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19 de novembro de 2023

Joaquim Dias de Paiva (Pisco)

 


Em Março de 1993, para o jornal "O Mês de Guisande, entrevistei o saudoso Joaquim Dias de Paiva (Pisco),  que havia sido um alfaiate de renome e então vivia no lugar da Igreja. Ficamos nessa altura a saber um pouco da sua vida e da sua profissão. Passaram 30 anos sobre essa entrevista e fosse vivo o entrevistado teria 116 anos. Naturalmente que já faleceu, já há 20 anos, precisamente em  11 de Fevereiro de 2003.

Joaquim Dias de Paiva, nasceu em 24 de Setembro de 1906, sendo baptizado no dia 27 do mesmo mês e ano, tendo como padrinho Manuel de Pinho e Maria da Luz, do lugar do Viso, esta  minha avó paterna. Casou em 26 de maio de 1926 com Luzia Rosa de Jesus, de Nogueira da Regedoura. Faleceu em 11 de Fevereiro de 2003. Foi como atrás se disse, um exímio alfaiate. Viveu no lugar da Igreja, junto à ribeira. Deixou filhos e filhas, nomeadamente, como disse na entrevisata, o Joaquim, o António, a Maria, a Celeste, a Ermelinda e o José.
Alguns apontamentos sobre a família Dias de Paiva, podem ser consultados aqui.

22 de outubro de 2023

A Sr.ª Iria e o Pe. José Oliveira

 



Decorreu na manhã deste Domingo, 22 de Outubro, o funeral da Iria Santos da Conceição. Foi uma longa vida (96 anos) que teve a graça de receber de Deus.

Pela data e horário, esperava eu que fosse mais participado pela comunidade. Talvez por ser de poucos conhecida (excepto os mais velhos) e por há longos anos viver em Lisboa.

Pessoalmente também não gosto de funerais, por razões óbvias, porque de pesar e tristeza, seja pela partida mais ou menos esperada ou inesperada de familiares ou de gente nossa, da nossa comunidade.

Assim, até por razões de trabalho e com os horários dos funerais pouco adequados a quem tem horários e compromissos de emprego, também não participo em todos mesmo que de uma forma ou outra, procure transmitir os sentimentos aos familiares, sobretudo aos mais chegados.

Apesar disso, e sem qualquer ponta de moralismo, porque sou fraco exemplo, verifico que para além dos mais velhos da nossa comunidade, e dos familiares por razões óbvias, nos funerais na nossa comunidade quase não se vê a participação de jovens ou mesmo adultos na casa dos 35/50 anos. Ora se em dias de semana há uma natural justificação, já em dias de fins de semana, sábados e domingos, a razão é menos válida.

Claro que cada um faz como quer e nestas coisas em nada somos obrigados. Liberdade acima de tudo. Mas se entendemos a participação num funeral como um gesto de solidariedade fraterna para com gente da nossa comunidade, em momentos de dor, perda e tristeza, então neste aspecto, no geral estamos a ser pouco solidários e participativos. Ainda não é caso para tanto, mas a este ritmo, não tardará que as cerimónias de exéquias sejam só participadas por familiares e um ou outro amigo mais chegado, dos falecidos ou dos familiares.

Em todo o caso, em Guisande, mesmo havendo notoriamente gente que não vai a funerais, no geral ainda são bastante participados no que denota ainda um espírito positivo de fraternidade comunitária, respeito e solidariedade pelos seus elementos.

Quanto à Sr.ª Iria, conversei com ela pessoalmente umas três ou quatro vezes, algumas por telefone e quem a conhecia sabe que tinha a tendência de nos prender e de um assunto simples falava-se largos minutos.

Das duas últimas vezes que falamos, uma por telefone e outra pessoalmente, como então eu fazia parte da Junta da União de Freguesias, confessou-me que gostaria de ver atribuída à actual Rua dos Quatro-Caminhos, da Gândara ao lugar de Azevedo, o nome do Pe. José Oliveira, por ter ele nascido ali no lugar da Gândara, bem ao lado do caminho que hoje é a tal rua.

Pela minha parte considerei a proposta e até disse que achava muito bem, já que o Pe. Oliveira foi uma figura notável da freguesia, mesmo que desconhecida para as actuais gerações. Na altura, como mero vogal sem quaisquer competências, transmiti o assunto ao presidente que, alegando dificuldades e transtornos na mudança, não mostrou interesse. Poderia, pelo menos, ter tentado e promovido a consulta aos moradores, que com legitimidade poderiam ou não concordar com a mudança e aceitar ou não os inconvenientes dela, nomeadamente pela actualização de dados de morada em diferentes instituições. Ficou, pois, por concretizar essa possibilidade e vontade proposta pela Sr. ª Iria e que, também concordando eu com ela, de algum modo seria de justiça por relembrarmos o nome, vida e obra do Pe. José Oliveira, um filho da terra, gente nossa.

Nunca é tarde, seja pelo nome da rua ou por outra iniciativa, para dar destaque a essa figura nascida no lugar da Gândara.

Mas, em abono da verdade, fica aqui partilhada essa vontade manifestada de forma interessada pela Sr. Iria. Mesmo que não tivesse sido concretizada, da sua proposta e vontade saberá disso, estou certo, o Pe. Oliveira.

Que Deus a guarde!


Entrevista de Elísio Mota - Factos e curiosidades


Em Setembro de 1982, o saudoso Elísio Mota, então presidente do Centro Cultural e Recreativo "O Despertar" de Guisande, concedeu uma entrevista ao jornal "O Mês de Guisande", traçando um resumo da história e actividades da associação. 

Falou da origem do nome "O Despertar", falou da actividade da secção de teatro e das actuações com sucesso nas freguesias de Vila Maior e Milheirós de Poiares e do subsídio recebido da Câmara Municipal da Feira (7.440,00 escudos anualmente).

Enalteceu o espírito de camaradagem que se vivia entre os elementos do grupo e a sua vontade de fazer coisas pelo desenvolvimento da freguesia, até aí estagnada no movimento associativo, cultural e recreativo e o desporto resumido ao futebol.

