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24 de novembro de 2023

José Rentes de Carvalho - O escritor português-holandês

No jornal da manhã de hoje na RTP 1 - Bom dia Portugal,  vi em rodapé uma qualquer notícia sobre José Rentes de Carvalho, mas foi tão rápida que para além do nome não cheguei a saber do que se tratava. Como não voltou a passar fiquei a pensar que falecera, o que não seria de espantar pois já conta com 93 anos.

Felizmente, descobriu-o logo depois, não foi esse o motivo - ainda pode esperar - mas sim o facto de lhe ter sido atribuído o prémio de Personalidade do Norte 2023 pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), sucedendo ao arquiteto Álvaro Siza Vieira, em 2021, e à pintora Graça Morais, em 2022. 

O prémio é essencialmente simbólico e que lhe dá direito a uma peça escultórica da autoria de Cristina Massena, arquiteta da Escola do Porto, que foi produzida pelo Done Lab da Universidade do Minho e da BOSCH, em Guimarães, com recurso a tecnologia de manufatura aditiva avançada e será entregue ao escritor pelo presidente da CCDR-N, António Cunha, durante o Fórum Competitividade Regional e Pós 2030: o Norte na União Europeia, que decorre hoje na Fábrica de Santo Thyrso, contando com a presença da Comissária Europeia da Coesão e Reformas, Elisa Ferreira.

Apesar de tudo é mais um reconhecimento tardio deste fantástico escritor e mestre da língua portuguesa, que apesar da sua extensa e rica obra e da sua generosa idade é ainda um quase ilustre desconhecido na sua pátria. Por muitos motivos, mas também por parte da sua vida fazer dele também holandês onde se radicou, na cidade de Amestardão.

José Rentes de Carvalho é filho de pais transmontanos da aldeia de Estevais, em Mogadouro (distrito de Bragança), e neto de um avô sapateiro e de um avô guarda fiscal em Vila Nova de Gaia. Nasceu em 15 de Maio de 1930 em Vila Nova de Gaia. Frequentou o Liceu Alexandre Herculano, no Porto, e prosseguiu os estudos em Viana do Castelo e Vila Real. Foi na Faculdade de Letras e na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa que traçou o seu percurso académico, estudando Línguas Românicas e Direito. 

Abandonou o o país por motivos políticos durante a ditadura do Estado Novo, vivendo primeiramente no Brasil, onde trabalhou como jornalista nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo e posteriormente em Nova Iorque e Paris. O escritor acabou por se radicar nos Países Baixos em 1956, concretamente em Amesterdão, trabalhando na embaixada brasileira. Licenciou-se na Universidade de Amesterdão. Entre 1964 e 1988 foi professor universitário de Literatura Portuguesa e desde então tem-se dedicado exclusivamente à escrita e à colaboração em jornais e revistas literárias.

A sua extensa obra, dedicada à ficção, ensaio, crónica e diário, tem sido publicada em Portugal e nos Países Baixos, sendo recebida com reconhecimento pela crítica e pelos leitores, tendo alguns títulos alcançado o estatuto de 'best-seller'. José Rentes de Carvalho divide o seu tempo entre Amesterdão, nos Países Baixos, e Estevais, em Mogadouro -- metade do ano em cada lugar.

Atualmente, os seus livros são publicados pela editora Quetzal.

Tal como acontece em relação ao seu país, que praticamente o desconhece, pessoalmente também o descobri tardiamente mas já adquiri alguns dos seus livros, sobretudo crónicas e diários. Tem excelentes romances de que conheço extractos, que ainda contarei poder vir a ler embora não seja o meu género preferido, mas a qualidade da sua escrita merecem esse exercício de leitura. Ainda ontem encomendei mais dois títulos.

Já agora, a propósito da recente vitória eleitoral de Wilders, conotado à extrema-direita na Holanda, o escritor, profundamnete conhecedor desse pais e da sua sociedade, de forma sintomática, escreveu no seu blog:

A vitória eleitoral de Wilders explicada aos pequeninos:

Um cidadão holandês que se inscreve para poder alugar uma casa num bairro social terá, no melhor dos casos, de esperar 12 (doze) anos antes que a sua vez chegue.

Aos refugiados é quase de imediato fornecido alojamento, mobilado e equipado, e uma subvenção que a eles e à família permite viver confortavelmente.

18 de agosto de 2023

Vamos lá ver...o bife à Zé de Vér

 


Andava eu a encharcar abundantemente as raízes de tudo quanto era árvore de citrinos cá no quintal, e são apenas oito, para depois lhes aplicar o Garbol, quando o telefone estremeceu no bolso. Era o Geadas, a convidar-me para irmos comer um bife ao Zé de Vér, em Escariz, a pretexto de estar ele na reforma, eu de férias e sobretudo para pormos a conversa em dia. - Não tenho nada marcado - disse-lhe - pelo que pode ser. - Mas é melhor reservar, porque estamos em férias e os emigrantes querem passar por lá como quem passa por Fátima, a marcar ponto. - Ok! Então liga! É melhor, é!

Lá liguei, e já por especial favor, por ser apenas mesa para dois, e à conta de que disse que era primo de gente que por lá é tida em conta, lá ficou reservada a mesa para as 19:30 horas. -Mas não se atrasem! Recomendou alguém do lado de lá. Não nos atrasamos, porque apanhou-me o Geadas pelas 19:00 horas pelo que ainda não era a hora marcada na capela de Ver, que vai ter festa este fim-de-semana, e já estávamos a estacionar o Mercedes. Cá fora, já alguma malta a aprontar-se, outros à espera de gente para compor grupos e encontros marcados.

Quem frequenta esta popular casa de pasto, uma designação que nos faz pensar que somos ovelhas ou gado bovino, mas que é antigo e bem tradicional, sabe que por ali não se esperam luxos, guardanapos de pano com monograma bordado, nem mesas separadas nem outras merdices de gourmet onde o bife servido no tamanho de um selo sai a 500 euros o quilo. Para malta dessa finura é melhor nem passar à aldeia, quase sempre a cheirar a vacaria ou a silagem. Assim, dali a nada  fomos arrumados na ponta da mesa onde ao lado já se aviava um casal a batalhar num bife maior que a travessa. 

Agarramo-nos a umas azeitonas galegas, pequeninas mas saborosas. Entretanto, acomodados mais alguns esfomeados, lá fizemos o pedido: - Um bife grelhado para os dois! Para beber, porque fazia calor, uma caneca das grandes de maduro branco, bem fresquinho. Dali a pouco chegou o bife, que parecia um chapéu de três bicos, grande, espalmado, com boa cor e a cheirar a grelhado. Tenro e passado no ponto.

A acompanhar, umas batatas fritas, toscas, cortadas à foice, mas saborosas. Sem verdura, apesar de por esta época ser tradição feijão de vagem, como no Inverno são os grelos. Mas importava dar conta do recado do bife e as vagens verdes e viçosas, cultivadas naquelas hortas generosas, ficaram para outros, até porque as tinha comido em casa, ainda ao almoço.

E lá fomos comendo e pondo a conversa em dia. Ao nosso lado, saiu o casal  já farto e ainda a levar para casa. Logo de seguida, toalha de papel na mesa e mais uma dupla pronta para o mesmo. Entretanto a sala foi-se enchendo de grupos, com muito mulherio, novas e velhas, ao contrário do que era habitual noutros tempos, quase exclusivo para machos. Por ali parecia um coreto com uma banda de música desafinada, mas em vez das bocas nos trombones, trompas e clarinetes, a encherem-se de garfadas de bife de arouquesa e canecadas de vinhaça.

O bife lá foi desaparecendo, como o gelo no Pólo Norte, e pouco sobrou, apenas umas pequenas aparas que se trouxeram, porque cá em casa o cão pesa 50 quilos. Ainda se pediu mais meia porção de batatas cortadas à foice e foram-se.

Passamos ao lado da sobremesa, que seria, como de costume, talhadas generosas de queijo e de marmelada, numa combinação de Romeu e Julieta, cortadas pela mesma foice que cortava as batatas e apenas se pediu café, gostoso, por sinal. 

