na justa medida, embora os veja cada vez menos. Seguramente que já não os vejo com lirismos ou paixões exarcebadas. 

Como dizia um antigo spot publicitário "um cão é um cão, um gato é um gato. Tudo no seu justo lugar, tempo e medida.

27 de setembro de 2022

Falar bem, maldizer, o fácil, o difícil

Não tenho muitos amigos no Facebook.  Em número ainda não reuni 500. Talvez porque desses terei pedido amizade apenas a meia dúzia. De todos os demais tive o privilégio de me terem solicitado amizade. Também terei recusado outros tantos, desconhecidos, ou de raparigas bonitas com nomes abrasileirados que nos aparecem por cá com uns convites para partilhar coisas boas. Mas como sou de um tempo em que aprendi a desconfiar de grandes esmolas a troca de palha, prefiro recusar tais generosas "amizades".

Desses quatrocentos e muitos amigos que tenho nesta rede social, naturalmente que serão bem menos os que me têm mesmo como amigo e  menos os que tenho como tal. Alguns até parecem inimigos, mas, vá lá, toleram-se.

Mas ainda bem que assim é. Fossem esses quatrocentos e muitos, bons e verdadeiros amigos, daria uma trabalheira a tratar deles. Sim, porque a amizade, é dos livros, deve ser cultivada. Ora cultivar amigos e amizades não é como plantar batatas, cebolas ou alhos. É bem mais trabalhoso e requer o uso de bom estrume, rega frequente e cuidado na protecção contra as inconstâncias do tempo e parasitas.

De certo modo, um cultivador de amigos e amizades é como um lavrador, que comprometido com as suas culturas, não tem horas para se deitar, para comer, enfim, não tem tempo para tratar de si próprio porque por vezes preocupado com os outros.

Nos tempos que vão fazendo os dias presentes, convenhamos, a malta de um modo geral não gosta de empregos de lavrador. Prefere o certo ao incerto, pegar e despegar a horas normais; Andar de espinha direita, com mãos sem calos e unhas sem terra ou estrume. Talvez por isso o negócio de quem pinta e decora unhas está em alta.

Não perdendo o fio à meada, dizia que de todos classificados pelo Facebook como meus amigos, naturalmente que sempre que tenho oportunidade e pretexto, sobre um ou outro mais próximos, gosto de os enaltecer, nas suas virtudes, mesmo que com alguns humanos defeitos, com sentimento mas sem paninhos quentes. No fundo, exercer e aplicar a tal analogia de usar bom estrume nas plantas para que estas sejam produtivas.

Mas, por isso, dou comigo a pensar e mesmo a confirmar, que nestes coisas de falar e escrever bem sobre os outros, os nossos amigos, mesmo que não entrando em intimidades, mas apenas raspando no lado público, é bem mais difícil do que falar mal, de maldizer, criticar. 

Não supreende, pois, que a norma, porque mais fácil, seja o dizer mal, desprestigiar, desconsiderar. E estas acções nem precisam ser executadas na forma de escrita. Há muitas outras formas, por vezes mais penosas e acutilantes  porque subliminares, ocultas. E deste mal padecemos todos. Não me excluo. 

A vida, é pois, uma aprendizagem permanente. É como um mar amplo em que, desde que se aviste um farol a rasgar o breu da noite, há sempre tempo de virar o leme, de fugir aos penhascos traiçoeiros, em última análise, evitar o naufrágio.

Em conclusão ou remate, devemos sempre teimar em realçar o lado mais positivo das coisas e de modo especial, das pessoas. Terão, naturalmente, facetas escondidas, mas talvez nelas a luz supere a escuridão e bastará isso para prevalecer um centelha de humanidade. Afinal, até as plantas mais espinhosas dão doces e saborosos frutos.

19 de setembro de 2022

Raridades


Não sou muito, ou até mesmo nada, de realitys shows na televisão. Mas de quando em vez vejo com agrado o documentário observacional que passa no canal Odisseia, "Uma quinta, 9 filhos e 1000 ovelhas", no original "Our Yorkshire Farm".

A série acompanhou durante 5 anos o dia-a-dia de uma família proprietária de uma quinta (Ravenseat) com um enorme rebanho de ovelhas, localizada nas típicas chanercas inglesas na região de Yorkshire.

Para além da já por si interessante história da família, em que Amanda Owen, aos 19 anos deixa uma vida tranquila e confortável de modelo, na cidade, e decide como opção de vida dedicar-se a ser pastora e com ligação à terra. 