Falou igualmente da realização da Festa do Emigrante em 1977 com  a organização de um prova de atletismo em diferentes escalões e que reuniu 500 atletas. Falou da atleta que então estava inscrita na Federação (a Isaura Lopes). Falou dos muitos troféus, taças  e galhardetes conquistados pelos atletas de "O Despertar" em várias provas de atletismo.

Abordou o evento das Mini-Olimpíadas concelhias e a participação da associação no mesmo, que por esses tempos tinha muita importância concelhia. Posteriormente a associação viria a conquistar inúmeros troféus e pódiuns nessas provas.

Falou também dos projectos que tinha em mente para a promoção de outras disciplinas desportivas (como basquetebol, andebol e voleibol) mas que para tal ser possível faltava um rinque polidesportivo ( o que só veio a concretizar-se vários anos mais tarde e mesmo assim não coberto e que hoje está abandonado e degradado).

Bons tempos. Infelizmente, factos já um pouco ou totalmente esquecidos, que importa, digo eu, relembrar aos mais novos que, naturalmente, por razões óbvias não se lembram nem deles têm memória.

1 de agosto de 2023

Uma imagem que precisa de mil palavras


É da gíria dizer-se que uma imagem vale por mil palavras, mas nem sempre a imagem só por si é reveladora de tudo quanto possa dizer. Nem sempre tem a objectividade óbvia, a leitura clara e por isso importa que o texto, as palavras, complementem tanto o que os olhos veem como o que está para além dela.

Uma imagem pode mostrar, por exemplo, um simples caminho, com pedras gastas pelo tempo e para muitos olhares não passará disso mesmo, um trecho incaracterístico já gasto por passos e rodados de outros tempos, agora pouco percorrido, desinteressante e mais ou menos similar a muitos outros. Mas as palavras podem acrescentar que é um trecho de uma milenar calçada romana, das muitas realizadas por todo o império e que ligavam cidades, províncias e regiões, da Hispânia, Gália e Britannia a Roma, segundo técnicas de construção que permitiram que chegassem sólidas aos nossos dias, quando, obviamente, não destruídas pela voragem dos tempos modernos e pela indiferença e indistinção dos valores do património histórico e cultural.

Mas adiante, porque a imagem que ilustra este artigo nada tem a ver com romanos, suas estradas ou outras façanhas de engenharia. Mas, como um caminho, ainda que metaforicamente, a imagem com a casa e o espaço onde se ergue, conduzem a outros tempos e lugares, a pessoas e a momentos, unicos e singulares.

Para quem não conhece, esta casa ali nas traseiras da capela do Viso, foi de meu bisavô paterno, Raimundo Almeida, depois de seu filho Joaquim, meu avô, que a ampliou e que já pelo fim da sua vida a transmitiu a alguns dos seus filhos, uma parte das quais a meu pai. Por conseguinte, pertence por herança e por aquisição de algumas das partes a alguns dos irmãos, a meus pais, e ainda uma parte inferior a primos. 

Pela sua antiguidade, pelas vicissitudes e efeitos de desgaste do tempo, bem como ainda por não pertencer todo o edifício a uma só propriedade, por conseguinte com os obstáculos inerentes a um edifício que é de todos e de ninguém, certo é que se tem acentuado o seu desgaste e por isso está hoje em dia com um aspecto triste e decadente, de resto como tantas outras similares construções, espalhadas pelo nosso concelho como por outros, nem sempre, ou nunca, protegidas no seu valor arquitectónico pelos organismos e instrumentos de gestão territorial, ficando assim entregues às garras do tempo e de outras vontades urbanísticas. No fundo são, em muito, umas ilustres casas de Ramires, testemunhando a decadência de homens e seus tempos, porque o tempo e as suas mudanças não se compadecem com lirismos de nobres tempos antigos e dos seus vetustos valores. O progresso e o vendaval das suas mudanças trouxeram igualmente rupturas e decadência porque quase sempre num barco a navegar sem homens ao leme.

Em grande parte, estas casas ditas de lavrador eram os solares de gente abastada mas que vivia essencialmente do seu trabalho e da vida ligada ao campo, à floresta e aos animais. Gente que no geral não nascia já rica por desígnio maior, mas que se fazia a si própria com muito sacrifício, trabalho e esforço. Por conseguinte, são estas casas uma espécie de solares minhotos ou beirões, bem mais modestos, sem brasão no cimo do portão da entrada, porque não foram erigidas sobre dinheiro de emigrantes fazendeiros arrancado lá pelos brasis, ou de condes, viscondes ou morgados, ou de qualquer outro título de nobreza de fachada, tantas vezes cimentada à custa do suor dos demais que os serviam a preço de uma côdea e água por jeira. Ainda por um oportunismo avaro da ignorância inocente de gente mal remediada. Sempre foi assim porque "em terra de cegos quem tinha um olho era rei". 

Não faltam, pois, por aí e mesmo por aqui, histórias de gente e famílias que foram salteadas em cartórios, porque quem sabia ler e escrever redigia contratos e escrituras que eram assinadas literalmente de cruz. Surripiar à luz de contratos ardilosos várzeas e soutos a gente boa mas iletrada, era como roubar doces a bébés. Assim se consolidaram fortunas, ampliaram tapadas e largas ribeiras, ao abrigo do resgate por incumprimento tantas vezes falhado, não por falta de palavra, que era lei e honra, mas por ratoeiras e estratagemas de clérigos e doutores.

Mas adiante, porque ali por aquela casa do Ti Jaquim do Viso sempre morou gente, não tica mas remediada e sobretudo honrada, e não fosse assim, o património de terras ao luar seria imensuravelmente superior. Ainda sobrou um bom naco e feita a partilha ainda em vida, cada um dos muitos filhos pôde herdar um bom quinhão composto de leiras, campos e matos, porque dinheiro vivo esse era raro, mesmo em casa dos mais abastados lavradores. Pena que apenas alcondorados em montes íngremes e ribeiras apertadas, longe das ruas que ladeiam o casario e que o progresso urbanístico valoriza. Servem agora para pasto de chamas e alfobres de giestas e tojo. E nem o raio da auto-estrada ali passou para serem expropriadas a preço de ouro. Por ali até o diabo perderia as sandálias.

