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11 de março de 2024

Para a próxima é que vai ser!

O Domingo foi de eleições. Mais umas, no sítio do costume e quase com as mesmas caras  e com igual objectivo de sempre, o de fazer de conta que decidimos o nosso destino. Mas em rigor não decidimos coisa alguma e, conforme já se percebeu pelos resultados, será uma questão de deixar passar a Páscoa, as férias, o Verão, e depois seguir-se-á mais um acto, tão teatral quanto todos os passados e futuros.
Já nada é como dantes. Como nas relações na cama, se a coisa for muito frequente, entra-se na rotina e perde-se-lhe a conta, o entusiamo, e para voltar a aquecer é preciso refrescar. Um trocadilho, um paradoxo, mas afinal como um bom alfaiate a tirar-nos a medida ao corpo para nele caber um fato, as coisas são mesmo assim e hão-de continuar como tal. Somos meros manequins de prova.

Até o dia com chuva e cinzento ajudou a este melancolismo, sem entusiasmo, e a noite encerrou-se sem foguetes nem caravanas a passear entusiasmo tolo ou sentido. Nas televisões um dejá-vu, os habituais lugares comuns, todos a procurarem afirmar que o copo ficou meio cheio porque vê-lo meio vazio é admitir perdas e derrotas. Todos agem como se fossem vitoriosos e até quem não foi a votos foi tido e achado como vencedores ou perdedores. 

O costume, nada de novo. Como diz o Fernandinho, mesmo num dia nublado e com chuva o sol brilha; nós é que não o vemos. Talvez por isso a clássica CDU teime em resistir até à extinção, com um PCP já sem defesa pela foice e martelo gastos, ferido a cada cajadada eleitoral, mas a prometer luta e defesa dos trabalhadores, dos valores de Abril e contra a direita reaccionária, ou lá o que isso seja, como se ainda no ar o odor do Verão Quente e das tropelias do  PREC. Mas nisso, reconheça-se-lhes, são coerentes, e uma formiga há-de sempre fazer comichão ou cócegas nos tomates de um elefante. 
Na próxima, quem sabe se não votarei no Raimundo, que até me parece boa pessoa. Afinal, como dizia o brasileiro Tiririca, "pior do que está não fica". Perdido por perdido...

Viva a liberdade e a democracia que, desde quase há meio século, nos permitem sonhar que para a próxima é que há-de ser. Afinal até um relógio parado tem horas certas duas vezes ao dia. Quem sabe se não será na próxima?

12 de junho de 2023

Tascas e tabernas, branco e tinto

Apesar de ainda ser possível uns vislumbres delas, à conta de gente que resiste na idade e no ofício, talvez já não por necessidade mas por mera ocupação e distracção dos longos dias de quem vive só, e porque há sempre um ou outro cliente desocupados em que a pretexto de um copo de vinho se trocam dois dedos de conversa, as antigas tascas, tabernas ou mercearias das nossas aldeias, que na maior parte dos casos eram a mesma coisa, estão fatalmente condenadas ao desaparecimento. Devido a novos hábitos de consumo, novas culturas de socialização, concorrência de outros espaços com condições incomparáveis de modernidade, em tamanho, diversidade, luz e cor, mas também por um excesso de zelo de autoridades que se foram estabelecendo para meter sem critério no mesmo saco questões de higiene e segurança alimentar mas também colheres de pau, tachos e panelas e cozinhas onde não brilhe a chapa inox. Já na década de 1980 surgiram como cogumelos os cafés e snacks-bares, com ares de modernidade e deram uma valente machadada na árvore das patacas que até essa altura eram as tabernas e tascas.

Nalguns centros históricos de algumas das nossas cidades, mesmo que remodeladas e com serviços mínimos nos padrões ditados pelas autoridades, ou com estas a fazerem vista grossa, porque nestas coisas raramente se come pela mesma medida, ainda vão subsistindo pontos ou lugares emblemáticos procurados pelas multidões de turistas, como curiosidades ou exemplos de um certo passado castiço e bucólico. São uma espécie de amostras vivas num arquivo morto, mas mesmo essas aos poucos vão morrendo em grande parte pela pressão imobiliária que se faz sentir nas zonas históricas, porque, apesar do Governo pretender colocar um freio na actividade, não tanto por razões objectivas mas como assomo de subjectividade relacionada a políticas de habitação que não servem a gregos nem a troianos, fosse a coisa navegando ao sabor dos ventos e marés e grande parte das nossas cidades mais turísticas estariam quase na sua totalidade transformadas em alojamentos locais, como modernas minas que rendem ouro em que um quarto minúsculo e uma casa de banho trapezoidal, onde não se podem abrir os braços nem esticar as pernas, é pago a preço de uma sofisticada suite em muitos hotéis.