Já no balcão do café o Geadas não quis que eu pagasse e parte que comi e na velha tradição de que quem convida paga (coisa que não se aplica aos modernos casamentos), pelo que lá pediu a conta, feita ali mesmo em cima do jornal, sem prova dos nove ou real, mas nem foi preciso porque por 30 euros comemos um bife do tamanho da fome de quatro trolhas.

Lá regressamos, nas calmas, porque o litro de vinho branco fresco e de boa qualidade, tinha ido todo. E pusemos mais alguma conversa em dia, e só nos lamentamos de já não sermos gente nova e por isso a importar haver algum regime e cuidado com a boca e exercício (e por isso hoje de manhã já corri 15 km), porque não fosse assim, marcávamos, como alguns que cá conhecemos, mesa diária no Zé de Ver.

Mas, passe o exagero, até ver, come-se bem e relativamente em conta no Zé de Ver. É claro que o bife é mesmo assim, uma lotaria, e porque há gado como as pessoas, ruins e nervosas, por vezes a coisa dá em tudo menos em tenrura, mas compreende-se. Mesmo o bacalhau, que anda caro comó caralho, por ali é quase sempre grande  e bom, seja cozido, frito ou grelhado.

O serviço, as instalações e a mobília não são, seguramente, de 5 estrelas, e há por ali mais barulho que num festival de heavy metal, mas talvez mereça uma meia estrela, e mesmo assim, porque a comida é de 6 estrelas,  não faltam por ali clientes a encherem a tasca, entre gente pobre e remediada, que também têm direito a meter o dente na xixa. Comem por ali doutores e engenheiros,  mesmo que naquela de para fotografarem o bife e dizerem nas redes sociais que já lá foram, a modos de quem vai a Paris ou a Punta Cana. Alguns desses doutores são mais pobres que os pobres que por ali comem, mas isso já são outras histórias, lendas e narrativas, como costuma dizer o Joel Cleto.

Chegados a casa, concluímos que a conversa voltou a ficar como dantes, desactualizada, e por isso um dia destes, quiçá pela Santa Eufêmia (15 de Setembro), vamos ter que voltar à casa de pasto do Zé de Vér, mas dessa vez talvez com o bife frito e de cebolada, como manda a tradição da Santa Eufêmia. Talvez a conversa volte a ficar em dia. Talvez!

9 de agosto de 2023

Escolher feijões


E sabem lá os mais novos o que isso é! Escolher feijões? Quando muito pensarão que é, nas prateleiras das grandes superfícies de distribuição, escolher entre as diversas opções de latas ou sacos de branco, preto, vermelho, fradinho, de manteiga, catarino, etc, etc. E se possível já cozido, pronto a misturar com um arroz, massa ou sopa.

Realmente, para quem nunca passou por isso, apesar de, com a internet, não faltar informação disponível na ponta dos dedos, haja vontade e interesse, é certo e sabido que uma grande parte dos mais novos não têm noção do caminho, dos processos que passam os alimentos até chegarem às nossas despensas e depois à mesa. Não custa acreditar que ainda haja gente que não sabe a proveniência de um ovo, de uma salsicha, do fiambre ou do queijo. A ignorância ainda é muita e com o afastamento das pessoas das realidades do campo, tudo é possível. Daí que ainda se veja criançada surpreendida quando visitam uma qualquer quinta com animais domésticos, como galinhas, ovelhas e burros, a que agora pomposamente se designa de pedagógica. Vejam só!

Pois bem! Se é certo que os mais novos pouco perceberão da poda, os mais velhos sabem perfeitamente o que é isso de escolher feijões. Actualmente já nem tanto, apenas umas amostras de feijão de vagem, ou rasteiro, nas nossas hortas, mas ainda há algumas dezenas de anos eram habituais as sementeiras em larga escala, ou como monocultura ou misturado com o milho. Ora, algumas vezes por mistura acidental, outras vezes propositadamente, até porque as sementes recolhiam-se de ano para ano, quase sempre na colheita e depois da debulha, que ao contrário do milho, era em grande parte manual, mesmo que ligeiramente batida na eira, certo é que o habitual era haver feijões de várias espécies e cores pelo que havia então a necessidade de os escolher, ou apartar. Entre os lisos e de várias cores, branco, vermelho, amarelo, roxo, preto, os mais comuns, até aos riscados e ainda o fradinho, era uma tarefa minuciosa, de paciência e obviamnete aborrecida, sobretudo para a criançada quando os pais os obrigavam a essa empreitada.

Mas era uma tarefa que tinha que ser feita, principalmente quando havia a necessidade de vender, e havia compradores que percorriam as aldeias a comprar feijão,  mas também porque se a cozinhar de forma misturada, devido a diferentes graus de dureza, o feijão requeria diferentes tempos na panela, mesmo que depois de demolhados.

Mas mesmo ainda antes da debulha, limpeza com crivo e a escolha, o feijão regra geral era chato de colher, porque semeado entre o milho. Requeria cuidado e sobretudo muita água.

Nos tempos modernos, já pouco feijão se produz nas nossas aldeias à moda antiga, e por conseguinte a sua exploração é feita de forma muito mecanizada e em grandes parcelas e mesmo assim Portugal importa aproximadamente 80% das leguminosas secas (a que pertence os feijões) que consome, apesar dos especialistas afirmarem que com as políticas certas poderíamos ser auto-suficientes. Desta percentagem de leguminosas secas, mais ou menos 75% refere-se a feijão.

Mesmo consumindo boas doses per capita, os nutricionistas consideram que os portugueses deveriam consumir mais, nomeadamente em detrimento de outras origens de proteína animal. Quem não gosta de uma boa feijoada, de branco ou vermelho, com tripas ou à transmontana, ou um grão de bico com um bacalhau com todos ou em rancho? Ou mesmo uma salada fria com feijão fradinho? Lentilhas e ervilhas secas, menos comum, mas também vão à mesa.

Em resumo, isto de feijões tem que se lhe diga mesmo que não se valorize um jogo ou uma aposta a render feijões. Fazem parte das nossas mais antigas memórias associadas aos tempos em que no campo se encontrava a nossa subsistência.

Já agora, o feijão, nomeadamente o feijão-comum (Phaseolus vulgaris), chegou até nós a partir da época dos Descobrimentos, provenientes da América Central e do Sul. As espécies mais comuns englobam o que chamaamos de feijão encarnado, o branco, o manteiga, o catarino, o canário, o amarelo, etc.. Mas há ainda variedades tradicionais portuguesas, com nomes bem engraçados, como o patareco, o vassouro, o raboto, o torino, o papo-de-rola, o crista-de-galo, o cuco,  o arrebenta-panelas e o bigode-de-homem. Mas há ainda mais e perde-se a conta às variedades e espécies, seja na cor, tamanho, sabor e outras características tanto culinárias como vegetativas.

Importa, pois, valorizar os feijões, porque mesmo que disponíveis em lata, já cozidos, têm que ser semeados, regados, colhidos, debulhados, limpos e processados. Só depois é que vão à panela, á mesa e à boca. À pois é, é!

8 de agosto de 2023

Acudam que há fogo!

 


Não sei o que tem de apetecível a zona dos Quatro-Caminhos para que quase todos os anos seja varrida por incêndios. É certo que aquela mancha sem casario, que descontinua os lugares da Gândara, Leira, Estôse e Azevedo é propícia a que a bandidagem use o isqueiro e dê de frosques facilmente sem que sejam detectados. Mas que há ali coisa, há, e lembro-me a propósito do que acerca de coisas do outro mundo dizia a minha bisavó quando há muito e muito tempo ali passava, quando a acompanhava a casa do Ti Alexandrino no lugar de Azevedo. Também, pelo que vi já hoje de manhã, com o mato ainda a fumegar como se acabado de assar sardinhas, dinheiro em limpeza na margem da rua foi coisa que o dono não gastou. Tudo ajuda.