Com 21 conheceu e casou em 2000 com Clive, um criador de ovelhas, com 42 anos. De lá para cá a família cresceu e tem 9 filhos, a mais velha a entrar na universidade em Biomedicina e a a mais nova de tenra idade. A acrescentar aos 9 filhos com Amanda, Clive tem mais dois, da sua primeira esposa.

Para além de tudo, do género televisivo, da sua exposição pública, que lhes confere  inconvenientes mas também mediatismo e popularidade e dela receita e proventos, desde logo em venda de produtos da quinta, livros publicados e outros artigos de marketings, etc, percebe-se que ali há  de facto uma família concreta no conceito clássico do termo.  Mas simultaneamnete uma família normal sujeita a diferentes momentos e tensões.

Diferentes idades, entreajuda, com os mais velhos a olharem pelos mais novos, momentos de brincadeira e contacto com a natureza, com a terra e os animais, a aprendizagem, o enfrentar das realidades e o ultrapassar dificuldades, sempre com o trabalho como base. Em suma, a conquista da autonomia, da independência na vida tal qual ela é, o que é raro nos dias que correm.

A par disso, naturalmente que com todas as exigências educativas. Os filhos do casal frequentam a escola, mesmo que percorrendo longas distâncias diariamente por estradas sinuosas e estreitas até à cidade mais próxima.

Vê-se que o dia-a-dia é duro, trabalhoso, incerto e inconstante como todos os trabalho ou actividades relacionadas à agricultura e pecuária, tanto mais naquela região, muito sujeita à inconstância e particularidades do tempo, habitualmente chuvoso, frio e nevoso no Inverno.

Mas de tudo, ressalta a naturalidade como aquelas crianças se relacionam em família, aos pais e irmãos, à quinta, à terra, à natureza e aos animais. Sem descontrolo, sem excessiva protecção. A valorização do trabalho na ajuda aos pais. Um bom testemunho como crescem e se educam mulheres e homens a sério capazes de cedo serem autónomos e determinados.

Nada de excessivos confortos, mimos e proteccioniso, que vai sendo norma na nossa moderna sociedade.

Esta família, por todos os aspectos inerentes ao mediatismo e escrutínio a que está sujeita, naturalmente que está condicionada nos diferentes momentos do dia-a-dia, mas quem assiste com regularidade, percebe que apesar disso há ali uma autenticidade, que já deixou de ser norma. 

Entretanto, como nada é perfeito, e que só reforça alguma normalidade, foi noticiado em Junho passado que o casal Amanda e Clive se separaram, mantendo no entanto, como prioridade, a educação dos 9 filhos e mesmo a trabalharem juntos na Quinta Ravenseat. Não sabemos, obviamente, os motivos do divórcio, mas não será dispiciendo supor que a exposição pública terá contribuido para alguma instabilidade e tensão, bem como, não menos importante, a diferença de idades entre ambos (20), que naturalmente não se nota quando mais novos mas que se acentua com a velhice.

Se porventura esta realidade vivida em Ravenseat decorresse em Portugal (e quantas famílias modernas, mas ligadas à terra e que vivem do seu trabalho, terão 8 filhos?), dou comigo a questionar se aquelas crianças não seriam retiradas institucionalmente aos pais e estes acusados de incapacidade, desleixo ou de exploração infantil? Sim, porque em Portugal somos o topo, um paíz civilizado, na linha da frente educacional, em que às crianças nada falta, nada se recusa, nada se priva, excepto a desresponsabilização, o trabalho e o mexer no estrume e na terra.

É certo que mesmo em Portugal, no país interior ainda muito ligado à terra, até haverá exemplos semelhantes, em que as crianças também são inseridas cedo na realidade da vida e do trabalho, mas regra geral num contexto de pobreza e raramente como opção por um modo de vida mais terra-a-terra, mais natural, mais primordial, se quisermos.

Digo isto com a naturalidade de quem aos 5 anos já guardava gado e ajudava nas lides da casa e do campo. 

Mas nesse tempo não havia o canal Odisseia. O dia-a-dia já era, em si, uma odisseia.

Mas, voltando aos tempos actuais, modernos, não deixa de ser interessante que o que devia ser a coisa mais natural do mundo, seja, afinal, uma raridade, uma excentricidade, digna de passar na televisão, tornando-se popular aos olhos de milhões de pessoas que seguem a série documental..