Nas aldeias mais remotas, onde ainda não chegaram os carrões do pessoal da ASAE, e fica longe para compras regulares no centro das vilas, ainda escapam algumas pequenas mercearias e tascas à moda antiga, mas mesmo aí são raridades porque de um modo geral por ali não há moradores, quanto mais clientes.

Cá por estas bandas, mesmo na nossa pequena freguesia, chegaram a existir em simultâneo uma meia dúzia de mercearias que também eram tascas ou tabernas, onde tanto se aviava um quilo de arroz, um pau de sabão e uns quinhentos gramas de broa, como um quarteirão de vinho a acompanhar com umas azeitonas ou uma talhada de queijo. No balcão corrido onde imperava a clássica balança de braços ou de ponteiro da António Pessoa, L.da, aviava-se a mercearia mas também os copos e os petiscos. Para casa levava-se as compras para a semana, sobretudo de coisas que os campos e as hortas não produziam, mas também, quase sempre, pequenas pielas ou grandes bebedeiras. O pagamento em dinheiro era arrastado e valia o livro dos calotes para tomar nota da contabilidade de cada cliente na esperança de que pelo final do mês, com o recebimento da quinzena de leite ou de outra receita, fosse dado algum por conta. Por sua vez, o rigor e  aprumo das contas em comunidades interiores onde abundavam a ileteracia e o analfabetismo,  dependiam sempre da honestidade dos merceeiros. E se esta fosse pouca, valia de nada a prova dos nove com que no final se confirmavam as contas do deve e haver.

Aos Domingos as tascas e tabernas enchiam-se de homens a jogarem cartas ou o dominó, e na rua defronte, as malhas, ou simplesmente a conversar enquanto o tasqueiro andava num vai-e-vem atarefado e constante a aviar quarteirões e quartilhos de branco e tinto, servidos directamente dos pipos. Em garrafa só mesmo as cervejas, as gasosas e os pirolitos.

Mesmo os consumíveis líquidos como azeite e petróleo eram comercializados a granel, assim como pedras de carboneto para os gasómetros ou outros produtos similares. As mercearias eram também, em grande medida drogarias. Nalgumas até se servia o alvaiade, o óxido de ferro e óleo de linhaça para preparar a tinta com que tudo se pintava.

Da mercearia mesmo a alimentar, pouca tinha embalagem própria e quase tudo era vendido a granel e aviado em sacos de papel grosseiro. O plástico não era novidade, porque então há muito inventado, mas era coisa ainda não corrente. Mesmo azeitonas ou chouriços saídos das oleosoas latas, eram enrolados em folhas de papel vegetal. Queijo, marmelada, biscoitos, bolachas e outras lambarices para momentos festivos, tudo era vendido ao peso que permitisse a carteira e despachado num embrulho ou saco de papel. As mercearias eram boas clientes das fábricas de papel.

Em resumo, a época dourada das mercearias, tascas e tabernas das nossas aldeias, pertence já a um passado, se não distante,  pelo menos a passos largos do esquecimento. Os mais velhos delas já só têm lembranças, mas os mais novos nem sabem o que isso é. E fotografias que os convençam, não há muitas.

Num destes dias, num Domingo à tarde, calhando em saída com amigos para beber uma cerveja ou lamber um gelado, porque a tarde estava quente, passamos por uma aldeia vizinha onde se anunciara que abrira ao lado de umas bombas de gasolina, um novo espaço do tipo padaria e pastelaria. Onde antes havia um sórdido salão de jogos com uns bilhares e onde entre tacadas se reuniam bêbados e fumadores, há agora um espaço com ar moderno, airoso e asseado, apesar dos tremoços, salgados e com sabor a velho, não convidarem a uma segunda rodada, mas percebe-se que se a coisa não se desmazelar na qualidade dos produtos e da eficácia e simpatia do serviço, será um espaço interessante para os locais e gente das redondezas socializaram, seja pela manhã com chã, café e torradas, seja à tarde com umas cervejas fresquinhas e uns tremoços. Ainda não é snack-bar mas um papel colado numas das paredes anuncia que todas as sextas-feiras ao almoço haverá “francesinha” a preço convidativo.  