Mas não se espere mudanças neste calvário que todos os anos tem hora marcada para fustigar o país. A lei e a justiça são brandas e assim vai-se andando a fazer-se de conta que os lavradores, os proprietários é que são os responsáveis e os assadores de sardinhas uns bandidos.

Com estas e outras, há por aí muito terreno de mato e pinhal que dado é caro mesmo que ainda com a obrigatoriedade de limpeza só para alguns. Mas o BUPi está em curso e apesar da salgalhada que por lá vai com prédios sobrepostos duplamente, um destes dias as autoridades já saberão o nome e o número da porta a quem ir entregar a coima.

Ainda há algumas semanas pediram-me: - Ó Américo, dê-me lá uma avaliação para o Mato da Escouça, nos Corgos, que o primo anda a insistir para eu comprar. Eu não queria, porque ali nunca porei os pés, mas como é da família os meus filhos disseram-me para comprar e que ficará para ali. Então sou capaz de comprar mas também não me quero aproveitar da vontade dele. Dê-me um preço justo!

Apeteceu-me dizer-lhe que o preço justo era de graça e ainda com o custo da escritura a suportar pelo vendedor e arrematado com a oferta de um bife no Zé de Vér. Mas lá lhe disse: - Ó Ti Tavares, ali pelos Corgos é só fraga dura, deslavada e até um tractor geme ao lá passar. Além do mais, é terra lambida pelas chamas e o pouco que lá cresce, como os leitões na Bairrada, morre ao nascer. Mas, pronto, por respeito não à Escouça mas ao seu primo, e se tiver lá dinheiro a estorvar, pague-lhe a 1 euro o metro quadrado, que é bem pago e respeitoso. Como por lá será improvável passar a Guarda, pelo menos poupa-se à limpeza. O incêndio faz-lha de graça de dois em dois anos.

Confesso que não sei se o negócio se fez, mas talvez sim, porque o Ti Tavares é bom homem e de dinheiro, já de idade avançada e tem os filhos bem instalados na vida. Com jeitinho nunca chegarão a saber onde fica a propriedade da Escouça e nem talvez o BUPi ajude porque o mais certo é nela estarem encavalitados mais dois ou três proprietários.

Sobre esta situação do baixo valor patrimonial de muitos dos nossos matos e pinhais, trouxe-me à memória um episódio a que assisti há meia dúzia de anos quando o Sr. Pinheiro decidiu fazer a partilha pelos filhos de umas tapadas lá pela serra de Vila Nova e então, já velhinho, pediu-lhes que o levassem pela última vez a ver os seus matos. O Domingos, o mais velho, meteu-o a custo no jipe todo-terreno e serra acima, serra abaixo, lá percorreu aqueles caminhos de cabras infestados de tojo e giestas como numa peregrinação à Senhora da Peneda. - Olha, Domingos, este é o Calvelo, aquele é o da Laje, aqueloutro o da Fraga. Ali, a partir daquela cancela é o da Pedra Alta. Lá em baixo, a partir daquele sobreiro é o Mato do Lajedo.

Uma a uma reconheceu o velhinho aquela dúzia de tapadas, uma ou outra com mais de um hectare, a maioria com pouco mais de mil metros. Mas até pelos nomes daqueles pedaços de terra escalvada se adivinhava a sua natureza granítica onde as poucas árvores se enraizavam com dificuldades e a água escorria sem se deter para as amamentar.

Terminada a peregrinação e levado o pai para a fresca sombra da ramada, disse-me o Domingos, com o zeloso cuidado para que o pai o não ouvisse, não o fosse desgostar: - Foda-se! Vão calhar-me alguns matos que não valem o gasóleo que gastei!

Acudam que há fogo!


[foto; Repórter Brandão]

14 de julho de 2023

A Ti Zulmira

Nascida, criada e casada no terrão viçoso que é a aldeia de Guilharães, a Ti Zulmira já marcha a caminho dos noventa, com oitenta e sete bem feitos, precisamente no dia da festa de S. Miguel, patrono da terra. Nasceu, pois, ali mesmo debaixo da latada de americano que bordejava a ribeira dos Pousados, de onde já pendiam gordos cachos de americano de bagos bem pintados. 

A sua saudosa mãe, então habituada pelo parir de uma rebanhada de filhos, levara até à última a gravidez e quando se lhe rebentaram as águas andava ela por entre o milho alto a regar numa manhã bem fresca desse Julho, sarapintada pela caruma do pendão das bandeiras. Sentindo aquele manancial a rebentar dentro de si, só teve tempo de se aninhar num largo lençol que trouxera, não fosse o diabo tecê-las, que abriu sobre e erva ainda orvalhada, e mandar recado urgente pelo Minguitos, que trouxera consigo a vigiar três ovelhas a pastar. Que fosse depressa, bem ligeiro, a correr à Leirosa a casa da Ti Bernarda. Que lhe viesse ajudar!

O rapazito, que se entretinha com o rodízio de bogalhos na borda do rego da água, percebeu a aflição da mãe e como um galgo disparou veloz pelo caminho em direcção ao cimo do lugar e dali a pouco chegava já acompanhado da velha, parteira experimentada da freguesia e arredores, levezinha, de mãos finas, parece que já talhadas por Deus para penetrar naquelas nascentes quentes. Talvez por isso gozava da alcunha de “mãozinhas” o que não a incomodava pois bem sabia da importância que tinha para aquele rebanho de mulheres parideiras da aldeia. 

Mas isto é a gente a contar, porque a Ti Zulmira, tal como a sua mãe, que Deus já a tem, nunca teve em tamanha conta o dar à luz fora da cama. De resto nem era novidade na freguesia e num tempo em que os cuidados de saúde não eram tidos nem achados por aquelas e outras  bandas, as mulheres pariam com os mesmos cuidados que os animais. Aceitavam essa condição sem qualquer esmorecimento porque lhes era instintivo. Além do mais, viam nela a mesma naturalidade com que assistiam ao nascimento dos filhotes das vacas, dos porcos e das ovelhas.

Desse nascimento térreo, agreste, quase animal, impregnado de pólem do milho e dos aromas das uvas e da erva fresca, a Zulmira foi sempre vigorosa, saudável, mesmo que atingida com as habituais maleitas que, como o sol, quando vinham era para todos e todas, como o sarampo, a varicela, o tesourelho e outras que tais, mas nada que as rezas, talhaduras e mezinhas da avô Tomásia não remediassem. Era a farmácia viva de Guilharães e no tecto de soalho da loja da sua casita escura pendiam ramos secos de tudo quanto era erva curadeira. Lá estavam a erva-de-s.roberto, o louro, a cidreira, o limoneto, a cavalinha, a gilbardeira, as urtigas, as malvas, a camomila, o hipericão, etc, etc.

A todas essas pragas a Zulmira resistiu e de cada uma saía mais forte, corada e viçosa. Na escola, então apenas para alguns rapazes, mal teve tempo de aprender a escrever o seu nome e as aulas tinha-as no campo e à volta da casa com as lições bem administradas pelo pai Belmiro e pela mãe Teresa. As disciplinas eram várias e seguiam os critérios das estações e das lides do campo. Cavar, sachar, mondar e regar , eram pai-nossos de todos os dias para além das lides da casa como limpar, arrumar, remendar, costurar, tecer, fazer as camas, tratar do gado, ordenhar vacas e ovelhas, matar galinhas e tudo quanto no galinheiro mexesse e tivesse bico. Todas as lições de cada dia conduziam a uma finalidade única e básica , a de semear para colher ou de sobreviver para viver.

Mulher assim, bem licenciada nas coisas da terra, ainda por cima de boa estampa, trigueira de pele, de uns profundos e brilhantes olhos castanhos e cingida de cabelo farto, cedo foi colhida pelo Hilário dos Azevedos e ainda não contava vinte primaveras quando uniram as mãos e as vidas defronte do padre Tobias. Seriam sombra um do outro, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença.

Dessa vida, que continuou ligada à terra, os trabalhos e canseiras duplicaram porque o Hilário não dava descanso aos instintos progenitores e a Zulmira não os recusava pelo que conforme a natureza assim o consentisse, os filhos foram nascendo daqueles entranhas a um ritmo certinho e como se não bastasse até gémeos teve, o António e o Miguel.