Todavia, em rigor não é principal propósito deste texto falar da casa em si, embora naturalmente me entristeça assistir à sua decrepitude num misto de naturalidade e impotência. Acima de tudo,  pela sua proximidade, porque ali à sombra da capela de Nossa Senhora da Boa Fortuna e Santo António, quero realçar a relação da casa com o nossa festa do Viso. 

Tanto a capela como a parte mais antiga da casa serão mais ou menos contemporâneas, por isso construídas ali pelo ano de 1869 onde naquele monte nascia apenas carqueja, esteva e alguns sobreiros. Por conseguinte, a casa e a gente que nela foi habitando, em diferentes tempos e gerações, assistiram a muitas festas, a momentos de devoção, de partilha e diversão. Gente que trabalhava no campo mas que naquele dia, no primeiro Domingo do estival Agosto, celebrava a vida na abundância de uma pipa de vinho aberta e do sacrifício de um porco ou galo subtraídos ao aido ou à capoeira. Ainda e principalmente a celebração da fé e a sua religiosidade na figura e invocação materna de Maria, sob o título de Nossa Senhora da Boa Fortuna. Também a Santo António porque por esses tempos o gado e os animais tinham valor de gente e o lisboeta que morreu francsicano em Pádua era o seguro a quem se recorria. Não surpreende que por ele e na exaltação das suas virtudes ali no púlpito da capela, em dias de festa, se tenham proclamado inflamados sermões por abades mestres da oratória, principalmente em tempos em que a importância de chamar um afamado pregador tinha a mesma que agora contratar um Quim Barreiros ou outro que tal.

Havia foguetes, bandas de música, como sardinhas em lata aninhadas em pequenos e coloridos coretos; tascas a aviar vinho e iscas de bacalhau. Na própria casa funcionou durante muitos anos uma mercearia e taberna que nesses dias de festa eram uma roda viva de forasteiros com o balcão repleto de copos de quarteirão inundados de vinho a empurrar azeitonas, iscas e pataniscas; havia à volta da capela tendas onde se vendia fruta e sobretudo melão que grupos de rapazes e namorados compravam a partilhavam em doces talhadas ali à sombra do velho sobreiro; havia concertinas, harmónicas, violas e bailaricos onde homens e mulheres, rapazes e raparigas ganhavam ali o direito e permissão para se enlaçarem ao ritmo de um vira ou malhão.

Chegava gente com promessas a cumprir, da nossa terra mas também das aldeias vizinhas, de Louredo, do Vale e Romariz, entre outras. Durante muitos anos, ainda criançola, habituei-me a ver ali as mesmas pessoas que depois da missa estendiam a toalha à sombra do sobreiro ou das austrálias e a cesta de verga paria coisas boas, como enchidos, doces e fruta.

É claro que com o tempo foram envelhecendo, os romeiros e a casa  avoenga, esta perdendo as suas cores, atapetando-se já o musgo nas paredes e telhado, cumes levantados pelo vento, que no Viso sopra mais alto. Também as pessoas que ali passaram as suas vidas, subindo e descendo escadas, abrindo e encerrando portas e janelas, também, uma a uma, foram partindo e no que diz respeito à festa, senão radicalmente, é pelo menos diferente, mas com coisas e ritmos que permanecem imutáveis tanto hoje como há cem anos, desde logo a fé, a devoção, o amor à terra e às suas coisas. A casa e a capela, como irmãs, já velhinas, permanecem ali, de algum modo imutáveis nos seus alicerces sob a fraga do monte, na sua essência e na sua alma mesmo que desbotadas na cor e com a cal e o saibro a cairem às lascas. 

Pode mudar tudo, porque até as pedras envelhecem, mas que não se mude nem perca o mais fundamental: a alma, a nossa identidade, o sentido de pertença e o respeito por nós próprios e pelo terrão onde se implantam as nossas mais profundas raízes. Quando estes valores forem desconsiderados e mesmo esquecidos, então, mesmo que não mortos, estaremos irremediavelmente pobres, ocos e escancarados como uma velha casa sem telhado, sem portas e janelas ou se ainda com elas, já empenadas e sem gonzos. 

Há imagens que precisam de mil palavras, mas estas serão sempre escassas e insuficientes na descrição que se queira fazer sobre as visões que apenas estão presentes no mais profundo de cada um de nós.

Esta imagem, pois, para além dela própria, tem muitas outras que mesmo que invisíveis são bem mais indeléveis porque profundas.

21 de julho de 2023

ZX Spectrum 128K + 2 - Sinclair

 


A malta de agora, os mais novos, claro, não sabem destas coisas porque desde os primeiros momentos em que abriram os olhos e as orelhas ao mundo, ainda antes de se lhes tapar a moleirinha, já viam certamente os seus pais com telemóveis e depois já pela escola começaram a familiarizar-se com os computadores, entre eles os Magalhães, oferecidos às toneladas pelo bondoso do malabarista Sócrates (sendo que não foi por aí que o país escorregou para a bancarrota). Depois pelos aniversários, páscoas e natais, as consolas, as Segas, as Play Stations, os Nitendos, etc, etc., bem como de seguida a procissão com os andores de todas as demais santas tecnologias, que quase num passe de mágica se tornaram comuns e familiares e hoje qualquer um de nós, desde uma imberbe criança a frequentar o Jardim Escola até aos mais velhinhos no Lar, tem pelo menos um computador no bolso, com apps (aplicações) para tudo e mais alguma coisa, só faltando mesmo aviar francesinhas e tirar finos. Mas com tempo...

Ora eu e outros como eu, da geração de 60, ou mesmo anteriores, os cotas, podemos dizer que já fomos a Marte e a Saturno e que regressamos, porque de facto o salto, gigantesco, foi quase cósmico, e nunca o aforismo do "ir do 8 ao 80" fez tanto sentido.