Dali, demos um salto a uma aldeia próxima, mas já de Arouca, em cujo centro um pelourinho  reconstituído do antigo, mostra orgulhosa que já foi sede de concelho antes de sucumbir  às reformas administrativas do liberalismo. Ali, nas bordas do casario denso, um café moderno, semeado de clientes e ao lado um café à moda antiga, vazio. Mas como a cerveja é igual em todo o lado, desde que devidamente fresca e não em fora de prazo, nele entramos numa de contra-corrente. Um típico café, de que retirados alguns produtos modernos, poder-se-ia pensar que estávamos nos anos 1970, antes ou depois a revolução dos cravos. Um balcão simples, corrido, com tampo em fórmica desgastada pelo roçar de copos e garrafas e ladeado por uma dúzia de bancos altos, redondos para fazerem do balcão a mesa comum. De resto o espaço dentro e fora do balcão é comprido mas pouco largo e não dá para grandes ajuntamentos e nem convém porque ali em dia de feira mensal ou festa anual não importa fazer sala mas antes beber, pagar e sair. Perguntei se toda aquela procissão de bancos já estivera ocupada em simultâneo. - Ui! Tantas vezes! Vezes sem conta! 

Assim terá sido durante os quase cinquenta anos que a tasqueira, uma senhora bem composta, simpática e faladeira, com ares de octagenária, disse estar aberto o estabelecimento naquela configuração. Por conseguinte, para além da máquina de venda de tabaco e pouco mais, as coisas por ali quase nada terão mudado e nem teria valido a pena, porque o vender vinho a copo, cerveja ou esta com gasosa não tem arte nem precisa de grande coisa e conforto, bastando o balcão e um banco alto redondo desconfortável para ali não se fazer ninho. Até mesmo os pequenos cartazes com trocadilhos e ditos populares mais ou menos maliciosos expostos defronte ao balcão, são de leitura rápida.

Perguntámos se não servia petiscos. Que não! Noutros tempos sim, iscas, pataniscas e peixe frito, mas que agora não tinha condições para isso, não compensava nem valia a pena. Os novos não querem nada e indo os velhos à sua vida  a coisa encerra e estas coisas fechando portas dificilmente voltam a abrir porque já não deixam. A porta de saída dá directamente para a rua e não convém ter ali gente enfrascada a sair aos trambolhões. Noutros tempos não haveria problema porque o trânsito era de carros de bois, cavalos e outras cavalgaduras e mesmo os automóveis contavam-se pelos dedos de uma mão os que ali passavam por dia. Arouca ficava longe e por maus caminhos e quase só se lá ía anualmente para pagar as contribuições e pela Feira das Colheitas.

Continuando a manter conversa, perguntamos como é que ía o padre, que ali paroquiava a freguesia e mais duas vizinhas. Que ía indo e andando, mas os horários dos serviços e missas é que são uma trapalhada porque a modos de agradar a todos, vai alternando os horários e missas nas capelas e igrejas e às tantas o povo perde os nortes e não raras vezes dão com as portas das igrejas e capelas fechadas porque afinal o serviço decorre noutro local. 

Continuando a tirar nabos do púcaro, até porque a senhora era boa conversadeira, perguntamos qual a freguesia da melhor preferência do pároco. Achava que era uma, a sua, mas as outras achavam diferente. Ou seja, cada uma das três acha que é a enjeitada a desfavor das outras como amantes ciumentas. Neste ponto da conversa veio-me à memória aquele velhinho a quem perguntaram qual vinho preferia, a que respondeu com ares de não ter dúvidas, - O tinto!. Mas então o branco? - Também gosto! Ou seja, no fundo um pároco que tenha duas ou mais freguesias a seu cargo tem-nas, por princípio, na mesma conta do vinho. Gosta sem dúvida do tinto mas também, com toda a certeza, do branco e certamente que ainda do rosé. Afinal, vinho é vinho mesmo que vindo de pipas de diferentes tamanhos. Depois, se dizem que o tinto se propicia a acompanhar densas carnes vermelhas, fumeiro e enchidos, já o branco combina na perfeição com a leveza do bacalhau, peixes e carninhas brancas. O rosé, como nem branco ou tinto, presume-se que deve ir bem com qualquer coisa, até com uns doces e sobremesas.

Nisto de padres, paróquias e vinhos, como de resto em tudo o mais, o racismo, discriminação e preferências interesseiras e interessadas não devem ter lugar. Pelo sim e pelo não, coma-se e beba-se  de ambos. Haja vontade, sede e fome! Amém!

29 de maio de 2023

Vila Maior num portugal dos pequenitos

Há coisas assim, enganadoras no nome. Vila Maior é uma terra que nem é vila e até será menor entre as demais do concelho e de resto, na União de Freguesias para onde foi encaixada (com Canedo e Vale), é cauda da mesma, tal como Guisande com Lobão, Gião e Louredo.