O tempo foi passando e somadas as festas ao S. Miguel e os foguetes que a ele estouravam eram também para a Zulmira.

Louvado seja o Nosso Senhor Jesus Cristo! Apesar dessa constante labuta para manter a casa e os filhos sadios e limpos, com canseiras e sacrifícios para que nada lhes faltasse, mesmo em tempo de vacas magras, o tempo foi passando, ela o Hilário envelhecendo e perdendo o vigor do tempo primeiro e os filhos a crescer e a abandonar a casa, para eles próprios continuarem aquele ciclo bíblico do crescei e multiplicai-vos. Como amostra da dúzia da prole, ficou a Cacilda, uma das mais velhas que, avessa a rapazes, foi ficando por casa como galinha choca e é quem agora vai cuidando da mãe Mira. Ainda, dedicada, cuidou do pai, mas este, teimoso em não largar o tabaco, acabou por partir bem cedo, pouco depois dos sessenta, mirrado dos pulmões.

Chegada  aqui, vive pois, a Ti Zulmira naquele casarão velho que herdou dos pais, ajudada por uma filha pouco mais nova que ela. Mas vive em constante sofrimento e em todas as orações e terços que reza de fio a pavio, invoca todos os santos e santinhos, a começar pelo da porta, o S. Miguel, para que Deus a leve deste mundo porque já nada mais tem nele a produzir ou, pior do que isso, já nada mais poder fazer. Bem se tenta a ir pelo menos à horta mexer nas couves, nas favas, alfaces e tomates, ou ao jardim endireitar os crisântemos, mas as pernas e todos os ossos de tão castigados por uma vida dura de casa, campo e mato, que parecem os gonzos gastos e desconchavados das portas velhas dos aidos, não ajudam ao calvário dos tempos derradeiros e até suplicam por descanso. Mas com esta idade e artroses até o descanso cansa. Toma a horas certas uma mão cheia de diferentes comprimidos, para todos os males antigos e modernos e já não tem, de há muito, a avô Tomásia para lhe valer com as velhas medicinas. Agora é viver e gemer até quando Deus quiser e tomara que não se atrase na decisão.

A Cacilda e os demais filhos bem que a andam a azucrinar com a ideia de que ela estaria bem melhor no Lar de Idosos da vila, que teria companhia de gente como ela, estaria bem cuidada e com médico e enfermeira a fazerem a ronda diariamente. Mas que não, que nem pensem em tal coisa. Seria melhor que a atirassem ao fundo da ponte do Padrão onde a esperavam os penedos lavados pela ribeira.

Os filhos bem tentam fazê-la compreender que seria melhor para ela, e naturalmente para eles porque não têm vida para fazer de anjos da guarda dia e noite, mas a Zulmira apesar de entender para si o acerto dessas recomendações, porque mesmo que com uns lapsos de memória que dizem ser de um tal alzheimer, ainda não perdeu de todo o juízo, mas vai-lhes dizendo que será por pouco tempo e que já não chegará aos noventa, como chegaram os avós, como se não acreditasse na robustez das cepas ancestrais.

Não sabemos como acabará a história da Ti Zulmira de Guilharães, e sempre que por ela perguntamos à Cacilda, responde que está a sumir-se de dia para dia.  A ser assim, um dia sumir-se-á de vez, que mais não seja pela fatalidade da lei da vida, mas sabemos que o que não faltam por aí, sobretudo pelas nossas aldeias, são  muitas zulmiras, que desde que paridas em condição felina, cresceram e viveram de forma arreigada às canseiras da casa, da família, dos animais, do campo e do mato. Nunca tiveram outra realidade para além desse horizonte e mesmo já no fim da curva do caminho da existência, rendidas à incapacidade do corpo e da tristeza da alma, não querem abandonar as paredes que durante uma vida confinaram a sua existência, nem renegar a essa condição primordial, a de que a morte deve estar em harmonia com o que foi a sua vida. Dura e penosa, mas digna até ao fim.

Nós, os mais novos, os filhos e filhas das ti zulmiras, porque já nascidos noutras palhas e crescidos em menos apertos, e mesmo com mentalidades moldadas pela formação e modos de vida modernos, não estamos com a vela bem virada ao vento que empurra o barco dos nossos pais quando velhinhos e decrépitos e vemos nessa forma de ser apenas uma teimosia e casmurrice que atrapalham as nossas vidas, mas sem sabemos lá o que verdadeiramente lhes vai na alma. Para o compreender temos ainda que percorrer e subir o caminho que falta até ao miradouro de onde é possível alcançar esse pleno vislumbre. Mas, que mais não seja, por imperativos da ordem natural das coisas, será fatalmente sempre tarde para acertar as agulhas. A vida não se compadece com preciosismos ou desacertos de ritmos na dança.

A morte, com mais ou menos aparato, virá sempre resolver os dilemas e fechar contas, que mais não seja pela forte razão de que, como diz o ditado, o que não pode ser resolvido, resolvido está.


A. Almeida – 14 de Julho de 2023

15 de junho de 2023

Quem anda à chuva...

O tempo estava de chuva. De resto a imprensa já tinha dado conta que para  esse dia vigorava o alerta amarelo devido  a uma depressão atmosférica com nome de pessoa. Nos antigamentes, chovia com maior ou menor intensidade, ventava uma brisa suave ou vigorosa a arrancar árvores e telhas das casas, mas tudo era encarado com normalidade. Inconstâncias de um tempo marcado por quatro diferentes estações, cada uma delas com humor próprio. Mas agora, qualquer aguaceiro é motivo de alerta e um calorzito a mais é seguido de mil recomendações como se as pessoas sejam todas criancinhas e não saibam o elementar de se porem à sombra, ao fresco e a beberem.

Mas, dizia, o tempo estava de chuva e a água inundava a estrada que salpicava à passagem do trânsito. O autocarro vindo da vila encostou-se à berma e dele saíram dois passageiros. Um senhor com ares de setentas e tantos e um adolescente certamento vindo da escola.

O senhor setentas lá puxou do seu guarda-chuva e com a gabardina bem atada lá seguiu rua fora, bem protegido. Com sorte chegaria a casa, que de resto não era longe, bem enxuto.

Já o jovem, não trazia guarda-chuva e apenas puxou o capuz da sua sweatshirt e lá seguiu, a telefonar, certamente a avisar alguém da casa que chegara e que era preciso vir darem-lhe boleia, tanto mais que chovia.

Em resumo, o jovem não se livrou de uma valente molha. Não porque gostasse de se molhar e chegar a casa e ter que mudar de roupa, mas tão somente porque ele, como todos eles, adolescentes e jovens, não gostam de usar guarda-chuva. Não é estiloso, seja o clássico seja daqueles que se metem no bolso. Coisas de velhos...

Hoje em dia há coisas que não fazem o nosso estilo, e preferimos sofrer as consequências práticas disso, mesmo que represente andar à chuva. Ora há um velho e intemporal ditado que diz-nos que quem anda à chuva, molha-se! Mas há outro que também se ajusta a uma certa rebeldia dos jovens avessos a coisas que não sejam estilosas: Antes quebrar que torcer!

Tantas vezes preferimos fazer figura de urso do que sermos práticos e assertivos, como usar um guarda-chuva, imagine-se, quando chove!

12 de junho de 2023

Tascas e tabernas, branco e tinto

Apesar de ainda ser possível uns vislumbres delas, à conta de gente que resiste na idade e no ofício, talvez já não por necessidade mas por mera ocupação e distracção dos longos dias de quem vive só, e porque há sempre um ou outro cliente desocupados em que a pretexto de um copo de vinho se trocam dois dedos de conversa, as antigas tascas, tabernas ou mercearias das nossas aldeias, que na maior parte dos casos eram a mesma coisa, estão fatalmente condenadas ao desaparecimento. Devido a novos hábitos de consumo, novas culturas de socialização, concorrência de outros espaços com condições incomparáveis de modernidade, em tamanho, diversidade, luz e cor, mas também por um excesso de zelo de autoridades que se foram estabelecendo para meter sem critério no mesmo saco questões de higiene e segurança alimentar mas também colheres de pau, tachos e panelas e cozinhas onde não brilhe a chapa inox. Já na década de 1980 surgiram como cogumelos os cafés e snacks-bares, com ares de modernidade e deram uma valente machadada na árvore das patacas que até essa altura eram as tabernas e tascas.