Andamos, pois, já acostumados a ter um potente computador no bolso e para além da função básica de fazer e receber chamadas telefónicas há toda uma catrefada de ferramentas tecnológicas para tudo e mais alguma coisa, que o 5G veio exponenciar, e a AI, Inteligância Artificial, a permitir ao mais burros e iletrados da escola a possibilidade de se fazerem passar por génios, seja lá em que área, tanto a que lhes ensinam a somar 2 + 2,  a plantar alfaces, como a elaborar uma tese de mestrado ou mesmo a contruír um míssel hipersónico. Desde o puro entretenimento e arte de encher chouriços até às artes, engenharias e ciências, tudo cabe ali e está ao alcance da ponta do dedo. E se não cabe, compra-se uma coisa ainda mais potente, com mais gigas, mais memória, mais velocidade nos processadores. E se um Android é coisa de pobres, vai-se num iphone xpto que é outra música e sobretudo estatuto. Aquela maçã trincada ali na parte de trás da coisa vale agora mais que noutros tempos um livre trânsito para entrar no campo de jogos do Guisande ou na discoteca César Palace com direito a um Highland Clan.

Mas retomando o fio à meada, nos idos da década de 80,  quando os telemóveis eram ficção científica antes de começarem a ser tijolos, e os computadores profissionais coisas tipo sapateiras que ocupavam uma sala e pesavam tanto como o tractor do Raimundo, eu tive um computador portátil, maneirinho. Só não terei sido o primeiro em Guisande porque o comprei ao primeiro, então como agora passados 40 anos, inapto a usar tudo o que tenha teclas. Por isso, posso dizer que o comprei quase virgem, ainda com a caixa a cheirar a novo, e com um custo para o qual dispendi três ordenados e dava para comprar uma motorizada.

Foi, pois, ali por 1986 e uns picos, com o ZX Spectrum 128K +2, também conhecido como Sinclair ZX Spectrum +2, que foi lançado em Setembro desse ano. Então foi uma versão actualizada do ZX Spectrum, um popular computador doméstico lançado pela Sinclair Research Ltd. A versão +2 trouxe algumas melhorias em relação ao modelo anterior, incluindo a capacidade de carregar jogos e programas através de um leitor de cassetes de fita embutido, além de possuir 128KB de memória RAM. Essa actualização fez então do ZX Spectrum +2 um computador ainda mais atractivo para os ainda poucos utilizadores da época.

Convém lembrar que o computador só por si não tinha ecrã pelo que era comprado à parte, sendo que podia ser ligado à televisão e para os jogos poderia ainda ser ligado um joystick. Como se perceberá, com 128K de memória não dava para absolutamente nada de acordo com os actuais padrões, eventualmente para uma imagem de baixa qualidade, mas naquela altura dava para coisas que já pareciam impossíveis. É claro que o ponto forte da sua utilização era os jogos, que podiam ser carregados a partir de uma vulgar cassete do tipo de música, mas cujo carregamento só por si demorava aí uns 5 a 10 minutos e por vezes falhava o carregamento após esse tempo de espera. Era o tempo em que a paciência era uma arte. Por sua vez os jogos nas cassetes podiam ser comprados ou então, como agora, pirateados.

Verdade se diga, então rudimentares como agora sofisticados, nunca me entusiasmaram os jogos de computador, tirando um ou outro, como o popular Chukie Egg, em que alcançar um outro nível era quase como atingir um orgasmo, mas preferia programar outras coias, incluindo músicas cujo som era apenas o monocórdico bip. Mas nesse espírito aprendi a linguagem de programação que o computador usava, o Visual Basic, chegando mesmo a tirar formação e comprando livros. Fiz assim programas de contabilidade e outros na altura inovadores.

A verdade é que não mexendo na coisa há muitos anos, e mesmo que o monitor já tenha ido prestar contas ao criador, a verdade é que ainda tenho o computador lá por casa e uma catrefada de cassetes. No fundo são memórias ainda muito vivas e palpáveis e que mais não seja servem para nos trazer à realidade dos tempos actuais e ter em conta o fosso gigantesco ocorrido em apenas três décadas. 

Nem vale a pena lembrar, mas é claro que desde lá para cá, fomos tomando parte no processo de desenvolvimento e passando por todas as fases, a contar as versões do Windows, a sentir o peso e volume dos computadores e monitores a diminuirem, depois a internet, de velocidade de cágado à rapidade e velocidez de um míssil, e com ela todo um mundo novo como a digitalização dos serviços e empresas, as redes sociais, a inteligência artificial, etc. etc, etc.

É o que é, e só quem trilhou essas duas partes do caminho, como nas realidades ou fantasias do país maravilhoso de Alice, dividido pelo espelho, é que pode sentir as diferenças e com elas espantar-se, ou não. Os mais novos, estou certo, nunca as conhecerão nem se espantarão, porque entraram e viajarão sempre com o combóio em alto andamento.

Mas fica aqui para os meus seguidores a memória e o testemunho, sobretudo para quem não acredita que foi assim no passado não muito distante.


É BOM SABER:

Ainda a propósito do computador de que falei, na época do lançamento do ZX Spectrum 128K +2 em 1986, havia vários computadores concorrentes no mercado, alguns dos quais competiam directamente com o ZX Spectrum e outros que faziam parte do cenário geral de computadores domésticos da década de 1980. Alguns dos principais concorrentes do ZX Spectrum +2 incluíam:

Commodore 64: Lançado em 1982, o Commodore 64 era um dos concorrentes mais fortes do ZX Spectrum. Ele tinha uma ampla base de utilizadores e uma grande biblioteca de jogos e programas.

Amstrad CPC: A série de computadores Amstrad CPC, lançada em 1984, também era uma concorrente directa do ZX Spectrum. O Amstrad CPC oferecia gráficos e som melhorados e foi uma escolha popular para jogos e aplicações educacionais.

Atari 8-bit: A linha de computadores Atari 8-bit, incluindo modelos como o Atari 800 e o Atari 800XL, também competia com o ZX Spectrum. Foram bastante populares nos EUA e noutros países.