15 de setembro de 2022

Efemeridade

Ainda ontem, durante a minha corrida, cruzei-me duas vezes com ele, um gato estilo siamês, ali entre a rotunda da Farrapa e a Rua das Fogaceiras (Urbanização de Linhares). Na parte inicial, fugiu assustado à minha frente, subindo com agilidade ao mato, mesmo entre tojo e silvas. Passado algum tempo, no regresso, 10 Km depois, já na berma, com ares de assustado, mas manteve-se calmo e parado enquanto eu passava ofegante. Percebeu que a minha corrida não era de perseguição mas a de um tolo qualquer a cansar o corpo.

Era, pois, um gato que por ali andava. De resto já o tinha visto dias antes.

Hoje, novamente no regresso da corrida, dei com ele nas piores circunstâncias, já na valeta, defunto por uma forte pancada certamente de automóvel. O chão ainda ensanguentado. Teria sido durante o dia de hoje.

Um pouco antes, tinha ouvido o sino de Guisande a gemer a finados. Não foi pelo gato, pois não, mas poderia ter sido. 

Rais´parta a vida como ela é!  Uma feliz criatura num dia, vivaço e livre, e no dia seguinte uma amálgama de nada, inerte, sem vida. 

Estragou-me o dia. Não o gato, mas o seu triste fim. Ainda tinha muita gatice pela frente, mas o destino ou o raio de gente apressada a conduzir que, mesmo podendo, nem se desvia, encurtaram-lhe a vida, ali, bem perto do território que marcara como seu.

Acredito que os animais também têm alma. Se não a têm, têm a que lhe damos.

Paz à sua alma!

7 de setembro de 2022

A vida em papéis




Quando temos algum tempo livre, mesmo que já no queimar dos últimos cartuchos de uma pausa no trabalho, designado por muitos, de férias, há a tentação de deitar mãos à obra e mexer em velhas papeladas, dando o devido destaque a umas, organizando outras e queimando outras mais. 

Com esta minha velha mania de guardar caixas e embalagens e outros papéis (e ainda bem, porque à conta disso tenho cadernetas de cromos dos anos 70 a valerem 500 e mais euros, e cromos a valerem 5 euros por unidade), às tantas damos de caras com a box do telemóvel Nokia 6600, da máquina fotográfica Sony DSC-P71, do CD da Sapo ADSL, de uma colecção do “Bits & Bytes” – suplemento do Jornal de Notícias, da colecção da revista PC Guia dos anos 90,  revistas dos anos 70, como a Tele Semana e a Crónica Feminina, etc, etc, coisas e tecnologias que ainda há duas ou três dezenas de anos eram a cereja no topo do bolo e que hoje nos parecem as velhas mocas dos homens das cavernas.

As coisas são como são. Nem sempre é saudável mexer no estrume com que plantamos e fizemos crescer as nossas vivências e convivências, mas verdade se diga, tudo o que somos hoje, para o bem e para o mal, somos o fruto dessas árvores.

E posto isto nestes termos, porque guardados, damos de cara com os cadernos diários dos primeiros tempos de escola dos nossos filhos, e dos seus desenhos inocentes, e percebemos que, como num flash, passaram vinte anos, duas décadas. 

E o lugar comum de que "ainda parece que foi ontem" torna-se mesmo realidade.

Ficamos assim atados nesta dicotomia do que é mais certo, se o guardar tudo aquilo que um dia nos vem dar um murro no estômago sobre a saudade do reviver em imagens o tempo passado se, pelo contrário, queimar tudo na primeira oportunidade e com isso fazer das memórias e testemunhos apenas cinza que o vento leva.

Tem que se lhe diga. E se há gente que queima os vestígios do seu passado sem o mínimo de esmorecimento, já outros, como eu, teimam em guardar tudo o que um dia nos possa abrir a janela do passado, mesmo que isso nos possa fazer chorar. Se de dor ou de saudade, ou de vergonha, isso pouco importa.

Mas, verdade se diga, com tanto já vivido e incerto quanto ao que virá,  pouco importa mudar agora a agulha como num velho gira-discos. O sulco já é demasiado profundo.

5 de setembro de 2022

A vida em papelada



Quando temos algum tempo livre, mesmo que já no queimar dos últimos cartuchos de uma pausa no trabalho, designado por muitos, de férias, há a tentação de deitar mãos à obra e mexer em velhas papeladas, dando o devido destaque a umas, organizando outras e queimando outras mais. 