Nalguns centros históricos de algumas das nossas cidades, mesmo que remodeladas e com serviços mínimos nos padrões ditados pelas autoridades, ou com estas a fazerem vista grossa, porque nestas coisas raramente se come pela mesma medida, ainda vão subsistindo pontos ou lugares emblemáticos procurados pelas multidões de turistas, como curiosidades ou exemplos de um certo passado castiço e bucólico. São uma espécie de amostras vivas num arquivo morto, mas mesmo essas aos poucos vão morrendo em grande parte pela pressão imobiliária que se faz sentir nas zonas históricas, porque, apesar do Governo pretender colocar um freio na actividade, não tanto por razões objectivas mas como assomo de subjectividade relacionada a políticas de habitação que não servem a gregos nem a troianos, fosse a coisa navegando ao sabor dos ventos e marés e grande parte das nossas cidades mais turísticas estariam quase na sua totalidade transformadas em alojamentos locais, como modernas minas que rendem ouro em que um quarto minúsculo e uma casa de banho trapezoidal, onde não se podem abrir os braços nem esticar as pernas, é pago a preço de uma sofisticada suite em muitos hotéis.

Nas aldeias mais remotas, onde ainda não chegaram os carrões do pessoal da ASAE, e fica longe para compras regulares no centro das vilas, ainda escapam algumas pequenas mercearias e tascas à moda antiga, mas mesmo aí são raridades porque de um modo geral por ali não há moradores, quanto mais clientes.

Cá por estas bandas, mesmo na nossa pequena freguesia, chegaram a existir em simultâneo uma meia dúzia de mercearias que também eram tascas ou tabernas, onde tanto se aviava um quilo de arroz, um pau de sabão e uns quinhentos gramas de broa, como um quarteirão de vinho a acompanhar com umas azeitonas ou uma talhada de queijo. No balcão corrido onde imperava a clássica balança de braços ou de ponteiro da António Pessoa, L.da, aviava-se a mercearia mas também os copos e os petiscos. Para casa levava-se as compras para a semana, sobretudo de coisas que os campos e as hortas não produziam, mas também, quase sempre, pequenas pielas ou grandes bebedeiras. O pagamento em dinheiro era arrastado e valia o livro dos calotes para tomar nota da contabilidade de cada cliente na esperança de que pelo final do mês, com o recebimento da quinzena de leite ou de outra receita, fosse dado algum por conta. Por sua vez, o rigor e  aprumo das contas em comunidades interiores onde abundavam a ileteracia e o analfabetismo,  dependiam sempre da honestidade dos merceeiros. E se esta fosse pouca, valia de nada a prova dos nove com que no final se confirmavam as contas do deve e haver.

Aos Domingos as tascas e tabernas enchiam-se de homens a jogarem cartas ou o dominó, e na rua defronte, as malhas, ou simplesmente a conversar enquanto o tasqueiro andava num vai-e-vem atarefado e constante a aviar quarteirões e quartilhos de branco e tinto, servidos directamente dos pipos. Em garrafa só mesmo as cervejas, as gasosas e os pirolitos.

Mesmo os consumíveis líquidos como azeite e petróleo eram comercializados a granel, assim como pedras de carboneto para os gasómetros ou outros produtos similares. As mercearias eram também, em grande medida drogarias. Nalgumas até se servia o alvaiade, o óxido de ferro e óleo de linhaça para preparar a tinta com que tudo se pintava.

Da mercearia mesmo a alimentar, pouca tinha embalagem própria e quase tudo era vendido a granel e aviado em sacos de papel grosseiro. O plástico não era novidade, porque então há muito inventado, mas era coisa ainda não corrente. Mesmo azeitonas ou chouriços saídos das oleosoas latas, eram enrolados em folhas de papel vegetal. Queijo, marmelada, biscoitos, bolachas e outras lambarices para momentos festivos, tudo era vendido ao peso que permitisse a carteira e despachado num embrulho ou saco de papel. As mercearias eram boas clientes das fábricas de papel.

Em resumo, a época dourada das mercearias, tascas e tabernas das nossas aldeias, pertence já a um passado, se não distante,  pelo menos a passos largos do esquecimento. Os mais velhos delas já só têm lembranças, mas os mais novos nem sabem o que isso é. E fotografias que os convençam, não há muitas.

Num destes dias, num Domingo à tarde, calhando em saída com amigos para beber uma cerveja ou lamber um gelado, porque a tarde estava quente, passamos por uma aldeia vizinha onde se anunciara que abrira ao lado de umas bombas de gasolina, um novo espaço do tipo padaria e pastelaria. Onde antes havia um sórdido salão de jogos com uns bilhares e onde entre tacadas se reuniam bêbados e fumadores, há agora um espaço com ar moderno, airoso e asseado, apesar dos tremoços, salgados e com sabor a velho, não convidarem a uma segunda rodada, mas percebe-se que se a coisa não se desmazelar na qualidade dos produtos e da eficácia e simpatia do serviço, será um espaço interessante para os locais e gente das redondezas socializaram, seja pela manhã com chã, café e torradas, seja à tarde com umas cervejas fresquinhas e uns tremoços. Ainda não é snack-bar mas um papel colado numas das paredes anuncia que todas as sextas-feiras ao almoço haverá “francesinha” a preço convidativo.  

Dali, demos um salto a uma aldeia próxima, mas já de Arouca, em cujo centro um pelourinho  reconstituído do antigo, mostra orgulhosa que já foi sede de concelho antes de sucumbir  às reformas administrativas do liberalismo. Ali, nas bordas do casario denso, um café moderno, semeado de clientes e ao lado um café à moda antiga, vazio. Mas como a cerveja é igual em todo o lado, desde que devidamente fresca e não em fora de prazo, nele entramos numa de contra-corrente. Um típico café, de que retirados alguns produtos modernos, poder-se-ia pensar que estávamos nos anos 1970, antes ou depois a revolução dos cravos. Um balcão simples, corrido, com tampo em fórmica desgastada pelo roçar de copos e garrafas e ladeado por uma dúzia de bancos altos, redondos para fazerem do balcão a mesa comum. De resto o espaço dentro e fora do balcão é comprido mas pouco largo e não dá para grandes ajuntamentos e nem convém porque ali em dia de feira mensal ou festa anual não importa fazer sala mas antes beber, pagar e sair. Perguntei se toda aquela procissão de bancos já estivera ocupada em simultâneo. - Ui! Tantas vezes! Vezes sem conta! 

Assim terá sido durante os quase cinquenta anos que a tasqueira, uma senhora bem composta, simpática e faladeira, com ares de octagenária, disse estar aberto o estabelecimento naquela configuração. Por conseguinte, para além da máquina de venda de tabaco e pouco mais, as coisas por ali quase nada terão mudado e nem teria valido a pena, porque o vender vinho a copo, cerveja ou esta com gasosa não tem arte nem precisa de grande coisa e conforto, bastando o balcão e um banco alto redondo desconfortável para ali não se fazer ninho. Até mesmo os pequenos cartazes com trocadilhos e ditos populares mais ou menos maliciosos expostos defronte ao balcão, são de leitura rápida.

Perguntámos se não servia petiscos. Que não! Noutros tempos sim, iscas, pataniscas e peixe frito, mas que agora não tinha condições para isso, não compensava nem valia a pena. Os novos não querem nada e indo os velhos à sua vida  a coisa encerra e estas coisas fechando portas dificilmente voltam a abrir porque já não deixam. A porta de saída dá directamente para a rua e não convém ter ali gente enfrascada a sair aos trambolhões. Noutros tempos não haveria problema porque o trânsito era de carros de bois, cavalos e outras cavalgaduras e mesmo os automóveis contavam-se pelos dedos de uma mão os que ali passavam por dia. Arouca ficava longe e por maus caminhos e quase só se lá ía anualmente para pagar as contribuições e pela Feira das Colheitas.

