15 de julho de 2023

Por terras de Lafões e do Alfusqueiro

 


Manhã bem cedo, rumamos a terras de Lafões, verdes e viçosas, serpenteadas pelas águas límpidas e frescas do Alfusqueiro e do seu irmão Couto.  A trilhar um percurso repleto de vestígios românicos e medievais. A paisagem natural e a modelada pelo homem numa simbiose perfeita, com caminhos e carreiros ladeados por muros revestidos de musgo e à sombra de centenários carvalhos. Percorrê-los com pressa seria quase um pecado, um sacrilégio mesmo.

No retempero, o bem servir com a classe e o saber fazer da Margarida e do Fernando. Ainda há momentos que sabe bem guardar para durarem e perdurarem. 

Um dia destes estão marcadas a segunda e demais jornadas, ainda por aquelas bandas, nomeadamente mais a sul pelo Caramulo onde havemos de lavar o rosto na nascente do Alfusqueiro, matar a sede no Couto e lavar os pés no Alcofra.

De seguida partilho alguns dos muitos olhares sorvidos.



























































































14 de julho de 2023

A Ti Zulmira

Nascida, criada e casada no terrão viçoso que é a aldeia de Guilharães, a Ti Zulmira já marcha a caminho dos noventa, com oitenta e sete bem feitos, precisamente no dia da festa de S. Miguel, patrono da terra. Nasceu, pois, ali mesmo debaixo da latada de americano que bordejava a ribeira dos Pousados, de onde já pendiam gordos cachos de americano de bagos bem pintados. 

A sua saudosa mãe, então habituada pelo parir de uma rebanhada de filhos, levara até à última a gravidez e quando se lhe rebentaram as águas andava ela por entre o milho alto a regar numa manhã bem fresca desse Julho, sarapintada pela caruma do pendão das bandeiras. Sentindo aquele manancial a rebentar dentro de si, só teve tempo de se aninhar num largo lençol que trouxera, não fosse o diabo tecê-las, que abriu sobre e erva ainda orvalhada, e mandar recado urgente pelo Minguitos, que trouxera consigo a vigiar três ovelhas a pastar. Que fosse depressa, bem ligeiro, a correr à Leirosa a casa da Ti Bernarda. Que lhe viesse ajudar!

O rapazito, que se entretinha com o rodízio de bogalhos na borda do rego da água, percebeu a aflição da mãe e como um galgo disparou veloz pelo caminho em direcção ao cimo do lugar e dali a pouco chegava já acompanhado da velha, parteira experimentada da freguesia e arredores, levezinha, de mãos finas, parece que já talhadas por Deus para penetrar naquelas nascentes quentes. Talvez por isso gozava da alcunha de “mãozinhas” o que não a incomodava pois bem sabia da importância que tinha para aquele rebanho de mulheres parideiras da aldeia. 

Mas isto é a gente a contar, porque a Ti Zulmira, tal como a sua mãe, que Deus já a tem, nunca teve em tamanha conta o dar à luz fora da cama. De resto nem era novidade na freguesia e num tempo em que os cuidados de saúde não eram tidos nem achados por aquelas e outras  bandas, as mulheres pariam com os mesmos cuidados que os animais. Aceitavam essa condição sem qualquer esmorecimento porque lhes era instintivo. Além do mais, viam nela a mesma naturalidade com que assistiam ao nascimento dos filhotes das vacas, dos porcos e das ovelhas.

Desse nascimento térreo, agreste, quase animal, impregnado de pólem do milho e dos aromas das uvas e da erva fresca, a Zulmira foi sempre vigorosa, saudável, mesmo que atingida com as habituais maleitas que, como o sol, quando vinham era para todos e todas, como o sarampo, a varicela, o tesourelho e outras que tais, mas nada que as rezas, talhaduras e mezinhas da avô Tomásia não remediassem. Era a farmácia viva de Guilharães e no tecto de soalho da loja da sua casita escura pendiam ramos secos de tudo quanto era erva curadeira. Lá estavam a erva-de-s.roberto, o louro, a cidreira, o limoneto, a cavalinha, a gilbardeira, as urtigas, as malvas, a camomila, o hipericão, etc, etc.

A todas essas pragas a Zulmira resistiu e de cada uma saía mais forte, corada e viçosa. Na escola, então apenas para alguns rapazes, mal teve tempo de aprender a escrever o seu nome e as aulas tinha-as no campo e à volta da casa com as lições bem administradas pelo pai Belmiro e pela mãe Teresa. As disciplinas eram várias e seguiam os critérios das estações e das lides do campo. Cavar, sachar, mondar e regar , eram pai-nossos de todos os dias para além das lides da casa como limpar, arrumar, remendar, costurar, tecer, fazer as camas, tratar do gado, ordenhar vacas e ovelhas, matar galinhas e tudo quanto no galinheiro mexesse e tivesse bico. Todas as lições de cada dia conduziam a uma finalidade única e básica , a de semear para colher ou de sobreviver para viver.