MSX: O padrão MSX foi uma plataforma de computador amplamente adoptada por várias empresas de electrônicos no Japão e noutros lugares. Embora não tenha sido tão popular em algumas regiões, os computadores MSX eram concorrentes do ZX Spectrum em vários mercados.

Apple II: Embora fosse mais comum nos Estados Unidos, o Apple II também foi vendido noutros países  e competia com outros computadores domésticos da época, incluindo o ZX Spectrum.

Esses são apenas alguns exemplos dos computadores concorrentes do ZX Spectrum 128K +2 na década de 1980. O mercado de computadores domésticos já era diversificado e competitivo naquela época, com várias opções disponíveis para os consumidores. Cada um desses computadores tinha as suas próprias vantagens e desvantagens, e a escolha do computador muitas vezes dependia das preferências pessoais e do conteúdo de software disponível para cada plataforma.

De lá para cá o salto foi gigantesco mas em muitos aspectos foram padronizados os sistemas enquanto plataformas, sobretudo no hardware, ficando a diversidade por conta do software e serviços.

6 de julho de 2023

Ano Internacional da Juventude - 1985

Está na ordem do dia o evento da Jornada Mundial da Juventude que decorrerá na cidade de Lisboa já na primeira semana do mês de Agosto deste ano de 2023. Espera-se a presença do papa Francisco e a participação de mais de um milhão de jovens peregrinos provenientes de todo o mundo. Antes, uma semana, decorrerão as pré-jornadas em que largos milhares de jovens serão distribuidos pelas diferentes dioceses  e paróquias, mesmo em contexto de convivência com famílias de acolhimento, num contacto mais próximo com as realidades de cada comunidade. Cá por casa estou igualmente à espera de acolher dois desses jovens.

Nesta onda relacionada à juventude, aos seus desafios e anseios, salta-nos à memória um importante acontecimento também relacionado aos jovens de então, onde me incluia, concretamente o Ano Internacional da Juventude em 1985. De resto, dentro da sua comemoração, em 31 de Abril realizou-se em Roma - Itália, no Vaticano um Encontro Mundial de Jovens e que de certo modo veio dar lugar às jornadas mundiais da juventude, com a primeira edição a ocorrer no ano seguinte (1986), também em Roma.

O Ano Internacional da Juventude (AIJ), ou Internation Youth Year (IYY), decorreu em 1985 e teve como objetivo central abordar questões e problemas relacionados com os jovens a nível internacional. Esta iniciativa foi proclamada pela Assembleia Geral da ONU e assinada a 1 de Janeiro desse mesmo ano pelo então Secretário-Geral, o peruano Javier Pérez de Cuéllar.

Durante todo o ano de 1985, ocorreram várias actividades em todo o mundo, sob a coordenação do Secretariado da Juventude do Centro para Desenvolvimento Social e Negócios Humanitários, com sede em Viena, Áustria. Mohammad Sharif dirigia esse Secretariado e também ocupava o cargo de Secretário Executivo do Ano Internacional. O evento foi presidido por Nicu Ceauşescu, filho do ditador romeno, Nicolau Ceauşescu.

Embora não tenha organizado eventos específicos sobre este tema, o Secretariado para o Ano Internacional da Juventude contribuiu para o sucesso deste acontecimento, através da colaboração na realização de diversos encontros, tendo como lema "Participação, Desenvolvimento e Paz".

O principal evento da ONU durante o Ano Internacional da Juventude foi o Congresso Mundial da Juventude, organizado pela UNESCO, realizado em Barcelona de 8 a 15 de julho de 1985. Neste congresso, foi emitida a Declaração de Barcelona, um importante documento que resultou desse encontro.

Por cá, recordo-me de participar em vários eventos promovidos a nível vicarial e diocesano, incluindo a realização de um festival da canção de temática a propósito, onde também fiz parte do grupo de jovens cá da paróquia, tendo então a nossa canção vencido a nível vicarial, com o festival realizado na paróquia do Vale e depois com direito a participar na final a nível diocesano num encontro memorável para os largos milhares de participantes que decorrer no Palácio de Cristal no Porto, em 30 de Junho de 1985. A canção vencedora dessa grande final foi a de Arouca pelo Grupo de Jovens de Rossas.

Ainda hoje alguém partilhou um vídeo dessa jornada no Porto onde lá estamos a actuar. Pena que a imagem seja de fraca qualidade mas mesmo assim revela-se um precioso tesourinho. Nessa altura não havia nas mãos de cada jovem, como hoje, potentes telemóveis com câmaras de fotografia e vídeo. Bons tempos! 

Mas sendo que os músicos, onde me incluia, com o Higino, o Mário Silva, o Rui Santos e o Quim do Lago, estão mais discretos, já as raparigas, a São Almeida, a Laida Moreira, a Guida Cardoso e a Preciosa Gonçalves, estão bem mais expostas. Bons tempos!


Na foto acima, eu e o Mário Silva a acompanharem à viola a actuação do grupo de Gião no festival ocorrido no Salão Paroquial da freguesia do Vale.

Nas fotos abaixo, momentos da actuação no Palácio de Cristal, no Porto.




Boas memórias, desde logo porque também eu era jovem, ainda a cumprir serviço militar obrigatório, mas apesar de decorridos quase 40 anos os jovens, embora com realidades e contextos diferentes, mesmo tendo tudo e não tendo nada, continuam a ter pela frente desafios sociais, culturais, religiosos mas também existenciais. Enfim, é uma luta que não termina e que dará sempre pano para mangas para anos internacionais, jornadas da juventude e outros eventos que tais, sem que algum dia sejam atingidos todos os desafios que se colocam permanentemente e em cada instante aos jovens. Estes, como eu e muitos da minha geração, acabarão por envelhecer e em rigor, talvez pela natureza das coisas, daqui a 40 anos parecerá novamente que nada mudou.

Mas, de minha parte e relativamente ao AIJ ficam a memória e os testemunhos de um ano e acontecimentos marcantes. Creio que indelevelmente  sucederá o mesmo para os actuais jovens que daqui a semanas viverão a Jornada Mundial da Juventude 2023.