Continuando a manter conversa, perguntamos como é que ía o padre, que ali paroquiava a freguesia e mais duas vizinhas. Que ía indo e andando, mas os horários dos serviços e missas é que são uma trapalhada porque a modos de agradar a todos, vai alternando os horários e missas nas capelas e igrejas e às tantas o povo perde os nortes e não raras vezes dão com as portas das igrejas e capelas fechadas porque afinal o serviço decorre noutro local. 

Continuando a tirar nabos do púcaro, até porque a senhora era boa conversadeira, perguntamos qual a freguesia da melhor preferência do pároco. Achava que era uma, a sua, mas as outras achavam diferente. Ou seja, cada uma das três acha que é a enjeitada a desfavor das outras como amantes ciumentas. Neste ponto da conversa veio-me à memória aquele velhinho a quem perguntaram qual vinho preferia, a que respondeu com ares de não ter dúvidas, - O tinto!. Mas então o branco? - Também gosto! Ou seja, no fundo um pároco que tenha duas ou mais freguesias a seu cargo tem-nas, por princípio, na mesma conta do vinho. Gosta sem dúvida do tinto mas também, com toda a certeza, do branco e certamente que ainda do rosé. Afinal, vinho é vinho mesmo que vindo de pipas de diferentes tamanhos. Depois, se dizem que o tinto se propicia a acompanhar densas carnes vermelhas, fumeiro e enchidos, já o branco combina na perfeição com a leveza do bacalhau, peixes e carninhas brancas. O rosé, como nem branco ou tinto, presume-se que deve ir bem com qualquer coisa, até com uns doces e sobremesas.

Nisto de padres, paróquias e vinhos, como de resto em tudo o mais, o racismo, discriminação e preferências interesseiras e interessadas não devem ter lugar. Pelo sim e pelo não, coma-se e beba-se  de ambos. Haja vontade, sede e fome! Amém!

29 de maio de 2023

Vila Maior num portugal dos pequenitos

Há coisas assim, enganadoras no nome. Vila Maior é uma terra que nem é vila e até será menor entre as demais do concelho e de resto, na União de Freguesias para onde foi encaixada (com Canedo e Vale), é cauda da mesma, tal como Guisande com Lobão, Gião e Louredo.

Será concerteza terra de boa gente, pacífica, trabalhadora e orgulhosa da sua identidade e tradições, mas é óbvio até para os forasteiros que a sua integração numa União de Freguesias nada lhe acrescentou e até nas coisas mais básicas, como limpeza e conservação de ruas, está desmazelada. Por exemplo, pela Rua do Salgueiro e Rua do Barreiro, por onde passei, a erva nas valetas já dava para uns bons fardos de palha e o piso já teve melhores dias e aguarda por uma não sei das quantas fases das pavimentações no concelho. Nisto de uniões de freguesias é como com certos cães, em que a cabeça é que come e por vezes até tenta morder a própria cauda. Um perigo! Melhor será cortarem-lhes a cauda. E no caso, agradecem.

Vila Maior nestes dias teve a sua tradicional festa em honra do Espírito Santo mas S. Pedro não esteve pelos ajustes e concedeu uns dias cinzentos e de chuva, naturalmente a tirar brilho à romaria e ao envolvimento social. Mas as coisas são mesmo assim e se pudéssemos intervir no clima seria sempre sol na eira e chuva no nabal. Calha a todos e até num bonito mês de Maio a chuva pode cair por mais que atrapalhe certas eiras.

Na bonita igreja matriz, perfilavam-se uns 16 andores todos engalanados das mais vistosas e exôticas flores, alguns a precisar que os olhos se arregalassem para neles vislumbrar o santinho, minúsculo de tamanho mas enorme em graças, no meio daqueles jardins ambulantes. 

Fora da igreja, no palco esperava encontrar uma Banda Filarmónica a executar a abertura 1812 de Tchaikovsky, mas nada disso.  Ao som de hips-hops, misturado com o spunk-spunk dos carrocéis, exibiam-se vários grupos de adolescentes, no geral empenhados e bem mexidos mas pouco coordenados. Por curiosidade perguntei a mim mesmo se fossem convocados para plantar ou arrancar batatas num campo se apareceria alguém daqueles dezenas. Talvez não, porque a nossa juventude gosta destas coisas de palco, mas sujar as mãos e partir as unhas na terra que dá sustento, é que não. Além do mais plantar batatas também implica meter os dedos no estrume. Mas pelo menos nas escolas que lhes ensinem que as coisas que vão ao prato, como as saborosas batatas fritas, são provenientes do trabalho no campo. Mas adiante, que isto é brincadeira! A malta gosta é de festa. Trabalho, outros que o façam!

A nossa freguesia de Guisande partilha com Vila Maior o santo padroeiro, S. Mamede, mas no que à sua imagem diz respeito são tão distintos que se diria que fillho de diferentes mães. O nosso S. Mamede é discreto, formal, mesmo que com uns pequenos e mansos leões a seus pés. Já o Mamede de Vila Maior tem ares de jovem rebelde, com cabelos revoltos e a seus pés umas mansas ovelhas.  Talvez retratos de diferentes fases da vida. Por outro lado, os santos, como as pessoas, são como a gente os pinta ou talha. A mesma pessoa pode ser vista como um santa ou um diabo, dependendo dos olhos que a medem.

Na lateral norte do exterior da igreja matriz, lá estavam estampadas as contas da paróquia. Entre outros itens, as verbas pagas ao pároco no mês de Abril, que totalizavam pouco menos que 400 euros. Reparei que também teve direito a uma parcela de gratificações. Os padres hoje em dia são assim, bem gratificados e ainda temos que dar graças por se dignarem a ser gratificados. Eu não sei se é muito se é pouco o que ganha um padre, sendo que o de Vila Maior tem ainda a seu cargo duas outras grandes paróquias, como são Lobão e Sandim. Mas mais arroba menos quintal, todos reservam para si um muito bom e excelente ordenado e trabalho ao mínimo porque isto de rezar missas é cansativo. Hoje em dia aquela coisa chamada de vocação e votos de pobreza ou de simplicidade é um eufemismo desaparecido com os antigos eremitas. Já não vivem de comer amoras silvestres e gafanhos nem rompem sandálias pelos caminhos ásperos dos montes. Os tempos actuais são de uma nova era e nela o senhor dinheiro tem um peso substancial, quase cósmico, e sem ele o mundo não gira nem o sol brilha.

16 de maio de 2023

Uma feira de gente santa

Início da manhã numa Segunda-Feira fresca mas a prometer sol.  

Quando vamos a Santa Maria da Feira já parece que vamos ao Porto ou a Braga e o trânsito transborda pelas ruas como nos velhos regos quanto o Ti Manel abria o bueiro da presa das Corgas. Mas aí a água corria límpida e fresca pelos canais desimpedidos a caminho da rega dos milhos, do feijão ou das batatas ressequidas a estalar a terra. Já o trânsito de agora flui aos solavancos, porque ordenado pelas rotundas, pelos semáforos ou por alguém que se mete, ora da esquerda, ora da direita, um motard armado aos cucos que não aprendeu o significado de uma linha contínua ou um peão descontraído que atravessa a dois metros da passadeira. Um autêntico lufa-lufa e quem não quiser ter surpresas nesta batalha de máquinas quase voadoras, tem que sair mais cedo da toca para se pôr a horas aonde tem compromisso.

Desta vez, a caminho para uma consulta externa no Hospital da Feira. Não há quem o não saiba, mas o parque de estacionamento do hospital foi projectado como se fora para um pequeno centro de saúde e por isso de há anos que é pouco para as encomendas e encontrar um lugarzinho vago, mesmo que apertadinho ou nas bordas dos acessos, face a tantos carros tem que ter carradas de paciência e esperar em fila que algum saia ou andar por ali num interminável carrocel como a bolinha na roleta da sorte, como antigamente nas festas do Viso ou do Santo Ovídeo. O próprio hospital já recomenda que não se utilize o seu parque e o remédio é estacionar a pagar, uma praga moderna que veio para ficar e chular os já muito chupados contribuintes, ou bem ao largo dos parquímetros num daqueles parques privativos que são autênticas minas de fazer dinheiro sem que o dono ou explorador pague um cêntimo de impostos. Típico de portugueses espertos. 