Será concerteza terra de boa gente, pacífica, trabalhadora e orgulhosa da sua identidade e tradições, mas é óbvio até para os forasteiros que a sua integração numa União de Freguesias nada lhe acrescentou e até nas coisas mais básicas, como limpeza e conservação de ruas, está desmazelada. Por exemplo, pela Rua do Salgueiro e Rua do Barreiro, por onde passei, a erva nas valetas já dava para uns bons fardos de palha e o piso já teve melhores dias e aguarda por uma não sei das quantas fases das pavimentações no concelho. Nisto de uniões de freguesias é como com certos cães, em que a cabeça é que come e por vezes até tenta morder a própria cauda. Um perigo! Melhor será cortarem-lhes a cauda. E no caso, agradecem.

Vila Maior nestes dias teve a sua tradicional festa em honra do Espírito Santo mas S. Pedro não esteve pelos ajustes e concedeu uns dias cinzentos e de chuva, naturalmente a tirar brilho à romaria e ao envolvimento social. Mas as coisas são mesmo assim e se pudéssemos intervir no clima seria sempre sol na eira e chuva no nabal. Calha a todos e até num bonito mês de Maio a chuva pode cair por mais que atrapalhe certas eiras.

Na bonita igreja matriz, perfilavam-se uns 16 andores todos engalanados das mais vistosas e exôticas flores, alguns a precisar que os olhos se arregalassem para neles vislumbrar o santinho, minúsculo de tamanho mas enorme em graças, no meio daqueles jardins ambulantes. 

Fora da igreja, no palco esperava encontrar uma Banda Filarmónica a executar a abertura 1812 de Tchaikovsky, mas nada disso.  Ao som de hips-hops, misturado com o spunk-spunk dos carrocéis, exibiam-se vários grupos de adolescentes, no geral empenhados e bem mexidos mas pouco coordenados. Por curiosidade perguntei a mim mesmo se fossem convocados para plantar ou arrancar batatas num campo se apareceria alguém daqueles dezenas. Talvez não, porque a nossa juventude gosta destas coisas de palco, mas sujar as mãos e partir as unhas na terra que dá sustento, é que não. Além do mais plantar batatas também implica meter os dedos no estrume. Mas pelo menos nas escolas que lhes ensinem que as coisas que vão ao prato, como as saborosas batatas fritas, são provenientes do trabalho no campo. Mas adiante, que isto é brincadeira! A malta gosta é de festa. Trabalho, outros que o façam!

A nossa freguesia de Guisande partilha com Vila Maior o santo padroeiro, S. Mamede, mas no que à sua imagem diz respeito são tão distintos que se diria que fillho de diferentes mães. O nosso S. Mamede é discreto, formal, mesmo que com uns pequenos e mansos leões a seus pés. Já o Mamede de Vila Maior tem ares de jovem rebelde, com cabelos revoltos e a seus pés umas mansas ovelhas.  Talvez retratos de diferentes fases da vida. Por outro lado, os santos, como as pessoas, são como a gente os pinta ou talha. A mesma pessoa pode ser vista como um santa ou um diabo, dependendo dos olhos que a medem.

Na lateral norte do exterior da igreja matriz, lá estavam estampadas as contas da paróquia. Entre outros itens, as verbas pagas ao pároco no mês de Abril, que totalizavam pouco menos que 400 euros. Reparei que também teve direito a uma parcela de gratificações. Os padres hoje em dia são assim, bem gratificados e ainda temos que dar graças por se dignarem a ser gratificados. Eu não sei se é muito se é pouco o que ganha um padre, sendo que o de Vila Maior tem ainda a seu cargo duas outras grandes paróquias, como são Lobão e Sandim. Mas mais arroba menos quintal, todos reservam para si um muito bom e excelente ordenado e trabalho ao mínimo porque isto de rezar missas é cansativo. Hoje em dia aquela coisa chamada de vocação e votos de pobreza ou de simplicidade é um eufemismo desaparecido com os antigos eremitas. Já não vivem de comer amoras silvestres e gafanhos nem rompem sandálias pelos caminhos ásperos dos montes. Os tempos actuais são de uma nova era e nela o senhor dinheiro tem um peso substancial, quase cósmico, e sem ele o mundo não gira nem o sol brilha.

16 de maio de 2023

Uma feira de gente santa

Início da manhã numa Segunda-Feira fresca mas a prometer sol.  

Quando vamos a Santa Maria da Feira já parece que vamos ao Porto ou a Braga e o trânsito transborda pelas ruas como nos velhos regos quanto o Ti Manel abria o bueiro da presa das Corgas. Mas aí a água corria límpida e fresca pelos canais desimpedidos a caminho da rega dos milhos, do feijão ou das batatas ressequidas a estalar a terra. Já o trânsito de agora flui aos solavancos, porque ordenado pelas rotundas, pelos semáforos ou por alguém que se mete, ora da esquerda, ora da direita, um motard armado aos cucos que não aprendeu o significado de uma linha contínua ou um peão descontraído que atravessa a dois metros da passadeira. Um autêntico lufa-lufa e quem não quiser ter surpresas nesta batalha de máquinas quase voadoras, tem que sair mais cedo da toca para se pôr a horas aonde tem compromisso.