19 de março de 2023

Caminhadas na minha terra - O velho marco





O Domingo nascera fresco com um algodão branco a polvilhar o azul do céu mas percebia-se que com o avançar da manhã o astro rei acabaria por se revelar pleno e reinar no resto do dia desse final de Março.

Subiu a encosta de Trás-os-Lagos ao alto da Gandarinha por entre caminhos já mal delineados numa floresta onde reinam os eucaliptos e os poucos pinheiros, ainda juvenis que brotaram sob as cinzas dos últimos incêndios, eram apenas um testemunho pobre do que foram densos pinhais há cerca de meio século. Por esses tempos, havia limpeza e tudo se aproveitava: O tojo ou mato e os fetos para atepetarem os quinteiros e a cama do gado e os gravetos que secos se desprendiam das árvores sacudidas pelos ventos agitados do Inverno e que lançados ao lume ajudavam a aquecer os longos serões. 

Já no alto, atravessou a estrada e tomou para sul o velho caminho que dava em linha recta ao arraial de Santo Ovídeo, feliz e e inusitadamente limpo. No princípio dessa velha ligação por onde outrora passavam carros de bois, ali estava o granítico marco de limite de freguesa entre Guisande e Lobão que um velho cantoneiro, por esperteza mandada, o deslocou para o lado oposto na desculpa de desobstruir a cancela do Mato do Capitão. 

Diziam os antigos que mexer em marcos, fosse de demarcação de freguesias ou simples dentes encravados como limites de propriedades, era pecado que dava direito ao inferno. Mas o velho cantoneiro, que dizem que se chama Tucas, ou era avesso a esses ditos e superstições ou então agiu de pura boa fé sem nisso ver pecado ou roubo, apenas conveniência, mas certo é que com essa mudança, acrescentou e retirou metros quadrados da geografia de uma e outra freguesias. Coisas.

Com o caminho limpo como não se via há anos, logo surgiu o amplo arraial do Santo Ovídeo, também ele limpo e de erva reverdescida pelas últimas chuvas. Rodeou a capela e lá estava o velho campanário sem a sineta que dizem os de Lobão ter sido roubada pelos rivais de Guisande para com ela adornarem a capela do Viso, como se uma mentira repetida lendariamente muitas vezes se tornasse verdade. Mas de lendas, mesmo que mentirosas, se faz também a riqueza cultural das terras. 

Lá dentro desse amplo espaço que a fabriqueira de Lobão arrebatou na justiça à Junta de Freguesia, no fresquinho do interior da capela o Santo Ovídeo conversaria com os parceiros de altar, o S. Lázero e a Senhora da Guia, talvez discutindo que vai sendo tempo, lá para o final de Agosto, de voltarem a ter uma festa digna das romaria que noutros tempos se faziam. Pois vai...

Desceu depois pela estrada que leva ao lugar do Ribeiro e logo depois, a marcar a subida, o pequeno regato com o mesmo nome do santo que por ali reina. Percebia-se que o enorme movimento de terras ali defronte talvez tivesse ajudado a obstruir a plena passagem das suas águas e então à farta delas se formou ali uma lagoa, tão bonita e límpida quanto perigosa, porque um descuido de carro, pessoa ou animal, ali cairá direitinho e a profundidade pode consumar uma tragédia. 

Logo de seguida cortou à esquerda e meteu pelo pinhal acima e percorreu o velho mato de familiares antepassados, a confinar com o atrás referido regato que debaixo de uma velha parede tomada por vegetação, brotava farto das águas da Gãndara. Na regueira, ainda ali estava o alicerce do velho eucalipto gordo que uns anos antes fora abaixo. 

Voltou-se para sul e e percorreu o limite da linha de fronteira entre Guisande e Lobão e onde a mesma faz uma quebra mais brusca, lá estava, ainda, o velho marco com a Cruz de Cristo, ainda ensanguentada pelo rubor de alguém que a pintara. Ainda firme e erecto. Dali apontava para sul para a divisão já no limite com o lugar de Azevedo, ali mais ou menos pela represa de sede do rancho, onde os mais velhos ainda se lembram de existir outro marco. Mas esse, pela indiferença de quem terraplanou para do pinhal bravio abrir caboucos para o crescimento do lugar, revolveu indiferente como se fora um simples calhau. Se pecado foi, nunca ninguém se confessou e até mesmo quem já chegou a ter poderes, mesmo perante as evidências, negou-se a reconhecer que ali ainda era Guisande porque dava jeito que o lugar de Azevedo crescesse para cima dos calos dos vizinhos. Quem foi, já não faz parte do mundo dos vivos e importará que esteja e descanse em paz mas que cometeu esse pecado, de omissão, cometeu.

Logo depois virou à esquerda e rapidamente estava a cruzar os Quatro-Caminhos, hoje em dia mais aberto e airoso, pelo menos de dia, mas outrora um lugar temido mesmo para os destemidos e ali se erguiam altares de oferendas a deuses menores, a bruxas e feiticeiros que o breu da noite adensava de um escuro sinistro e lúgrebe.

Mais adiante já passava sob uma ramada acabada de podar, agora mais comedida, mas que noutros tempos cobria de uma sombra fresca e desejada, de um verde denso e cachos de tinto,  o velho caminho, hoje Rua da Ramada.

Não tardou, estava regressado a casa. Uma simples caminhada, mesmo que curta e ao perto, pode revelar muita coisa, memórias passadas e presentes, bastando que não baste apenas dar à sola numa correria a encurtar minutos e segundos, mas a olhar com atenção e perceber as mensagens que nos transmitem um regato, um carreiro, um muro, uma pedra, uma árvore ou muitas delas. A natureza, impoluta ou transformada, está sempre pronta a falar com quem a sabe escutar.

24 de dezembro de 2022

O Natal nos meus livros de religião da escola primária

 






Entre o meu montão de livros, tenho os de religião da escola primária, das quatro classes. Em todos eles está presente o tema de Natal, com ilustrações alusivas, que acima publico. 
Abaixo as páginas e as capas do conjunto.
Espero que gostem da partilha e que com ela se revigore o espírito natalício desses bonitos tempos de infância e da escola primária.



