Mostrar mensagens com a etiqueta Contos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Contos. Mostrar todas as mensagens

14 de julho de 2023

A Ti Zulmira

Nascida, criada e casada no terrão viçoso que é a aldeia de Guilharães, a Ti Zulmira já marcha a caminho dos noventa, com oitenta e sete bem feitos, precisamente no dia da festa de S. Miguel, patrono da terra. Nasceu, pois, ali mesmo debaixo da latada de americano que bordejava a ribeira dos Pousados, de onde já pendiam gordos cachos de americano de bagos bem pintados. 

A sua saudosa mãe, então habituada pelo parir de uma rebanhada de filhos, levara até à última a gravidez e quando se lhe rebentaram as águas andava ela por entre o milho alto a regar numa manhã bem fresca desse Julho, sarapintada pela caruma do pendão das bandeiras. Sentindo aquele manancial a rebentar dentro de si, só teve tempo de se aninhar num largo lençol que trouxera, não fosse o diabo tecê-las, que abriu sobre e erva ainda orvalhada, e mandar recado urgente pelo Minguitos, que trouxera consigo a vigiar três ovelhas a pastar. Que fosse depressa, bem ligeiro, a correr à Leirosa a casa da Ti Bernarda. Que lhe viesse ajudar!

O rapazito, que se entretinha com o rodízio de bogalhos na borda do rego da água, percebeu a aflição da mãe e como um galgo disparou veloz pelo caminho em direcção ao cimo do lugar e dali a pouco chegava já acompanhado da velha, parteira experimentada da freguesia e arredores, levezinha, de mãos finas, parece que já talhadas por Deus para penetrar naquelas nascentes quentes. Talvez por isso gozava da alcunha de “mãozinhas” o que não a incomodava pois bem sabia da importância que tinha para aquele rebanho de mulheres parideiras da aldeia. 

Mas isto é a gente a contar, porque a Ti Zulmira, tal como a sua mãe, que Deus já a tem, nunca teve em tamanha conta o dar à luz fora da cama. De resto nem era novidade na freguesia e num tempo em que os cuidados de saúde não eram tidos nem achados por aquelas e outras  bandas, as mulheres pariam com os mesmos cuidados que os animais. Aceitavam essa condição sem qualquer esmorecimento porque lhes era instintivo. Além do mais, viam nela a mesma naturalidade com que assistiam ao nascimento dos filhotes das vacas, dos porcos e das ovelhas.

Desse nascimento térreo, agreste, quase animal, impregnado de pólem do milho e dos aromas das uvas e da erva fresca, a Zulmira foi sempre vigorosa, saudável, mesmo que atingida com as habituais maleitas que, como o sol, quando vinham era para todos e todas, como o sarampo, a varicela, o tesourelho e outras que tais, mas nada que as rezas, talhaduras e mezinhas da avô Tomásia não remediassem. Era a farmácia viva de Guilharães e no tecto de soalho da loja da sua casita escura pendiam ramos secos de tudo quanto era erva curadeira. Lá estavam a erva-de-s.roberto, o louro, a cidreira, o limoneto, a cavalinha, a gilbardeira, as urtigas, as malvas, a camomila, o hipericão, etc, etc.

A todas essas pragas a Zulmira resistiu e de cada uma saía mais forte, corada e viçosa. Na escola, então apenas para alguns rapazes, mal teve tempo de aprender a escrever o seu nome e as aulas tinha-as no campo e à volta da casa com as lições bem administradas pelo pai Belmiro e pela mãe Teresa. As disciplinas eram várias e seguiam os critérios das estações e das lides do campo. Cavar, sachar, mondar e regar , eram pai-nossos de todos os dias para além das lides da casa como limpar, arrumar, remendar, costurar, tecer, fazer as camas, tratar do gado, ordenhar vacas e ovelhas, matar galinhas e tudo quanto no galinheiro mexesse e tivesse bico. Todas as lições de cada dia conduziam a uma finalidade única e básica , a de semear para colher ou de sobreviver para viver.

Mulher assim, bem licenciada nas coisas da terra, ainda por cima de boa estampa, trigueira de pele, de uns profundos e brilhantes olhos castanhos e cingida de cabelo farto, cedo foi colhida pelo Hilário dos Azevedos e ainda não contava vinte primaveras quando uniram as mãos e as vidas defronte do padre Tobias. Seriam sombra um do outro, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença.