Com esta minha velha mania de guardar caixas e embalagens e outros papéis (e ainda bem, porque à conta disso tenho cadernetas de cromos dos anos 70 a valerem 500 e mais euros, e cromos a valerem 5 euros por unidade), às tantas damos de caras com a box do telemóvel Nokia 6600, da máquina fotográfica Sony DSC-P71, do CD da Sapo ADSL, de uma colecção do “Bits & Bytes” – suplemento do Jornal de Notícias, da colecção da revista PC Guia dos anos 90,  revistas dos anos 70, como a Tele Semana e a Crónica Feminina, etc, etc, coisas e tecnologias que ainda há duas ou três dezenas de anos eram a cereja no topo do bolo e que hoje nos parecem as velhas mocas dos homens das cavernas.

As coisas são como são. Nem sempre é saudável mexer no estrume com que plantamos e fizemos crescer as nossas vivências e convivências, mas verdade se diga, tudo o que somos hoje, para o bem e para o mal, somos o fruto dessas árvores.

E posto isto nestes termos, porque guardados, damos de cara com os cadernos diários dos primeiros tempos de escola dos nossos filhos, e dos seus desenhos inocentes, e percebemos que, como num flash, passaram vinte anos, duas décadas. 

E o lugar comum de que "ainda parece que foi ontem" torna-se mesmo realidade.

Ficamos assim atados nesta dicotomia do que é mais certo, se o guardar tudo aquilo que um dia nos vem dar um murro no estômago sobre a saudade do reviver em imagens o tempo passado se, pelo contrário, queimar tudo na primeira oportunidade e com isso fazer das memórias e testemunhos apenas cinza que o vento leva.

Tem que se lhe diga. E se há gente que queima os vestígios do seu passado sem o mínimo de esmorecimento, já outros, como eu, teimam em guardar tudo o que um dia nos possa abrir a janela do passado, mesmo que isso nos possa fazer chorar. Se de dor ou de saudade, ou de vergonha, isso pouco importa.

Mas, verdade se diga, com tanto já vivido e incerto quanto ao que virá,  pouco importa mudar agora a agulha como num velho gira-discos. O sulco já é demasiado profundo.

31 de agosto de 2022

Carlos Paião - 34 anos

Para além de tudo, e como foi tanto tanto, a fatídica data da morte de Carlos Paião, a 26 de Agosto de 1988, ficará sempre associada à minha data de casamento, que aconteceu um dia depois, porque nessa véspera de fadigas e canseiras para que tudo corresse bem, a nós, noivos, e aos familiares e amigos, foi a única coisa que a entristeceu. E ainda a entristece porque, pela circunstância, dela sempre me lembro.

Já não se fazem artistas do calibre do Paião, e em 34 anos passados aparecerem mãos cheias deles e delas, mas no geral feitos e projectados sobretudo pela máquina televisiva e do entretenimento, em que uma qualquer loura enche um arraial sem que nada, artisticamente, o justifique. 

Mas é assim que as coisas vão funcionando e quanto mais fora da linha ou da “box”, como se diz, mais gente arrastam para a frente de um palco. 

A música já não é apenas uma experiência sonora, auditiva, mas sobretudo visual, das roupas, das luzes, das poses, dos tiques. Mais do que a música, a melodia, a letra, o ritmo, importa o aspecto de quem a debita. As câmaras, que todos temos no bolso, são ávidas destas “drogas” e precisam delas como do pão para a boca.

Carlos Paião era um artista puro e daí tudo o que escrevia, compunha e cantava, era igualmente puro e mágico, e bastava ser ouvido. A sua música não precisava de condimentos para lhe dar sabor, nem de corantes e conservantes. Perdura.

Tal como a outros grandes nomes da música que partiram demasiado cedo, em que destaco Mozart (e nem me refiro aos que por força de excessos, como é comum a figuras do pop rock), fico sempre angustiado, não pelo muito e belo que produziram, mas sobretudo pelo muito mais que teriam deixado como legado caso o destino lhes tivesse concedido mais uns anos de vida, uma dezena que fosse.

Mas a vida é assim e Carlos Paião, então a caminho de uma actuação em Penalva do Castelo, ficou-se ali numa curva da EN1 perto de Rio Maior, deixando o país consternado.

Mas ainda que jovem (30 anos), deixou muito e bom e por isso continua a viver

21 de agosto de 2022

Sempre a aprender

Uma festa genuína, algures por aí. Está-se mesmo a ver!