Desta vez, a caminho para uma consulta externa no Hospital da Feira. Não há quem o não saiba, mas o parque de estacionamento do hospital foi projectado como se fora para um pequeno centro de saúde e por isso de há anos que é pouco para as encomendas e encontrar um lugarzinho vago, mesmo que apertadinho ou nas bordas dos acessos, face a tantos carros tem que ter carradas de paciência e esperar em fila que algum saia ou andar por ali num interminável carrocel como a bolinha na roleta da sorte, como antigamente nas festas do Viso ou do Santo Ovídeo. O próprio hospital já recomenda que não se utilize o seu parque e o remédio é estacionar a pagar, uma praga moderna que veio para ficar e chular os já muito chupados contribuintes, ou bem ao largo dos parquímetros num daqueles parques privativos que são autênticas minas de fazer dinheiro sem que o dono ou explorador pague um cêntimo de impostos. Típico de portugueses espertos. 

Felizmente, construiram a cinco minutos dalia a pé o Lidl e o Mercadona e os respectivos parques têm servido como uma boa e grátis alternativa. O hospital bem que lhes podia pagar uma avença como recompensa. Mas não pagará, que o Estado, já se sabe, é mau pagador, e cheira-me que um dia destes os estabelecimentos vão ter que arranjar algum controlo de acesso aos parques porque já devem ter cheirado o refugado e percebido que muitos que ali estacionam não é para entrar e comprar batatas ou arroz mas sim para irem aos senhores doutores do hospital ali perto. Afinal, à vontade não é à vontadinha.

Na sala de acesso às consultas, e ainda não eram 8 horas, já havia fila para o check-point e os habituais remoques para quem, mais desenrascado, fazia a verificação nas máquinas laterais, estas sem pessoal da casa a orientar. Mas explicou a auxiliar que as máquinas laterais eram para quem as soubesse utilizar pelo que quem estava na fila e a elas não recorria não podia reclamar que outros o fizessem. Mas reclamavam porque português que se preze, reclama por tudo e por nada. Eu também reclamo, por vezes por nada e tantas por tudo, mas por ali não dei razão ao senhor de bigode farfalhudo nem à senhora enorme (porque agora é politicamente incorrecto classificar alguém como gordo ou gorda). Que fizessem o mesmo e enfrentassem as tecnologias! Mas qual quê? Isto de inserir o cartão de cidadão numa ranhura, esperar e carregar com o dedo na marca para imprimir a senha, é para muitos uma tarefa de todo o tamanho. Mais fácil sachar um campo de batatas ou deitar abaixo um pires de moelas no Ramadinha.

- Siga a linha laranja! Uma terminologia de metropolitano que depois de passar por um corredor sem grandes paisagens, apesar da bonitona de mini-saia e salto alto que seguia na frente, desembocava numa apertada sala de espera já cheia de gente à espera e alguma gente já cheia de esperar. Depois, a voz artificial da menina do ecrã das chamadas que ora chamava a senha M76 como a seguir a M12 como depois a M99 ou a R35 ou a A25, pelo que não valia pena a quem naquela anarquia procurava algum padrão harmónico. Matutar nessa confusão era aumentar o stress. Pois se então a minha senha era o 22 e o fulano do 99 chegou à sala muito depois de mim, porque é que foi chamado muito antes? É esquecer! Ali não há lugar a lógica nem à lei da gravidade pelo que  sol é que circunda a terra e os rios nascem no mar!

Depois é gente a ir às casas de banho e a deixarem as portas abertas para o pessoal ouvir o troar dos canhões e a cascata da sanita. Saem aliviadas as criaturas mas as portas abertas ficam porque o aroma deve ser a alecrim e a alfazema como em dia de procissão. Há criancinhas a berrarem a faltarem ao infantário, já com problemas de oftalmologia mas não de garganta, velhinhos amparados por filhos que faltaram ao trabalho a tossir numa pigarreira desgraçada, mas já todos livres, sem máscara, porque isto de tossir para dentro de uma fralda tem que se lhe diga. Além do mais, para mal dos pecados do arejamento, diz o regulamento das construções que os compartimentos de estebelecimentos têm que ter um mínimo de 3,00 m de pé-direito (altura do piso ao tecto) mas ali acharam por bem fazer por menos e desconfio que não chega aos 2,40 m. Para a próxima levo a fita métrica ou o medidor laser para matar aquela dúvida mesmo não a tendo.