Dessa vida, que continuou ligada à terra, os trabalhos e canseiras duplicaram porque o Hilário não dava descanso aos instintos progenitores e a Zulmira não os recusava pelo que conforme a natureza assim o consentisse, os filhos foram nascendo daqueles entranhas a um ritmo certinho e como se não bastasse até gémeos teve, o António e o Miguel.

O tempo foi passando e somadas as festas ao S. Miguel e os foguetes que a ele estouravam eram também para a Zulmira.

Louvado seja o Nosso Senhor Jesus Cristo! Apesar dessa constante labuta para manter a casa e os filhos sadios e limpos, com canseiras e sacrifícios para que nada lhes faltasse, mesmo em tempo de vacas magras, o tempo foi passando, ela o Hilário envelhecendo e perdendo o vigor do tempo primeiro e os filhos a crescer e a abandonar a casa, para eles próprios continuarem aquele ciclo bíblico do crescei e multiplicai-vos. Como amostra da dúzia da prole, ficou a Cacilda, uma das mais velhas que, avessa a rapazes, foi ficando por casa como galinha choca e é quem agora vai cuidando da mãe Mira. Ainda, dedicada, cuidou do pai, mas este, teimoso em não largar o tabaco, acabou por partir bem cedo, pouco depois dos sessenta, mirrado dos pulmões.

Chegada  aqui, vive pois, a Ti Zulmira naquele casarão velho que herdou dos pais, ajudada por uma filha pouco mais nova que ela. Mas vive em constante sofrimento e em todas as orações e terços que reza de fio a pavio, invoca todos os santos e santinhos, a começar pelo da porta, o S. Miguel, para que Deus a leve deste mundo porque já nada mais tem nele a produzir ou, pior do que isso, já nada mais poder fazer. Bem se tenta a ir pelo menos à horta mexer nas couves, nas favas, alfaces e tomates, ou ao jardim endireitar os crisântemos, mas as pernas e todos os ossos de tão castigados por uma vida dura de casa, campo e mato, que parecem os gonzos gastos e desconchavados das portas velhas dos aidos, não ajudam ao calvário dos tempos derradeiros e até suplicam por descanso. Mas com esta idade e artroses até o descanso cansa. Toma a horas certas uma mão cheia de diferentes comprimidos, para todos os males antigos e modernos e já não tem, de há muito, a avô Tomásia para lhe valer com as velhas medicinas. Agora é viver e gemer até quando Deus quiser e tomara que não se atrase na decisão.

A Cacilda e os demais filhos bem que a andam a azucrinar com a ideia de que ela estaria bem melhor no Lar de Idosos da vila, que teria companhia de gente como ela, estaria bem cuidada e com médico e enfermeira a fazerem a ronda diariamente. Mas que não, que nem pensem em tal coisa. Seria melhor que a atirassem ao fundo da ponte do Padrão onde a esperavam os penedos lavados pela ribeira.

Os filhos bem tentam fazê-la compreender que seria melhor para ela, e naturalmente para eles porque não têm vida para fazer de anjos da guarda dia e noite, mas a Zulmira apesar de entender para si o acerto dessas recomendações, porque mesmo que com uns lapsos de memória que dizem ser de um tal alzheimer, ainda não perdeu de todo o juízo, mas vai-lhes dizendo que será por pouco tempo e que já não chegará aos noventa, como chegaram os avós, como se não acreditasse na robustez das cepas ancestrais.

Não sabemos como acabará a história da Ti Zulmira de Guilharães, e sempre que por ela perguntamos à Cacilda, responde que está a sumir-se de dia para dia.  A ser assim, um dia sumir-se-á de vez, que mais não seja pela fatalidade da lei da vida, mas sabemos que o que não faltam por aí, sobretudo pelas nossas aldeias, são  muitas zulmiras, que desde que paridas em condição felina, cresceram e viveram de forma arreigada às canseiras da casa, da família, dos animais, do campo e do mato. Nunca tiveram outra realidade para além desse horizonte e mesmo já no fim da curva do caminho da existência, rendidas à incapacidade do corpo e da tristeza da alma, não querem abandonar as paredes que durante uma vida confinaram a sua existência, nem renegar a essa condição primordial, a de que a morte deve estar em harmonia com o que foi a sua vida. Dura e penosa, mas digna até ao fim.