19 de outubro de 2022

Fonsecas de Cimo de Vila

 



A minha mãe, Eugénia, é filha de Américo José da Fonseca, de Cimo de Vila, e de Lúcia Alves, do Outeiro. 

Quanto à sua mãe, minha avó, Lúcia Alves Moreira, faleceu quando ela era ainda tenra criança. Já o seu pai, meu avô,  nasceu em Março de 1919 e faleceu em Julho de 2001, sendo um dos vários filhos de Raimundo José da Fonseca (meu bisavô), do lugar do Carvalhal, freguesia de Romariz, e de Margarida da Conceição (minha bisavó), do lugar das Quintães da freguesia de Guisande. 

Este meu bisavô materno, Raimundo José da Fonseca, nasceu em 17 de Outubro de 1884 e faleceu em 17 de Novembro de 1929, muito jovem, apenas com 45 anos.

Por sua vez, era neto paterno de Manuel José da Fonseca e de Margarida Rosa de Jesus e neto materno de Manuel Ferreira da Silva e Ana Maria d´Oliveira (todos estes meus tetra-avôs maternos)

A minha bisavó materna era filha de António Caetano de Azevedo e de Maria da Conceição, do lugar das Quintães - Guisande. Quando casaram em 9 de Maio de 1907 ele tinha 22 e ela 21 anos de idade.

O meu bisavô Fonseca trabalhava com o pai e com alguns irmãos, sendo  afamadas mestres e oficiais de pedreiro e cantaria, tendo realizado em vários locais diversas obras de cantaria e escultura da mais fina traça. Terá sido ele a realizar a fonte existente na sacristia da nossa igreja matriz bem como a capela mortuária da Casa do Moreira, existente no nosso cemitério e ainda o jazigo de meus avôs paternos, com uma imagem de Nossa Senhora esculpida em mármore sob uma espécie de capela em granito assente em quatro colunas. Similar a este modelo tem de sua autoria um trabalho no Cemitério Paroquial de Fermedo - Arouca.

Naturalmente que tenho muitas memórias dos tempos de criança ligadas a este ramo familiar materno e por conseguinte ao lugar de Cimo de Vila onde tinham casa a minha bisavó - que depois passou para a filha Laurinda - o meu avô e o irmão deste, o Joaquim, cuja casa acima está na fotografia.

Esta casa, ali à face da Rua de Cimo de Vila, está naturalmente velhinha, mas dela tenho várias e boas memórias porque por lá passei muito tempo da minha infância, já que a minha mãe, presa aos trabalhos da casa e do campo, e por essa altura já com três filhos pequenos (eu, o meu irmão mais velho, o Joaquim, e o Manuel, que me segue na idade), deixava-nos ela entregues à minha bisavô Margarida e muitas vezes às suas primas, que ali naquela sua casa trabalhavam como costureiras. Recordo-me, pois, de muitas vezes ali subir à parte de cima daquela espécie de torre e passar as horas entretido a brincar com paninhos e botões e a desfolhar revistas da Crónica Feminina ao som de um pequeno rádio.

Não raras vezes, acompanhava a Ti Ilda Fonseca, prima de minha mãe, bem como a minha bisavó, a que chamávamos mãe Guida, ao Souto D´Além, já a caminho de Cimo de Aldeia - Louredo, onde enquanto apanhavam tojo e carqueja eu brincava  a construir casinhas de pedras e musgo. Outro sítio recorrente de brincadeiras infantis, era o campo da porta e na eira ali bem junto àquele canastro do lado sul da casa. A marginar esse campo, existia um rego que pelo Verão trazia a água da abundante fonte de Cimo de Vila, onde eu montava rodízios de bugalhos e largava barquitos de papel que acompanhava como timoneiro atento já quase até à descida para as Barreiradas, quando o dito "rio" dobrava o muro da Cancela que acompanhava.

Claro está que o largo fronteiro, era palco de habituais brincadeiras e chutos na bola com vários rapazes do lugar, e toda aquela zona envolvente, com a tal casa das primas de minha mãe, a do meu avô e a da minha bisavó, e ainda o amplo campo da Cancela, onde os meus pais também tinha uma parte por herança, eram no conjunto uma espécie de presépio bucólico e do qual tenho fortes lembranças, mesmo que já gastas pelo tempo, tal como a casa.

Muitas coisas mudaram de lá para cá por parte desta cepa de Fonsecas. Faleceu a minha bisavó (já era eu adolescente), o meu avô, os meus segundos tios, a Laurinda Fonseca e o marido Alexandre, e antes deles o Joaquim Fonseca e a esposa Albertina e já alguns filhos destes como o Hilário e o Alexandrino e mais recentemente a Conceição e a Alzira (esta há poucas semanas). Desse ramo dos Fonsecas de Cimo de Vila ainda andam por cá a Ilda, a Celeste, a Idília, a Madalena e o Abel - julgo não ter esquecido mais alguém - , todos irmãos, primos de minha mãe, por isso meus segundos primos. De todos os Fonsecas de Guisande, têm ali em Cimo de Vila a sua origem.

Somos oito irmãos e nem todos ficaram com o apelido de Fonseca. Pela minha parte herdei-o logo a seguir ao nome. De resto, Américo Fonseca, como o meu avô materno e também meu padrinho.

Somos, pois, Fonsecas, com raízes conhecidas em Romariz, porventura mais além, mas os apelidos são como os pássaros, andam por aí de lado para lado, sem poiso certo mesmo para fazer o berço dos filhotes. Uma vezes, como as andorinhas, até regressam ao mesmo ninho, outras vezes, na maior parte delas, vão e não voltam.

As memórias, essas também parecem ter asas e permitem-nos voar e ver as coisas de cima, como uma velha casa, um largo, um lugar. Cerrando os olhos, avivando a chama das memórias, ainda será possível ouvir crepitar na fogueira do tempo, por ali, naquele lugar, os gracejos e algazarras da criançada, que por esse tempo em Cimo de Vila era em mais quantidade do que agora em toda a freguesia. Outros tempos, naturalmente.

Se recordar é viver, também é voar sobre as velhas memórias.