Finalmente, depois de quase uma hora ainda dentro do horário da consulta, que já havia sido adiada duas vezes, e depois de meia hora para além da hora marcada, fui chamado pelo próprio senhor doutor que estava com ares de ter acordado tarde e tarde chegado ao trabalho, mesmo que não tenha tido necessidade de ir estacionar no Mercadona. Mas era tão simpático quanto novo e passou a consulta a escrever no teclado pelo que fiquei sem ter a certeza se estava a tomar notas do que se ía falando ou se a entreter-se no Whatsapp  ou no Tinder.

Como suspeitava, e sempre que espero carradas de tempo nestes sítios, em 5 minutos estava despachado. Na despedida disse-me que ficasse tranquilo que a coisa parecia normal, mas que por via de dúvidas seria chamado para um exame a confirmar o tamanho exacto da coisa, mas que a tal máquina sofisticada que há-de fazer a medição estava ausente, e que não sabiam se iria demorar um mês ou um ano a regressar à casa. Por isso ou seria ali no dia de Santo Não Se Sabe Quando ou então no Porto, dali a uns meses ou mais uns picos. Quantos, também não sabia dizer, mas que depois notificavam a dar a novidade.

Aviado, passo pela sala de entrada com uma fila ainda maior e a serpentear pelo que deu-me um flashback e por momentos vi-me no processo de vacina Covid no Europarque. Mas não, era tudo gente para tirar a senha pelo que a maior parte, supostamente doente, haveria de passar ali o resto da manhã ou mesmo parte da tarde. Ele há coisas e fora as greves, há sempre médicos entupidos no trânsito e a tomarem café a toda a hora.

Regresso aliviado ao Mercadona por um passeio repleto de peões a marchar nos dois sentidos, quase todos com exames do Centro Médio da Praça nas mãos, com ares de quem nao íam a Fátima a pé, mas ali ao lado ao hospital de S. Sebastião que, não sendo Nossa Senhora, foi mártir e faz parte da gente santa. 

- Vale-nos, S. Sebastião, que te enchemos de doces fogaças, para que nos livres desta fome peste e guerra que é ir à cidade em hora de ponta a uma consulta hospitalar! 

Santa Maria da Feira, uma feira de gente santa!

9 de novembro de 2021

O senhor do pilar e a Senhora do Pilar

Por estes dias foi divulgado um estudo na "Menopause", a revista da The North American Menopause Society (NAMS), que sugere que comer sozinho pode contribuir para um maior risco de doenças cardíacas, sobretudo em mulheres mais velhas. 

Com o objetivo de reduzir a incidência de DCV - doenças cardiovasculares, tem havido uma crescente consciencialização sobre hábitos alimentares saudáveis. Contudo, a importância de ter um companheiro de alimentação tem sido amplamente negligenciada em pesquisas anteriores. Ou seja, é importante que sobretudo nos mais velhos as refeições sejam em companhia.

De resto, sendo que em casa é normal o comer sozinho, sobretudo quando se vive sozinho, pois claro, é de facto estranha a sensação de se comer sozinho em restaurante, o que já experienciei. Não tanto em dias de semana, porque inerente ao ritmo ou circunstãncias do trabalho, mas sobretudo ao Domingo.

E vem esta conversa a propósito de uma situação que assisti ainda há poucos dias, num qualquer restaurante em Arouca, onde almoçava na companhia de alguém. De facto, bem no centro da sala, havia uma mesinha que só dava para uma pessoa e a mesma foi precisamente ocupada por um homem de meia idade, sozinho, sem companhia. Mas em rigor ele comeu, um bom cozido, acompanhado, não pela esposa, por um familiar ou amigo mas, imagine-se, por um pilar. De facto a mesinha ficava mesmo encostada a um pilar localizado no centro da sala.

Por isso, a propósito ou a despropósito, com aquela imagem, por momentos considerei que o homem estava a fazer uma refeição na companhia do senhor do pilar. E reparem que até há a Nossa Senhora do Pilar, a mais antiga invocação de Maria, Mãe de Jesus, a qual é venerada como padroeira da hispanidade na basílica com o seu nome, em Saragoça - Espanha. Segundo a visão da freira alemã Anna Catarina Emmerich (1774-1824), Maria, a mãe de Jesus, teria aparecido diante do apóstolo Tiago, quando este se encontrava em Saragoça, na Espanha, no século I. Nessa visão, Maria estaria envolta e sobre uma coluna de luz (daí o pilar) e lhe teria ordenado (ao apóstolo) a construção de um templo naquela localidade.

