22 de setembro de 2018

Perfume do céu


Quando o chorou em dia de descer à cova funda e fria, a Celeste lamentava-se por ter partido tão cedo, tão novo, o seu Simão.
Não era propriamente novo, pois já andava nos setentas, mas, como o diz o ditado que "o olho do dono é que engorda o gado",  compreende-se, salvo as devidas diferenças, que o olho azul da Celeste passados quase cinquenta anos ainda visse no seu Simão o rapazola viçoso e alegre que numa dança no terreiro da festa ao Santo Ovídeo, a conquistou para sempre. Talvez por dançar, quiçá por cantar, porventura por dançar e cantar tão bem, a ponto de, por carinho, o ter baptizado de o seu "Pisco". 

É certo que a foice da morte quando teima em ceifar tanto se lhe dá se tomba joio, centeio ou trigo. Vai tudo a eito e nessa ceifa inesperada, porque em tempo em que repousavam as searas lá por Novembro, lá se foi o "Pisco", não sem antes, num último "pio", pedir à sua Celeste, que bem sabia o quanto ele gostava dessas flores, sobretudo do seu intenso perfume, para quando lhe fosse enfeitar a sua campa, que não se esquecesse de a adornar de beladonas, porque queria sentir o seu perfume no Céu, presumindo, catolicamente, que era para lá o seu destino. E deve estar por lá, porque aparte umas pequenas malandrices, que os padres aliviam facilmente com três avé-marias e um padre-nosso, nem era mau diabo o Pisco. Era de facto alegre e de bom coração e animava qualquer terreiro por onde lhe cheirasse a festa. 

A Celeste consolou-o com a jura, prometendo-lhe que enquanto fosse viúva lhe havia de cobrir a lápide com rosados ramalhetes de beladonas logo que a partir dos últimos suspiros de Agosto elas pusessem a cabeça de fora nos vários cantos do jardim e do quintal onde o Pisco, como um cão a enterrar ossos, diligentemente foi depositando bolbos. Talvez já sonhasse que viria a precisar dessas inebriantes flores para as cheirar no Céu, quando o Pai de todos o chamasse para a sua companhia.

Verdade seja dita, a Celeste viúva continua a cumprir sagradamente essa promessa e não me espantei, por isso, quando ainda numa destas manhãs de sábado a vi a caminho do cemitério com uma frondosa cesta de beladonas acabadas de colher.
Acredito que o Pisco estará por esta altura a extasiar-se com o seu perfume e mesmo que tão forte e intenso não morrerá de asfixia ou intoxicado, pela simples razão de que morto já está.

Nesse Céu perfumado, descansa em paz, Pisco!