Mas, sempre a aprender, os altifalantes não debitavam música de folclore ou de cantores pimba. Nada disso! Nada mais que um relato de futebol!!!

Eu não sei se o S. Miguel Arcanjo ou a Nª Sª da Saúde são adeptos do Porto ou do Sporting, e até acho que não são por ninguém em particular, porque são pelas pessoas e não por clubes de futebol. E gente fanática pelos clubes é o que mais há por aí e não é preciso que o fanatismo chegue a gente santificada. Era o que faltava! 

Mas, esta é novidade, e  se a moda pegar, até pode ser vantajosa para as comissões de festas. Assim, quem sabe, em vez de gastarem balúrdios em cantores pimbas e em bandas de baile, passamos a ter uns relatos de futebol. Na sexta á noite, um Arouca-Vizela, no sábado, um Braga - Famalicão, e na segunda feira, uma coisa em grande, um Benfica-Porto ou um Sporting-Benfica. 

Josés Malhoas, Toys e Zés Amaros, ponde-vos finos! A pólvora acaba de ser inventada!

18 de agosto de 2022

A inflacção é uma treta

Contou-me, hoje, o Manel do Mindo, que ontem por volta das 21:00, porque atrasado por um biscate de última hora, a modos de grávida deu-lhe, a ele e à patroa, apetites por uma "francesinha". 

 Para não irem ao engano, ligou para quatro restaurantes onde o pitéu tem fama, e ainda para mais outros três, onde à falta da francesinha marcharia qualquer coisa que lhe pusessem no prato, mas qual quê? O Wimpy, em Sanguedo, àquela hora tinha  gente à espera e a cozinha fecharia pelas 10. Os restantes, que nem pensar, porque estavam cheios e a abarrotar.

Ora o Manel, porque ainda ligou para mais dois mas ninguém atendeu, a modos de férias sem precisar de facturar,  depois de uma valente rodada de impropérios, lá decidiu, com a patroa, recolher aos aposentos domésticos e preparar uma saladinha de tomates com atum. Bem bô!

Moral da história (verdadeira), esta cena da inflacção, preços altos e dificuldades e coisa e tal, é apenas um ar que lhe deu. No geral, o povo está todo bom de saúde (graças a Deus!), incluindo a financeira. Tudo a assapar!

Cozinhar em casa numa quarta-feira? Esquece!

26 de junho de 2022

O sabor das coisas



Faz-me sempre confusão que algumas pessoas teçam elogios à paisagem e aos lugares, quando passam por elas e por eles a correr, apressados, com minutos contados e metas por destino. É, pois, um quase paradoxo, senão total. 

Não poder ver ao longe uma torre de igreja a rasgar o verde, nem um ponto branco de uma capela a luzir na crista do monte, o apreciar uma flor, o pormenor e contraste de uma folha, ver um lagarto a absorver o sol, seguir com o olhar um pássaro a saltitar de ramo em ramo, ouvir o canto lamuriento, alegre ou impetuoso de um regato ou ribeira é tudo menos saborear a natureza. E nestas coisas não podemos estar com Deus e com o diabo. São incompatíveis e os meios termos são apenas pretextos filosóficos.

Quem engole apressado um prato de assado no forno, sem se deter nos pormenores que levaram a isso, desde o que esteve na origem daquele animal sacrificado para nosso deleite, o lavrar, o semear e o colher dos ingredientes, até ao saber e paixão de quem preparou, confeccionou e serviu, não pode simplesmente exclamar, de boca cheia - Isto está bom p´ra caralho! Quem assim procede está a passar pela vida demasiado apressado, sem se deter a questionar se aquele aroma e sabor é de tomilho, de hortelã ou alecrim..

Em suma, há coisas que só nos são plenas se absorvidas da mesma forma, cheia e intensa. O resto são cantigas de trovadores mal amanhados.

31 de maio de 2022

Números astronómicos e reencarnação

Há quem goste, adore até, de assitir a “reality shows” e outros programas de entretenimento em que a nossa TV é farta, sobretudo a envolverem gente do jet-set. Afinal a nossa TV prima por espetar os espetadores com coisas de que gostam, mesmo que baseadas em boçalidades que nada acrescentam. Mas nada a obstar. Afinal na diferença e diversidade, dizem, é que está a riqueza,. 