Como se vê, a imaginação dá muitas voltas e certas cenas ou imagens reportam-nos para outros factos, lendas ou memórias. Assim, aquele homem, aparentemente ali sozinho, deliciava-se com um bom cozido à portuguesa mas na companhia do senhor pilar, quiçá, interiormente, na companhia mística de Nossa Senhora que ali, como bom anjo da guarda, lhe fazia boa companhia, não podendo partilhar a refeição, é certo, mas certamente zelando para que a refeição lhe corresse bem, protegendo-o do azar de se engasgar com os ossos do chispe.  

Há coisas misteriosas. Quem sabe...

1 de setembro de 2019

Para o ano há mais


Para a larga maioria dos portugueses, mesmo que para os emigrantes na Suiça ou França, as férias já estão para trás e com Setembro a marcar o calendário, começa-se a pensar nas próximas, quiçá alguns dias no período de Natal.

As férias têm este encanto, o do suposto descanso ou pelo menos o desligamento das responsabilidades do trabalho e horários que marcam as rotinas quotidianas e simultaneamente o desalento na confirmação de que o que é bom acaba depressa.

De acordo com a medida da carteira, disponibilidade, limitações laborais e gostos de cada um, todos procuram ter as suas férias. Das mais extravagantes às mais simples e caseiras, há de tudo. Há quem prefira o campo, a montanha e o interior e outros o litoral, a cidade, o movimento e ruído, e a indispensável ida aos Algarves porque a praia é boa e faz bem ao ego nas redes sociais e porque enquanto por cá se comem sardinhas e carapaus, por lá come-se peixinho.

Há os que gostam e não dispensam duas ou três noites em cama alheia e há quem não dispense a sua cama de todas as noites. Há quem por cá goste de comer fora e há quem por estes dias vá para fora com a bagageira do carro cheia de alimentos para cozinhar.

Enfim, há para todos os gostos e acima de tudo o importante é que cada um faça como gosta e mais do que isso, como pode, sabendo-se que há que possa e não goze e há quem, não podendo, goze, nem que tenha que fazer uns empréstimos para gozar à grande, se não à francesa, pelo menos à portuguesa.

Há, também, os que precisam de férias para retemperar das férias. Sim porque, são muitos que o afirmam, as férias são cansativas p´ra caralho.

No final de toda este amálgama, há os que têm férias forçadas, ou porque estão doentes e incapacitados ou porque estão desempregados.

É a vida!... Para algum consolo mesmo que mitigado, resta sempre a  palavra batida de que...para o ano há mais!

18 de fevereiro de 2019

Crónicas do cavalheiro de calças clássicas - Límpidos e azuis

"As leis são como as mulheres, existem para ser violadas". Creio que foi um espanhol, um tal de advogado José Manuel Castelao Bragaño, durante uma reunião do Conselho Geral da Cidadania no Exterior, órgão consultivo pertencente ao Ministério do Emprego espanhol, presidido por este ex deputado do PP no Parlamento da Galiza, a proferir esta emblemática e irreflectida frase no contexto de ultrapassar um problema de quórum da tal reunião. 

Mas para o caso, não é caso este espanhol, mas o sentido do que disse. Embora na altura fosse polémica e obrigasse o autor à demissão, aparte o politicamente correcto, todos perceberam o alcance da sentença. É certo que lhe bastaria dizer que as leis existem para serem desrespeitadas ou violadas, sem meter as mulheres na molhada, para o caso ter as mesmas consequências, mas as coisas são como são. Foi dito, foi dito. E de resto, assim é. As leis por si só não são imperativas do seu cumprimento. Por isso não falta quem no dia-a-dia, nas mais diversas situações, procure escapar da malha da rede das leis e das acções das autoridades ou de quem tem o dever de as fiscalizar e fazer cumprir. 

Tudo isto para dizer que pela aldeia vizinha de Cagalhães, Vendas de Pigeirães, há dias, por um acaso de visita a uns carvalhais plantados nas imediações,  assistimos a uma descarga pura e dura de esgotos de uma pocilga escorrendo directamente para um dos mais belos rios da zona, o rio Uíça. A instalação,  dizem alguns vizinhos ecologistas, comete tripla ilegalidade porque não retém nem trata os esgotos, encaminha-os directamente para o rio e está edificada em solo de reserva agrícola, mesmo na borda de reserva ecológica.

Bem sabemos que as pocilgas são necessárias e pelo impacto que geram, desde logo os fortes odores, imperativo é que se localizem afastadas dos núcleos habitacionais, mas nos tempos que correm esperar-se-ía que não acumulassem tanta ilegalidade quanto fezes e estrume. Há mínimos.