Felizmente, construiram a cinco minutos dalia a pé o Lidl e o Mercadona e os respectivos parques têm servido como uma boa e grátis alternativa. O hospital bem que lhes podia pagar uma avença como recompensa. Mas não pagará, que o Estado, já se sabe, é mau pagador, e cheira-me que um dia destes os estabelecimentos vão ter que arranjar algum controlo de acesso aos parques porque já devem ter cheirado o refugado e percebido que muitos que ali estacionam não é para entrar e comprar batatas ou arroz mas sim para irem aos senhores doutores do hospital ali perto. Afinal, à vontade não é à vontadinha.

Na sala de acesso às consultas, e ainda não eram 8 horas, já havia fila para o check-point e os habituais remoques para quem, mais desenrascado, fazia a verificação nas máquinas laterais, estas sem pessoal da casa a orientar. Mas explicou a auxiliar que as máquinas laterais eram para quem as soubesse utilizar pelo que quem estava na fila e a elas não recorria não podia reclamar que outros o fizessem. Mas reclamavam porque português que se preze, reclama por tudo e por nada. Eu também reclamo, por vezes por nada e tantas por tudo, mas por ali não dei razão ao senhor de bigode farfalhudo nem à senhora enorme (porque agora é politicamente incorrecto classificar alguém como gordo ou gorda). Que fizessem o mesmo e enfrentassem as tecnologias! Mas qual quê? Isto de inserir o cartão de cidadão numa ranhura, esperar e carregar com o dedo na marca para imprimir a senha, é para muitos uma tarefa de todo o tamanho. Mais fácil sachar um campo de batatas ou deitar abaixo um pires de moelas no Ramadinha.

- Siga a linha laranja! Uma terminologia de metropolitano que depois de passar por um corredor sem grandes paisagens, apesar da bonitona de mini-saia e salto alto que seguia na frente, desembocava numa apertada sala de espera já cheia de gente à espera e alguma gente já cheia de esperar. Depois, a voz artificial da menina do ecrã das chamadas que ora chamava a senha M76 como a seguir a M12 como depois a M99 ou a R35 ou a A25, pelo que não valia pena a quem naquela anarquia procurava algum padrão harmónico. Matutar nessa confusão era aumentar o stress. Pois se então a minha senha era o 22 e o fulano do 99 chegou à sala muito depois de mim, porque é que foi chamado muito antes? É esquecer! Ali não há lugar a lógica nem à lei da gravidade pelo que  sol é que circunda a terra e os rios nascem no mar!

Depois é gente a ir às casas de banho e a deixarem as portas abertas para o pessoal ouvir o troar dos canhões e a cascata da sanita. Saem aliviadas as criaturas mas as portas abertas ficam porque o aroma deve ser a alecrim e a alfazema como em dia de procissão. Há criancinhas a berrarem a faltarem ao infantário, já com problemas de oftalmologia mas não de garganta, velhinhos amparados por filhos que faltaram ao trabalho a tossir numa pigarreira desgraçada, mas já todos livres, sem máscara, porque isto de tossir para dentro de uma fralda tem que se lhe diga. Além do mais, para mal dos pecados do arejamento, diz o regulamento das construções que os compartimentos de estebelecimentos têm que ter um mínimo de 3,00 m de pé-direito (altura do piso ao tecto) mas ali acharam por bem fazer por menos e desconfio que não chega aos 2,40 m. Para a próxima levo a fita métrica ou o medidor laser para matar aquela dúvida mesmo não a tendo.

Finalmente, depois de quase uma hora ainda dentro do horário da consulta, que já havia sido adiada duas vezes, e depois de meia hora para além da hora marcada, fui chamado pelo próprio senhor doutor que estava com ares de ter acordado tarde e tarde chegado ao trabalho, mesmo que não tenha tido necessidade de ir estacionar no Mercadona. Mas era tão simpático quanto novo e passou a consulta a escrever no teclado pelo que fiquei sem ter a certeza se estava a tomar notas do que se ía falando ou se a entreter-se no Whatsapp  ou no Tinder.

Como suspeitava, e sempre que espero carradas de tempo nestes sítios, em 5 minutos estava despachado. Na despedida disse-me que ficasse tranquilo que a coisa parecia normal, mas que por via de dúvidas seria chamado para um exame a confirmar o tamanho exacto da coisa, mas que a tal máquina sofisticada que há-de fazer a medição estava ausente, e que não sabiam se iria demorar um mês ou um ano a regressar à casa. Por isso ou seria ali no dia de Santo Não Se Sabe Quando ou então no Porto, dali a uns meses ou mais uns picos. Quantos, também não sabia dizer, mas que depois notificavam a dar a novidade.

Aviado, passo pela sala de entrada com uma fila ainda maior e a serpentear pelo que deu-me um flashback e por momentos vi-me no processo de vacina Covid no Europarque. Mas não, era tudo gente para tirar a senha pelo que a maior parte, supostamente doente, haveria de passar ali o resto da manhã ou mesmo parte da tarde. Ele há coisas e fora as greves, há sempre médicos entupidos no trânsito e a tomarem café a toda a hora.

Regresso aliviado ao Mercadona por um passeio repleto de peões a marchar nos dois sentidos, quase todos com exames do Centro Médio da Praça nas mãos, com ares de quem nao íam a Fátima a pé, mas ali ao lado ao hospital de S. Sebastião que, não sendo Nossa Senhora, foi mártir e faz parte da gente santa. 

- Vale-nos, S. Sebastião, que te enchemos de doces fogaças, para que nos livres desta fome peste e guerra que é ir à cidade em hora de ponta a uma consulta hospitalar! 

Santa Maria da Feira, uma feira de gente santa!

14 de março de 2022

A singeleza da Primavera


No verde pousio dos campo

Emergem estrelas cintilantes,

Florzinhas brancas na verdura;

Nesse carrocel de encanto

As aves tornam-se amantes

Numa Primavera de frescura.


Mil flores enlaçadas, singelas

Numa paleta de cores sadias

Que o artista semeou no acaso;

Manhãs frescas, doces e belas,

Na serenidade de todos os dias,

Da liberdade fora do vaso.


A Primavera chama-se liberdade,

A das coisas, da natureza

e outras mais que nos consomem.

Afinal, é uma só a verdade,

Que se cumpre plena de certeza,

Quando se une a terra ao homem.


A.Almeida

13 de março de 2022

Pleno de nada


Eu queria ser o que não sou,

Ter o que não tenho,

Amar o que não amei.

Mas sou o que disso sobrou

Sem esforço ou empenho,

Tão somente pelo que sei.


Há vazios que não se preenchem,

Oceanos de solidão salgada,

Rios que desaguam nos montes;

Tais medos, plenos, me enchem,

Num imenso lago de nada

Onde a sede nasce nas fontes.


A. Almeida

A cabidela e o destino


Entre muitas outras definições, a enciclopédia livre, conhecida como a Wikipédia, diz-nos que " O destino é geralmente concebido como uma sucessão inevitável de acontecimentos relacionada a uma possível ordem cósmica. Portanto, segundo essa concepção, o destino conduz a vida de acordo com uma ordem natural, segundo a qual nada do que existe pode escapar".

Assim, sem grandes empirismos, o destino é o desfecho das coisas e das pessoas. Por mais voltas que demos à nossa vida, todo o desfecho dela é um destino. Em resumo, o destino é uma fatalidade, uma inevitabilidade. Como um buraco negro na astronomia, não há como fugir a ele, nem que luz fôssemos, porque a sua condicionalidade é impossível.