Nós, os mais novos, os filhos e filhas das ti zulmiras, porque já nascidos noutras palhas e crescidos em menos apertos, e mesmo com mentalidades moldadas pela formação e modos de vida modernos, não estamos com a vela bem virada ao vento que empurra o barco dos nossos pais quando velhinhos e decrépitos e vemos nessa forma de ser apenas uma teimosia e casmurrice que atrapalham as nossas vidas, mas sem sabemos lá o que verdadeiramente lhes vai na alma. Para o compreender temos ainda que percorrer e subir o caminho que falta até ao miradouro de onde é possível alcançar esse pleno vislumbre. Mas, que mais não seja, por imperativos da ordem natural das coisas, será fatalmente sempre tarde para acertar as agulhas. A vida não se compadece com preciosismos ou desacertos de ritmos na dança.

A morte, com mais ou menos aparato, virá sempre resolver os dilemas e fechar contas, que mais não seja pela forte razão de que, como diz o ditado, o que não pode ser resolvido, resolvido está.


A. Almeida – 14 de Julho de 2023

29 de janeiro de 2019

Crónicas do cavalheiro de calças clássicas - O Anjos

Soube há dias, poucos, que o Anjos, o Jorge Anjos, será candidato à presidência do Figães Sport Clube, agremiação graúda nas redondezas, já com uma vetusta história e uma sala repleta de canecos e galhardetes conquistados entre o futebol, o voleibol, o bilhar e os matraquilhos. Mas não sem surpresa, pois Figães é terra de segunda vizinhança, a uma boa légua de distância de Cagalhães. Aqui ,o Anjos a bem dizer nunca por cá fez parte de nada, nem de grupo da paróquia, nem de Junta ou Assembleia de Freguesia. Apenas, na folha de serviço, época e meia como vogal do Conselho Fiscal do Cagalhães F.C.. Assim sendo, por que raio é agora candidato a presidente dum clube forasteiro e de uma terra alheia? Nem sequer de Lomba da Burra, onde nasceu? Já seria grande a admiração de que fosse sócio desse clube, com cotas em dia, quanto mais abalançar-se a uma candidatura à sua presidência.

Realmente, espalhada a notícia, cá em Cagalhães ficamos todos a fazer figura de anjinhos perante a novidade do Anjos. É certo que, já na pré-reforma de professor, que junta à da esposa, também ela docente reformada, tem tempo e dinheiro para "fazer qualquer coisa pela humanidade", como sentenciou o Zé do Portal na tasca da Micas, mas que é surpreendente, é.

Em todo o caso, o que mais há por aí são Anjos, que pouco ou nada fazem pela "humanidade" da terra onde nasceram ou moram, mas um dia, vá lá saber-se por que carga de água, abrem as asas e esvoaçam para outros poisos, para maiores desígnios, para ali fazerem parte da história da cidadania local. É certo que o Anjos, homem de igreja, sabe que Jesus foi expulso da sinagoga nazarena, tido como o simples filho do carpinteiro local e que por aí ninguém é profeta na sua terra, mas não precisava de tanto, armar-se como tal em terra alheia. Afinal de contas não faltam por Cagalhães cargos e funções onde possa demonstrar o seu voluntarismo. Junta, Assembleia, Comissões de Festas, Centro Social, Paróquia, etc, etc, um rosário de necessidades. Até o Pe. Agostinho está a precisar de um diácono para o ajudar na sua missão espiritual. Logo um anjo, vinha mesmo a calhar.

Mas ele há coisas, e o Anjos surpreendeu. Virá mesmo a ser presidente? Por mim acho que não! Deve ter sido aliciado por algum doutor importante, na expectativa de mais altos voos, porque, foda-se, o lugar de um Anjo, mesmo que só de apelido, deve ser num poiso mais alto, num poleiro ou pedestal aveludado de nuvens de algodão. Mas acho, eu e muita gente por cá, que não. Quando o peido espreitar ao cu, vai-se encolher e desistir, como desistiu da função de Juiz da Cruz. Regressará à placidez das tardes calmas e tranquilas na tasca do Petróleo, a desfiar os jornais do dia e a fazer caminhadas solitárias pelas ribeiras. Quanto ao Figães, só de longe a longe, e até duvido que tenha as cotas em dia, que abrir mão não é com ele.