Aparte disso, a tal pocilga, diz quem sabe, é uma espécie de infantário pois o que ali se cultiva é leitões para serem assados e servidos como tal, dourados e estaladiços por um afamado restaurante da zona.

Mas, feitas as contas, é porque tudo está dentro da legalidade. Afinal, de outras contas, gente que tem poder e manda é cliente mais ou menos habitual do famoso petisco com origens na Bairrada. É porque tudo está bem. Estamos todos descansados. A pocilga fica bem longe do restaurante e os esgotos quando passam a jusante já são límpidos e azuis como a demais água do Uíça e até alimentam bogas e trutas, se é que as há. Pelo menos ajudam a medrar amieiros, choupos e salgueiros. Afinal, há merdas que bem lavadas deixam de o ser. Ora, como poderia proferir o tal galego Bragaño, "os rios existem para serem poluídos e os peixinhos também cagam".

CCCC

29 de janeiro de 2019

Crónicas do cavalheiro de calças clássicas - O Anjos

Soube há dias, poucos, que o Anjos, o Jorge Anjos, será candidato à presidência do Figães Sport Clube, agremiação graúda nas redondezas, já com uma vetusta história e uma sala repleta de canecos e galhardetes conquistados entre o futebol, o voleibol, o bilhar e os matraquilhos. Mas não sem surpresa, pois Figães é terra de segunda vizinhança, a uma boa légua de distância de Cagalhães. Aqui ,o Anjos a bem dizer nunca por cá fez parte de nada, nem de grupo da paróquia, nem de Junta ou Assembleia de Freguesia. Apenas, na folha de serviço, época e meia como vogal do Conselho Fiscal do Cagalhães F.C.. Assim sendo, por que raio é agora candidato a presidente dum clube forasteiro e de uma terra alheia? Nem sequer de Lomba da Burra, onde nasceu? Já seria grande a admiração de que fosse sócio desse clube, com cotas em dia, quanto mais abalançar-se a uma candidatura à sua presidência.

Realmente, espalhada a notícia, cá em Cagalhães ficamos todos a fazer figura de anjinhos perante a novidade do Anjos. É certo que, já na pré-reforma de professor, que junta à da esposa, também ela docente reformada, tem tempo e dinheiro para "fazer qualquer coisa pela humanidade", como sentenciou o Zé do Portal na tasca da Micas, mas que é surpreendente, é.

Em todo o caso, o que mais há por aí são Anjos, que pouco ou nada fazem pela "humanidade" da terra onde nasceram ou moram, mas um dia, vá lá saber-se por que carga de água, abrem as asas e esvoaçam para outros poisos, para maiores desígnios, para ali fazerem parte da história da cidadania local. É certo que o Anjos, homem de igreja, sabe que Jesus foi expulso da sinagoga nazarena, tido como o simples filho do carpinteiro local e que por aí ninguém é profeta na sua terra, mas não precisava de tanto, armar-se como tal em terra alheia. Afinal de contas não faltam por Cagalhães cargos e funções onde possa demonstrar o seu voluntarismo. Junta, Assembleia, Comissões de Festas, Centro Social, Paróquia, etc, etc, um rosário de necessidades. Até o Pe. Agostinho está a precisar de um diácono para o ajudar na sua missão espiritual. Logo um anjo, vinha mesmo a calhar.

Mas ele há coisas, e o Anjos surpreendeu. Virá mesmo a ser presidente? Por mim acho que não! Deve ter sido aliciado por algum doutor importante, na expectativa de mais altos voos, porque, foda-se, o lugar de um Anjo, mesmo que só de apelido, deve ser num poiso mais alto, num poleiro ou pedestal aveludado de nuvens de algodão. Mas acho, eu e muita gente por cá, que não. Quando o peido espreitar ao cu, vai-se encolher e desistir, como desistiu da função de Juiz da Cruz. Regressará à placidez das tardes calmas e tranquilas na tasca do Petróleo, a desfiar os jornais do dia e a fazer caminhadas solitárias pelas ribeiras. Quanto ao Figães, só de longe a longe, e até duvido que tenha as cotas em dia, que abrir mão não é com ele.

Cagalhães não terá a urbanidade de Figães, há muito elevada a vila, mas é modesta, bonita, e maneirinha como um presépio napolitano, quase mesmo um céu, bem ao jeito de um anjinho. O Jorge é mesmo desses: na hora de meter pés ao caminho, encolhe-se, recolhe as asas e transforma-se em anjinho, o que nem se importa se tal significar distância de canseiras e responsabilidades.
Tudo no seu lugar. Como diria Mário Quintana, "Os anjos não dão os ombros, não; quando querem mostrar indiferença os anjos dão as asas.” 

 CCCC