Em todo o caso, a forma como vemos ou interpretamos o destino e as coisas que para ele concorrem, é no fundo um mistério insondável, mesmo que o seu desfecho ocorra por decisões próprias, nossas, individuais.

Assim, sendo certo certo que todos os nossos actos, concorrem necessariamente para o nosso destino, também é verdade que por vezes, porventura muitas, também decidimos o destino dos outros.

Vejamos um caso tão paradigmático quanto real: A D. Brilhantina (e já é abusar do destino dar a uma filha tal nome) decidiu prendar os filhos, noras e genros, com um fausto arroz de cabidela e vai daí, agarrou pelo pescoço do galo maior da capoeira, daqueles com espigões nas patas maiores que navalhas, e num ápice e sem qualquer estremecimento, sangrou-o para a tijela imaculada como numa oferenda bíblica. Mas, coisas do destino, a Brilhantina foi pouco brilhante de tanta rudeza no apertar do gaulês que este estremeceu como se ainda a anunciar a derradeira aurora, e nesse esbracejar alado lá se foi para o caneco, em cacos, o pequeno alguidar e com ele a vitalidade líquida ali sangrada.

Mas, o destino tem destas coisas e o que não tem remédio, remediado está, e o segundo galo na hierarquia da capoeira, que já se preparava para usufruir dos prazeres de tão vasto harém, viu-se logo destronado, agarrado pela manápula dura da Brilhantina e pouco depois o seu sangue já estava reservado para a cabidela. 

Há destinos assim, que se escrevem num instante, como num fogacho de palha seca, que tudo transforma e que não permitiu que o reinado de um galo durasse mais que um golpe de faca afiada. 

11 de março de 2022

À passagem do 11 de Março



 Lugar à dor

 

De novo a onze,

Ontem de Setembro,

Ao alvorecer do Outono,

Hoje de Março,

Ás portas da Primavera.


Não, não há nada a dizer,

Chorar, talvez…

Quero dar lugar à dor

Certo de que outros onzes

Continuarão a matar, a matar,

Só a matar…


A. Almeida


(À passagem do 11 de Março de 2004 - Atentados terroristas em Espanha)

6 de março de 2022

Destino



Chegado aqui, olho p´ra trás

E nada vejo para lá da curva do caminho. 

Nada mais que uma densa neblina

De memórias percorridas.

Para a frente, o sol já declina

Numa luz mais ténue

Que quase não aquece.

Mas há caminho a percorrer,

Versos por fazer, 

Livros por abrir,

Emoções por sentir,

Flores por cheirar,

E gente por abraçar.

Seja o que o que Deus quiser,

E o que o tempo permitir,

Para além do que já vivi;

Porque enquanto destino houver,

Haverá metas a atingir

E o destino é já ali !

1 de março de 2022

Borboleta


Olha! Uma borboleta!

Procura flor, pela certa,

onde pousar,

onde comer.


Olha! Uma borboleta!

Amarela e preta,

sempre a voar

a planar,

a viver.


Olha! A borboleta!

Lá se foi, esperta,

voando

ao namoro

de outra flor.


A flor vazia, em solidão,

Lamenta. 

Mas, pela certa,

Virá, que emoção,

A ela, 

Outra, doce e bela

Borboleta.


A. Almeida

28 de fevereiro de 2022

Maldito seja!



No turpor da noite fria

Avançam as máquinas da dor,

Do ódio e da prepotência.


O descanso merecido dos heróis,

Homens, mulheres, crianças,

É quebrado e a noite esturpada

Com vómitos de fogo e sons de medo.


O exército de gente indiferente

Marcha à ordem de um homem só,

Numa fúria que esmaga casas e gente,

Deixando um rasto de sangue e pó.


Um homem pequeno, pequenino,

Num elmo negro de cobardia

Com o poder na ponta do dedo

De mandar fazer trevas o dia.


Se os tanques fossem ceifeiras,

Os mísseis foguetes de alegria,

Quem dera que assim fosse,

Como chuva benfazeja.

Mas não! Que maldito seja! 


A. Almeida

28 de janeiro de 2022

Fonte


Ali, ao cair da tarde,

sussurra cansada a fonte

na morna sombra do sobreiro,

brotando sem alarde,

água que desce lá do monte

da Mó, ao cimo do Outeiro.

16 de janeiro de 2022

A ceifa do tempo

 


Seja maldita esta verdade assim nua,

Mas a minha aldeia já não é o que foi;

Já não lhe rasgam leiras, arado ou charrua,

Esventrando-lhe a leiva o possante boi.


Aplanaram-se-lhe os caminhos fundos,

Alargaram-se-lhe as estreitas veredas;

Foram-se as gentes para outros mundos,

Já não há palha nem dela as medas.


Remexendo na distância das histórias

O sopro do tempo chegou em vendaval,

Dispersando a poeira das memórias

E para sempre nada mais deixou igual.


O tempo, esse ceifador de rosto antigo,

Devastou, insano, searas de fecundidade,

Colheu, indiferente, pasto, joio e trigo

E vive, agora, farto para a eternidade.


A.Almeida - 16012022

15 de janeiro de 2022

Lamento


Nas portas do tempo andado

secou o musgo nas ombreiras cansadas

e os gonzos já não rangem

a anunciar caminheiros novos.


Na mansidão das sombras caducas

já não há descansos nem retemperos

de pés e ossos cansados.


Já não tem som o chilreio dos pássaros

e a ribeira corre dorida na fraga

como a fugir para um descanso inalcançável.


O peso dos anos vividos

quebraram o viço de homens novos

num aperto de mandíbulas 

de um cão fantasma

que vive na noite de breu

à espera do seu repasto.


Tudo finda num lamento de nada, 

num vazio sem fundo, 

imensurável,

final.


A.Almeida 15012022

5 de janeiro de 2022

O filho da tal


Manso como um cordeiro alvo e fofo, o Alcininho sujeitou as mãos a uma ejaculação de gel higienizante e esfregando-as como de contente, seguiu as ordens da assistente jeitosa e sentou-se na cadeirinha desconfortável. 

Preencheu a ficha de rajada e na matriz do totobola do questionário só deu X. Dali a vinte minutos era chamado juntamente como mais um grupo a dirigir-se ao balcão para o check-in no processo de vacinação. Abriu os olhos à fila mais curta, um passo largo à frente e despacharam-no rápido: - Vai ser a Moderna! - Informou a menina sem levantar os olhos. O Alcininho agradeceu e pensou para consigo: - Até podia ser a antiga. Quero é despachar!

Correu despachado para a fila em forma de serpente. O casal que até ali, desde que entrara na bicha, sempre estivera na sua frente, foi ultrapassado nesta etapa. - Mas então este artista não estava atrás de nós desde lá de fora? - Sussurrou ela, empertigada, ao marido. - Pois estava! Filho da puta! Não sabe respeitar as pessoas! É só artistas!

O Alcininho, uns metros mais à frente, distraído e alheado do mimo, olhou então para trás e apercebendo-se que o casalinho perdera o lugar de entrada, recuou e simpaticamente fez-lhes sinal para passarem à sua frente, retomando o justo lugar. - Ah! Obrigada! - Murmurou a senhora, encabacada. Encostando-se ao ouvido do marido segredou: - Afinal o fulano até foi correcto, e tu a soltar-lhe os cães! - Quero lá saber... Não fez mais que a sua obrigação! - Respondeu, encolhendo os ombros e coçando discretamente os tintins.

A fila lá seguiu, contorcendo-se lentamente pelo átrio do auditório. Dali a meia hora, como um Ferrari a fumegar, o Alcininho lá entrava na box sorrindo para a enfermeira baixinha. Esta, indiferente, cravou-lhe a pica mesmo a meio do coração onde na tropa tatuara "Amor de Mãe" (a mesma há pouco ofendida) e depois das recomendações do gelo e do ben-u-rom, matou o tempo no recobro a ver gajas no Tinder. 

Escapou de boa, o Alcininho, pois durou apenas uns segundos o passar de "filho da puta" a pessoa correcta.

A vida é mesmo assim, feita de primeiras impressões. E contra elas não há vacina que resulte.

É só artistas!