Cagalhães não terá a urbanidade de Figães, há muito elevada a vila, mas é modesta, bonita, e maneirinha como um presépio napolitano, quase mesmo um céu, bem ao jeito de um anjinho. O Jorge é mesmo desses: na hora de meter pés ao caminho, encolhe-se, recolhe as asas e transforma-se em anjinho, o que nem se importa se tal significar distância de canseiras e responsabilidades.
Tudo no seu lugar. Como diria Mário Quintana, "Os anjos não dão os ombros, não; quando querem mostrar indiferença os anjos dão as asas.” 

 CCCC

22 de setembro de 2018

Perfume do céu


Quando o chorou em dia de descer à cova funda e fria, a Celeste lamentava-se por ter partido tão cedo, tão novo, o seu Simão.
Não era propriamente novo, pois já andava nos setentas, mas, como o diz o ditado que "o olho do dono é que engorda o gado",  compreende-se, salvo as devidas diferenças, que o olho azul da Celeste passados quase cinquenta anos ainda visse no seu Simão o rapazola viçoso e alegre que numa dança no terreiro da festa ao Santo Ovídeo, a conquistou para sempre. Talvez por dançar, quiçá por cantar, porventura por dançar e cantar tão bem, a ponto de, por carinho, o ter baptizado de o seu "Pisco". 

É certo que a foice da morte quando teima em ceifar tanto se lhe dá se tomba joio, centeio ou trigo. Vai tudo a eito e nessa ceifa inesperada, porque em tempo em que repousavam as searas lá por Novembro, lá se foi o "Pisco", não sem antes, num último "pio", pedir à sua Celeste, que bem sabia o quanto ele gostava dessas flores, sobretudo do seu intenso perfume, para quando lhe fosse enfeitar a sua campa, que não se esquecesse de a adornar de beladonas, porque queria sentir o seu perfume no Céu, presumindo, catolicamente, que era para lá o seu destino. E deve estar por lá, porque aparte umas pequenas malandrices, que os padres aliviam facilmente com três avé-marias e um padre-nosso, nem era mau diabo o Pisco. Era de facto alegre e de bom coração e animava qualquer terreiro por onde lhe cheirasse a festa. 

A Celeste consolou-o com a jura, prometendo-lhe que enquanto fosse viúva lhe havia de cobrir a lápide com rosados ramalhetes de beladonas logo que a partir dos últimos suspiros de Agosto elas pusessem a cabeça de fora nos vários cantos do jardim e do quintal onde o Pisco, como um cão a enterrar ossos, diligentemente foi depositando bolbos. Talvez já sonhasse que viria a precisar dessas inebriantes flores para as cheirar no Céu, quando o Pai de todos o chamasse para a sua companhia.

Verdade seja dita, a Celeste viúva continua a cumprir sagradamente essa promessa e não me espantei, por isso, quando ainda numa destas manhãs de sábado a vi a caminho do cemitério com uma frondosa cesta de beladonas acabadas de colher.
Acredito que o Pisco estará por esta altura a extasiar-se com o seu perfume e mesmo que tão forte e intenso não morrerá de asfixia ou intoxicado, pela simples razão de que morto já está.

Nesse Céu perfumado, descansa em paz, Pisco!

27 de dezembro de 2017

Ficção - Quando ser bom cansa

Aviso prévio: Contém linguagem comum e corriqueira, mas numa apreciação politicamente correcta, pode ser entendida como incorrecta.

Se havia na aldeia de Cagadães pessoa generosa, altruísta, confidente, amigo do amigo, não era o pároco Pe. Elias, ainda que com nome do santo profeta a seu favor, ou nem sequer o presunçoso presidente da Junta, o Jacinto das Dornas, mesmo que dono de casa farta, o melhor cliente do alfaiate Carlinhos das Tesouras e condutor do melhor carrão da terra. Não! Não era nenhuma destas figuras, mesmo que na presunção de que os respectivos cargos devessem ser modelos de bons exemplos ou de melhores acções, de humildade e dedicação à causa alheia dos fregueses. Mas o povo, de longa data já desconfiado e experimentado, é das pessoas com tais responsabilidades públicas e comunitárias que menos espera em matéria de bondade e bem-fazer a favor dos outros, dos próximos ou dos afastados. Ficavam assim de fora, excluídas, estas duas “importantes” figuras da terrinha.