Mulher assim, bem licenciada nas coisas da terra, ainda por cima de boa estampa, trigueira de pele, de uns profundos e brilhantes olhos castanhos e cingida de cabelo farto, cedo foi colhida pelo Hilário dos Azevedos e ainda não contava vinte primaveras quando uniram as mãos e as vidas defronte do padre Tobias. Seriam sombra um do outro, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença.

Dessa vida, que continuou ligada à terra, os trabalhos e canseiras duplicaram porque o Hilário não dava descanso aos instintos progenitores e a Zulmira não os recusava pelo que conforme a natureza assim o consentisse, os filhos foram nascendo daqueles entranhas a um ritmo certinho e como se não bastasse até gémeos teve, o António e o Miguel.

O tempo foi passando e somadas as festas ao S. Miguel e os foguetes que a ele estouravam eram também para a Zulmira.

Louvado seja o Nosso Senhor Jesus Cristo! Apesar dessa constante labuta para manter a casa e os filhos sadios e limpos, com canseiras e sacrifícios para que nada lhes faltasse, mesmo em tempo de vacas magras, o tempo foi passando, ela o Hilário envelhecendo e perdendo o vigor do tempo primeiro e os filhos a crescer e a abandonar a casa, para eles próprios continuarem aquele ciclo bíblico do crescei e multiplicai-vos. Como amostra da dúzia da prole, ficou a Cacilda, uma das mais velhas que, avessa a rapazes, foi ficando por casa como galinha choca e é quem agora vai cuidando da mãe Mira. Ainda, dedicada, cuidou do pai, mas este, teimoso em não largar o tabaco, acabou por partir bem cedo, pouco depois dos sessenta, mirrado dos pulmões.

Chegada  aqui, vive pois, a Ti Zulmira naquele casarão velho que herdou dos pais, ajudada por uma filha pouco mais nova que ela. Mas vive em constante sofrimento e em todas as orações e terços que reza de fio a pavio, invoca todos os santos e santinhos, a começar pelo da porta, o S. Miguel, para que Deus a leve deste mundo porque já nada mais tem nele a produzir ou, pior do que isso, já nada mais poder fazer. Bem se tenta a ir pelo menos à horta mexer nas couves, nas favas, alfaces e tomates, ou ao jardim endireitar os crisântemos, mas as pernas e todos os ossos de tão castigados por uma vida dura de casa, campo e mato, que parecem os gonzos gastos e desconchavados das portas velhas dos aidos, não ajudam ao calvário dos tempos derradeiros e até suplicam por descanso. Mas com esta idade e artroses até o descanso cansa. Toma a horas certas uma mão cheia de diferentes comprimidos, para todos os males antigos e modernos e já não tem, de há muito, a avô Tomásia para lhe valer com as velhas medicinas. Agora é viver e gemer até quando Deus quiser e tomara que não se atrase na decisão.

A Cacilda e os demais filhos bem que a andam a azucrinar com a ideia de que ela estaria bem melhor no Lar de Idosos da vila, que teria companhia de gente como ela, estaria bem cuidada e com médico e enfermeira a fazerem a ronda diariamente. Mas que não, que nem pensem em tal coisa. Seria melhor que a atirassem ao fundo da ponte do Padrão onde a esperavam os penedos lavados pela ribeira.

Os filhos bem tentam fazê-la compreender que seria melhor para ela, e naturalmente para eles porque não têm vida para fazer de anjos da guarda dia e noite, mas a Zulmira apesar de entender para si o acerto dessas recomendações, porque mesmo que com uns lapsos de memória que dizem ser de um tal alzheimer, ainda não perdeu de todo o juízo, mas vai-lhes dizendo que será por pouco tempo e que já não chegará aos noventa, como chegaram os avós, como se não acreditasse na robustez das cepas ancestrais.

Não sabemos como acabará a história da Ti Zulmira de Guilharães, e sempre que por ela perguntamos à Cacilda, responde que está a sumir-se de dia para dia.  A ser assim, um dia sumir-se-á de vez, que mais não seja pela fatalidade da lei da vida, mas sabemos que o que não faltam por aí, sobretudo pelas nossas aldeias, são  muitas zulmiras, que desde que paridas em condição felina, cresceram e viveram de forma arreigada às canseiras da casa, da família, dos animais, do campo e do mato. Nunca tiveram outra realidade para além desse horizonte e mesmo já no fim da curva do caminho da existência, rendidas à incapacidade do corpo e da tristeza da alma, não querem abandonar as paredes que durante uma vida confinaram a sua existência, nem renegar a essa condição primordial, a de que a morte deve estar em harmonia com o que foi a sua vida. Dura e penosa, mas digna até ao fim.