Como nestes coisas fujo um pouco à norma, e daí na anormalidade, prefiro e gosto de documentários sobre cultura, natureza e ciências. Fascina-me tudo relacionado ao universo, ao sistema solar, às galáxias, às estrelas e aos planetas. E por aqui impressionam-me sempre os números, desde as distâncias medidas em anos-luz até à idade do universo após o big-bang, por si só uma teoria em que se procura justificar a criação  a partir do nada, ainda a idade do sol e a forma como há-de terminar os seus longos dias, expandindo-se a ponto de engolir, no caso incinerar o nosso belo berlinde azul, ambora quanto a isto, acho que pela nossa loucura a Terra há-de durar bem menos tempo. E nestes dias de guerra irracional, há dedos nervosos ao lado de botões vermelhos, prontos a isso.

Estimam os cientistas, mesmo que em controvérsias, que o universo terá cerca de 14 biliões de anos (13,82), qualquer coisa como o número 14 seguido de 12 zeros e nem importa saber se pela medida da Europa, em que um bilião são mil milhões, se dos Estados Unidos, Reino Unido e Brasil, em que um bilião afinal são mil milhões. Mais zeros menos zeros, são muiiiiiiiiitos anos.

Quanto à Terra, dizem que terá um pouco menos, ou seja 3,5 biliões. Aqui, o conceito de “pouco menos” é mesmo uma questão de semântica. 

Já o sol, a nossa estrela, terá qualquer coisita como 4,5 biliões de anos e estima-se que tem combustível (hidrogénio) para queimar (600 milhões de toneladas por segundo) no seu reactor por mais durante 5 biliões de anos. Está, pois, a metade da sua previsível vida. Mas esse processo englobará várias etapas e uma vez queimado o hidrogénio o sol consumirá os elementos remanescentes mais pesados, como o hélio, o carbono, o oxigénio e por fim o ferro  e como este não poderá ser queimado, já que a energia necessária é superior à produzida, então a nossa estrela colapsará e explodirá espalhando todos os elementos acumulados pelo universo. Afinal a continuação de um ciclo, já que em rigor todos os seres vivos, incluindo nós humanos, são formados por essa massa primordial de átomos. Em rigor, dizem os cientistas, nesse processo de transformação da parte final da vida do sol, este irá expandir-se, crescendo para o dobro, transformando-se numa "gigante vermelha", e incinerar literalmente o nosso planeta  e todos os demais que o orbitam.

Neste contexto de distâncias e idades expressas em números gigantescos, quase imensuráveis à nossa percepção terrena,  ficamos todos com a plena certeza que a nossa vida (dos humanos) e a de todos os seres vivos, animados e inanimados, não é mais que uma ínfima fracção de segundo quando comparada aos tais números astronómicos. Uma borboleta ou uma abelha vivem poucos dias ou semanas e mesmo os seres vivos com mais expectativa de vida, como algumas espécies de corais, baleias, tubarões, que podem andar pelos 200, 500 ou mesmo 1000 anos, são sempre vidas curtas. Há até um estudo de 2012 que sugere que uma esponja do mar, a Monorhaphis chuni terá a idade de 11 mil anos. Mesmo tendo em conta estes 11 mil anos, a coisa continua ínfima na escala da vida do universo, do sol e da terra.

Por conseguinte, para aqueles que acreditam que todos nós havemos de reencarnar mesmo que enquanto um animal, não restam dúvidas que durante um milhão ou bilhão de anos temos tempo de viver e reviver na pele de todos os seres vivos que existem na terra, nas águas e no ar. Podemos assim vir a ser um cão, um gato, uma cabra, um rato, uma cobra, uma minhoca, um papagaio, uma sardinha, um atum, uma lula, uma mosca, uma borboleta, um morcego, etct, etc, etc, etc,. Tempo  ao universo é o que não falta.

Assim sendo, pelo sim e pelo não, dentro do possível e desde que não nos ponham em risco, será preferível que respeitemos todos os seres vivos na sua dignidade, pois podemos vir a ser um deles. Se daqui a 100, 200, 500, mil, cem mil ou um milhão de anos, não sabemos. Mais vale prevenir.

E vamos deixar por ora esta questão, porque tanto número e ordens de grandeza deixa-nos baralhados, confusos, e a perspectiva de podermos vir a ser um qualquer insecto rastejante ou um escaravelho-da-bosta não é lá muito inspiradora e muito menos animadora, convenhamos.

Boa Terça-Feira!