Posto isto, quem seria, então, a alma mais caridosa dessa típica aldeia encravada entre mar e serra? Até poder-se-ia pensar na professora D. Margaridinha, aposentada, sempre generosa nas esmolas e peditórios para a igreja, ou mesmo no Carlinhos das Cavadas, filho único, solteirão, dono de uma pequena fortuna em bens ao luar, frescas ribeiras e frondosas tapadas a perder de vista lá para a serra da Parada. Mas não, mesmo com as esmolas da velha professora ou com a banda de música e pregador na festa da Senhora do Amparo, pagos como antiga promessa pelo herdeiro das Cavadas, bem arranjada estaria a freguesia que a sua melhor alma se ficasse apenas por essas vaidosas benesses. Era, pois, quase de consideração geral que a melhor prenda humana da aldeia era o Toninho da Quintão. O homem, para além de toda a sua dedicação à arte de carpinteiro, qual S. José, tinha uma família, se não sagrada, pelo menos exemplar, e a todos ajudava. Mais do que a sua quota parte das ofertas a peditórios para as causas da igreja e da freguesia, estava sempre disponível para tudo e para todos. Nas tascas era um mãos largas, pagando rodadas a toda a gente. À sua volta não havia tristeza. Quanto a convívios era sempre o primeiro na organização e no encargo das despesas. Ele fazia parte de quase todos os movimentos da paróquia e de quase todas as confrarias e comissões de festas e festinhas. Tomou parte da direcção do Clube Desportivo de Cagadães, pagando a atletas e a árbitros, não que concordasse com os favorecimentos no apito, mas porque era assim que se "dançava" nos regionais da bola. Participou, também, em juntas e assembleias de freguesia, etc, etc, num nunca mais acabar de dedicação à sua terra e sua gente. 

Era, pois, esta uma alma exemplar e como tal uma figura querida e popular. Tanto que quisesse ele voltar a ser presidente da Junta de Cagadães e mesmo sem o apoio de qualquer partido daria uma abada ao cagão do Jacinto e seus pares da concelhia. Desejasse ele voltar a fazer parte da Comissão Fabriqueira e o padre Elias o acolheria como a uma criada roliça de cores sadias.  Mas, com a idade já a avançar para a reforma e farto de comer poeira e serradura de mogno e macacaúba, o Toninho já estava a ficar cansado de ser bom e com isso a perder a paciência como um velho serrote a perder a trava. Falando com os seus botões, enquanto moldava pinázios para portas e janelas, já não eram raras as vezes em que questionava o que tinha ganho até ali com essa sua boa e samaritana disponibilidade. Não que alguma vez esperasse receber dividendos pela sua natural forma de ser e estar, mas pelo menos quanto ao reconhecimento efectivo e afectivo da sua comunidade. É certo que reconhecia que num sentido geral era uma figura popular e por muitos realmente querida, mas também concluía, agora, mais lúcido, que de muitos outros essa era uma popularidade interesseira, daquela que os espertalhaços usam e abusam em benefício próprio.

Certo é, que fruto dessas cada vez mais regulares reflexões, quase existenciais, o Toninho da Quintão aos poucos começou a desprender-se de alguns compromissos com a freguesia e mesmo nos seus tempos livres, aparecendo menos vezes à tasca do Lacrau e com menos bondade nas esperadas rodadas. A quem lhe batia à porta, pedintes, associações de recuperação de drogados e bêbados, bombeiros ou comissões de festas, já começava a saber responder com um “fica para a próxima” ou já mesmo com um “não”, mesmo que justificando-o. A princípio muito a custo, a roer-lhe os fígados, porque contra a sua natureza, mas depois já com convicção, tornaram-se frequentes as negas, levando a desconfiar todos quantos a cada pedido ou solicitação esperassem a acostumada resposta sorridente e positiva, como se bastasse um abanão à árvore para dela caírem generosos frutos..