Nós, os mais novos, os filhos e filhas das ti zulmiras, porque já nascidos noutras palhas e crescidos em menos apertos, e mesmo com mentalidades moldadas pela formação e modos de vida modernos, não estamos com a vela bem virada ao vento que empurra o barco dos nossos pais quando velhinhos e decrépitos e vemos nessa forma de ser apenas uma teimosia e casmurrice que atrapalham as nossas vidas, mas sem sabemos lá o que verdadeiramente lhes vai na alma. Para o compreender temos ainda que percorrer e subir o caminho que falta até ao miradouro de onde é possível alcançar esse pleno vislumbre. Mas, que mais não seja, por imperativos da ordem natural das coisas, será fatalmente sempre tarde para acertar as agulhas. A vida não se compadece com preciosismos ou desacertos de ritmos na dança.

A morte, com mais ou menos aparato, virá sempre resolver os dilemas e fechar contas, que mais não seja pela forte razão de que, como diz o ditado, o que não pode ser resolvido, resolvido está.


A. Almeida – 14 de Julho de 2023

É Sexta-Feira, 14!

É Sexta-Feira, 14! Há greves nos tribunais pelo sindicato dos funcionários judiciais, na CP e na Fertagus, pelo menos. O resto é o que se sabe, educação e saúde em polvorosa.

O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP foi aprovado pela maioria socialista. Toda a oposição votou contra. O relatório é aquilo que o PS e o primeiro ministro queriam que fosse. Nem de encomenda seria tão conveniente. Uma farsa, uma novela, uma comédia, uma lavagem das nódoas da transportadora aérea e seus intervenientes com lixíva negra e OMO em que branco mais branco não há. Toda aquele gente evolvida em negócios e decisões de milhões passou incólume por entre os pingos da chuva. De facto, contradizendo o ditado, ainda há quem ande à chuva e não se molhe.

Mas tudo isto nada tem de relevante porque para isto é que servem as maiorias. Fosse qualquer outro partido a (des)governar e o desfecho seria o mesmo. Os políticos nisto no geral andam todos ao mesmo nível, baixinho, mas pouco se incomodam, porque haja eleições e lá estaremos a marcar a cruz no quadradinho do costume. É certo que cada vez mais em menor número, porque a malta cansa-se, mas ainda em número suficiente para legitimar a coisa.

Tem razão Rui Rio, também ele, mesmo com ar de enfant terrible a conduzir um dos seus clássicos, a ser acossado pela polícia de costumes por algo que todos reconhecem ser uma prática à Lagardére,  ao dizer que "...já não tenho esperança no país". 

Condene-se a prática e os praticantes! Pelo menos assim poderá haver uma esperança de varrer e limpar os aposentos e bancadas de Belém.

É Sexta-Feira, 14 e bem poderia ser 13, mas isso foi ontem e em Cabeçais - Fermedo, deve ter havido a anual Festa das Debulhas. 

Debulhar é preciso!

13 de julho de 2023

O senhor Destino


Quem é esse senhor importante

A quem todos chamam Destino,

Que determina cada instante

Do ser, à morte desde menino?


Que poder tem tal criatura,

Que desfecho decide em nós,

Desde a calma doce e pura

Ao fim mais doloroso, atroz?


Por mais as voltas e revoltas

Feitas e que com ele trocadas,

Não há casos com pontas soltas;

No emaranhado das redes fiadas.


Mas se é assim tal fatalidade

Do encontro com esse senhor,

Importará tão pouco a idade:

- Que o destino seja o que for!


A. Almeida - 13 de Julho de 2023


Uma interpretação:

O poema acima procura uma reflexão e uma abordagem poética sobre a figura do Destino. Através de uma série de questões, o poeta pretende levar o leitor a contemplar a importância e o poder desse misterioso senhor a que todos chamam de Destino.

No primeiro verso, surge a pergunta "Quem é esse senhor importante", evidenciando a curiosidade e a incerteza que envolvem essa entidade. O poeta procura compreender como o Destino determina cada instante da existência, desde a infância (desde menino) até a morte.

Na segunda estrofe, o poema indaga sobre o poder que essa criatura detém, capaz de decidir o desfecho de nossas vidas. Desde momentos de calma e pureza até os mais dolorosos e cruéis, o Destino parece ter o controle sobre todos os aspectos de nossas experiências.

A terceira estrofe reforça a ideia de que não há acasos ou coincidências soltas nas tramas tecidas pelo Destino. Mesmo diante das reviravoltas e trocas feitas com ele, tudo se encaixa nas redes que ele tece. Aqui, há uma sugestão de uma ordem cósmica, uma fatalidade inexorável que permeia nossa existência.

Por fim, na última estrofe, o poema nos faz refletir sobre a importância da idade diante do Destino. Independentemente de sermos jovens ou idosos, o poder dessa entidade é indiferente. O Destino não se restringe ao tempo, mostrando que seu domínio transcende a linearidade temporal.

Essa análise poética e filosófica leva-nos a contemplar a complexidade do Destino e sua influência sobre nossas vidas. O poema nos convida a refletir sobre a existência humana e a confrontar a ideia de livre-arbítrio diante da inevitabilidade dos desígnios do Destino.