22 de janeiro de 2023

A rotina quebrada

O Francisco do Vieira enviuvou cedo. Depois de desanuviada a negra núvem da dor do luto ainda o rondaram pretenciosas algumas pretendentes, sabedoras da sua gentileza, boa estampa, casa montada e emprego estável num dos gabinetes da Câmara Municipal, mas a todas esvaziou-as com a subtileza dos comportamentos de lobo solitário. Considerou que o que precisava depois da partida da sua amada Isabelina, era cumprir na solidão uma caminhada de serenidade, física e espiritual. 

Logo depois, à primeira possibilidade, reformou-se e desde o primeiro dia que se impôs a uma rotina disciplinadora para que não se perdesse numa modorra que conduz ao limiar da loucura. Assim, levantava-se sempre às sete e meia da manhã, espreitasse o sol pela janela do quarto ou nos seus vidros batessem as gordas bátegas de chuva. A seguir, na casa de banho, eram sempre quinze minutos para o essencial o escanhoar da barba edo ordenamento da basta cabeleira já grisalha. Banhos gostava de os tomar antes de deitar. De seguida o pequeno almoço na pastelaria da esquina e minutos depois caminhava em passo acelerado pelos caminhos da redondezas, tanto quanto possível por onde não andasse mais alguém. Ao meio dia e meio era cliente diário no restaurante do Quintela. E era assim o resto do dia com coisas certas a horas marcadas como que comandado por um treinador de apito na boca e cronómetro na mão. Conversas, poucas com amigos raros e mesmo assim apenas por não parecer de todo um bicho de buraco. Mas não fora essa obrigação social dispensaria de bom grado as conversas de lana caprina sobre o estado do país, da política e dos políticos, do futebol, etc.. Deitava-se sempre às onze depois de ler algumas páginas de um dos muitos livros e em regra dormia bem até que o ciclo recomeçava no dia seguinte. Corriam os dias, as semanas e os meses e com eles os anos pareciam  cavalgavam num trote certinho.

Mas um dia o Francisco, não se sabe por que carga de razões, quebrou a rotina e foi tomar o pequeno almoço na freguesia vizinha e foi servido por tão graciosa rapariga, de olhos negros profundos, num corpo esbelto de viço e tão simpática e afável como que se o conhecesse desse sempre. Não consegue justificar-se sobre que aranha lhe mordeu quando percebeu que começou a ir ali não apenas uma mas duas ou três vezes por semana. E pouco mais à frente, já era presença diária e fazia por prolongar aqueles momentos que ali passava simulando que se entretinha a ler o jornal de fio a pavio, mas na verdade sempre com os olhos a fugirem para os da empregada que, mais doces que os pastéis que servia, os retribuia. Começou a baralhar as tarefas que tinha na rotina inabalável dos seus dias, saltando umas e adiando outras. Começou a dormir mal e a aquela rapariga, tenra e deslumbrante, era presença nos seus sonhos nocturnos e pensamentos à luz do dia.

Certo é que passados alguns meses toda a freguesia ficou pasmada quando foi noticiado que o Francisco se juntara à Teresinha da pastelaria Estrela da Manhã, e mudara lá para os lados de Castro Daire, de onde era natural a moça.

Há assim nas nossas vidaas um não sei quê de que destino, fatalidadade ou apenas acaso, que quando damos por ela, dá cabo das mais fundamentadas rotinas, distorcendo as linhas rectas e paralelas que nos guiam como carris um comboio de dezenas de carruagens e nesse vendaval somos levados num turbilhão dos sentidos e das coisas descontroladas. 

Feitas as contas, terá sido melhor assim. Seria demasiado penoso que o Francisco não fosse capaz de se desamarrar daquela disciplina monocórdica que lhe fazia os dias todos tão iguais, tão preenchidos em todos os minutos e horas do dia e da noite, que às tantas aquilo já não era vida, mas somente um existir.

Não sabemos como corre a vida para o Francisco com a fresca Teresinha, lá por Castro Daire, mas por mais revolta e imprevista que seja, será certamente vida e vivida, em que cada dia é diferente do anterior como inesperado será o seguinte. Assim sem regras, mas apenas de improviso.