Em pouco tempo, esta é que era a verdade, o Toninho estava uma pessoa mudada. É certo que continuava a ser dedicado ao trabalho e à família, mas fechou quase a torneira à sua bondade e participação nas coisas da terra e a favor dos outros. E já não era uma posição que se lhe oferecesse dúvidas mas antes uma plena convicção. E quando interpelado dessa sua mudança, começou até a ser um pouco rude, ou curto e grosso como costuma classificar o povo. Os palavrões começaram a tornar-se vulgares nas suas apreciações, até ali caso raro, porque pautava-se pelos valores do respeito e simpatia. Mas agora as caralhadas saíam-lhe da boca com naturalidade e, de repente, parecia estar de mal com tudo e todos. Até o Pe. Elias que até ali lhe parecia estar à altura da sua função de pastor, desculpando-lhe o "rigor" nas contas do "venha a nós", apresentava-se-lhe agora na sua consideração como um “cheio-de-nove-horas”, interesseiro, avarento e até mesmo um rufia na forma como desconsiderava os paroquianos pobres e elevava os ricos. Já quanto ao presidente da Junta, o Jacinto das Dornas, era um “merdas” um "caga-latas" vaidoso, arrogante, de sorrisinho hipócrita, colector discreto das comissões dos empreiteiros do regime como se a discrição e o "saber fazê-las" não beliscasse a camada de honestidade.

Por outro lado, perante situações que antes, no exercício de cidadania, procurava resolver ou fazer com que resolvessem, mostrava-se agora indiferente e até revoltado. Ainda há dias, passando na Travessa dos Concharinhas viu que a rede pública de água estava com uma fissura perdendo uma grande quantidade de água. Noutros tempos teria de imediato telefonado para a companhia das águas  a avisar da avaria, mas agora, passando indiferente com o carro por cima da enxurrada de água, comentava para si próprio: - Que se fodam! Cabrões de merda que ainda há tempos, porque atrasei um dia a pagar a factura da água, tiveram a puta da lata de me cobrar juros de mora. É deixá-la correr. Está por conta do dono!
Já depois desse dilúvio, porque se andava em preparação para eleições para a Junta, foi convidado pelo Jacinto das Dornas a fazer parte da lista. Recusou, tanto educadamente quanto possível, mas já depois de o despachar, comentou para si próprio: - Vai-te foder, Jacintinho! Querias era mama! Alguém que te fizesse o trabalho para andares aí feito cagão a mostrar os dentes. Já mamas que chegue, incompetente de merda. O povo que abra os olhos! À minha custa, não! Vai-te foder!

Até aí, mesmo para algumas pessoas que sabia que por inveja lhe cortavam na casaca, nas suas costas, claro, mostrava-se indiferente à ofensa, sempre simpático e disponível, quase dando a outra face, mas agora perdeu essa paciência e a recomendação da doutrina e há dias sabendo por terceiros que o Zézinho Faneca, entre uma barba e um cabelo, esteve a dizer mal de si na barbearia do Alfredinho, confrontou-o à saída da tasca do Lacrau: - Ó meu grande filho da puta! Andas para aí feito tagarela, armado em cobarde a dizer mal de mim sem que eu te tenha feito algum mal? Qual é o teu problema? Queres que te amasse os cornos? Trata da tua vida senão tenho que te partir as bentas! - O Faneca, esperando o habitual e cordial cumprimento, ficou atordoado por esta reacção e mudou de cor para um branco pálido e mal conseguiu bocejar uma mentirosa negação. Foi ligeiro para o carro, como um rafeirito assustado, com o rabinho entre as pernas. Nunca mais lhe cortou na casaca e agora nas suas caminhadas desvia-se se o vir na sua direcção.

Poderiam ser aqui apontados mais exemplos dessa mudança do Toninho da Quintão, mas as descritas demonstram por si só que por vezes um homem cansa-se de ser bom. Ora verdade seja dita, na nossa sociedade sempre houve o pecado de se pretender abusar da bondade e generosidade de quem é bom e quase apetece dizer ou concluir que para gente má a bondade é um desperdício e porventura o Toninho, mesmo que um pouco tardiamente, chegou à sábia conclusão que a bondade é só para quem a faz por merecer e não para quem a dá como adquirida.  
Poderemos então concluir que o Toninho da Quintão deixou de ser uma alma boa? Talvez não! Quando muito aprendeu a distribuir a bondade apenas a quem a merece. Ora, dirá ele, os cabrões e filhos-da-puta deste mundo e de Cagadães não merecem qualquer gesto de bondade. Merecem mesmo um valente pontapé no cú ou bem apontado aos tomates, mas, vá lá, bondosamente, pelo menos a total indiferença.

Nunca é tarde para aprender e o Toninho, carpinteiro, de tanto "serrar" na bondade desperdiçada, aprendeu às suas custas. É que ser bom e generoso para cabrões e filhos da puta, cansa. É como "chover no molhado" ou "dar pérolas a porcos". Um desperdício.