18 de outubro de 2022

As memórias da casa chanfrada - Toninho do Viso




Há casas assim, que mesmo de portas e janelas fechadas estão permanentemente, dia e noite, escancaradas às nossas memórias. Entramos nelas com pézinhos de lã, como fantasmas, damos umas voltinhas e voltamos a sair sem ter feito ranger o velho soalho ou fazer chiar os gonzos das portas.

Esta casa, a da fotografia, todos a conhecem. Fica ao fundo do monte do Viso. Chamo-lhe eu a casa chanfrada, não porque lá viva ou tenha vivido gente com umas quartas-feiras a menos; bem pelo contrário, sempre lá viveu gente ajuizada, de nome, honrada e de trabalho. 

Casa chanfrada porque tão somente tem uma das suas esquinas recortada com um chanfro, como se o mestre pedreiro ali fosse ao canto e..zás, lhe cortasse uma talhada e, por conseguinte, dessa esquina resultou uma face adicional na qual, em cima e em baixo rasgaram portas, sendo que a de cima, a do Andar, dá para uma elegante varanda, a que o nosso povo designa de sacada. Já agora, a encimar as duas portas do Andar, duas belas padieiras com florões bem talhados na pedra.


Manuel Alves da Silva

Do que me lembra, pertenceu a casa a Manuel Alves da Silva, depois a seu filho António Alves da Silva e já depois da partida da sua esposa, Maria da Conceição Ferreira Fontes, em Abril de 2020, com 94 anos, pertence ainda à herança, mas dela usufrui sobretudo a filha Micas, e é sabido que se há alguém com um passado e ainda presente de trabalho laborioso nas coisas da terra é a esposa do Manuel Tavares. De resto, pela fotografia acima, veem-se ainda ali espigas a dourar num final de Outono, mas poderia ser um montão de espigas de dentadura a sorrir, vindas das ribeiras, prontas a desfolhar ou um carrego de bandeiras de milho ou feijão a secar. Aquele fundo do monte foi sempre assim, desde que me conheço, uma eira do povo, mas sobretudo da Micas. 

António Alves da Silva, nasceu em 29 de Março de 1928. Era filho de Manuel Alves da Silva (foto acima) e de Carolina Pereira de Jesus. Era neto paterno de António Alves da Silva e de Margarida Rosa de Jesus (esta de Duas Igrejas). Era neto materno de António Rodrigues Caldeira e de Joaquina de Jesus. casou em 15 de Abril de 1950 com Maria da Conceição Ferreira de Fontes.

O pai do Antoninho, na imagem acima, nasceu em 14 de Março de 18989. Era filho de António Alves da Silva, da Barrosa, e de Margarida Rosa de Jesus. Era neto paterno de Manuel Alves da Silva e de Maria Soares. Era neto materno de António Ferreira de Passos e de Rosa Maria de Jesus (de Duas Igrejas).

De resto eram assim, noutros tempos, os largos dos lugares. No monte do Viso, atrás da capela, era uma eira comunitária do tamanho do mundo onde secavam palha, espigas e milho já malhado a assolhar dourado estendido em lençóis. 

Pois bem, só por si, esta estreita fachada orientada para sudeste, tem muita história, porque, pessoalmente, me remete para as tardes de Domingo, em que o antigo proprietário, o saudoso senhor Antoninho (António Alves da Silva), abria aquelas portas de par em par  e enchia o lugar com o som da sua aparelhagem em que punha a rodar um velho disco de uma qualquer sinfonia de Beethoven, Mozart ou Wagner. 

Era uma das suas paixões, a música clássica e os respectivos discos. Outra, era conhecido o seu gosto por café, que o levava várias vezes ao dia à Corga de Lobão, onde normalmente o tomava. Talvez se apaixonasse por esta mulata bebida quando com seus pais esteve no Brasil, daí, para alguns, ter ficado com o apelido de "Toninho da Brasileira".

Não sabia do actual destino dessa boa colecção de discos de vinil, mas informou-me a neta que ali continua intacta à guarda da família. Quanto a tocar, porventura não, ou esporadicamente, mas as orquestras ainda soam sinfonicamente na memória como que orientadas pela batuta do maestro do tempo.

Escusado será dizer que entrei várias vezes nessa saleta onde o senhor Antoninho se deliciava a ouvir a sua música intemporal. Nesse aspecto partilhava com ele o gosto e paixão pela música clássica. 

- Ó Almeida, sobe cá acima. Anda aqui ouvir uma coisa! - Desafiava-me por vezes quando ali passava depois do almoço de Domingo. E sabia, naturalmente discutir essa música, os nomes dos grandes compositores e sua obras.

A reboque desse gosto comum pela música, chegou-me a emprestar, com recomendações de mil cuidados, porque o não concedia a mais ninguém, alguns discos para eu passar na saudosa Rádio Clube de Guisande. Recordo-me particularmente do disco com o oratório Messiah de Georg Friedrich Händel, com o tão popular Hallelujah, que passei por alturas da Páscoa.

Mas para além desta particularidade relacionada à música clássica, a casa chanfrada traz-me muitas mais memórias. Desde logo, o referido senhor Antoninho durante anos teve ali uma barbearia. Não era propriamente um desenrascado Fígaro, como o da ópera de Rossini (O Barbeiro de Sevilha), que  naturalmente deveria ter na sua colecção de discos, mas era o quanto bastasse a ser o barbeiro do Viso. 

Mas se é verdade que o senhor Antoninho tinha sensibilidade para a música clássica, não posso dizer tanto da sua arte de barbeiro. Por várias vezes saía de lá, eu e as demais crianças do lugar, com golpes de tesouradas no pescoço e nas orelhas e até mesmo na véspera da minha comunhão solene deu-me uma golpada inadvertida no belo remoinho que por esse tempo tinha no cabelo junto à testa. As fotografias que guardo dessa solenidade, são testemunhas dessa sinfonia de tesouradas. Mas, verdade se diga, em defesa do mestre barbeiro, as crianças eram irrequietas e ali presas naquela toalha que parecia uma camisa de forças, o melão não lhes  parava quieto pelo que se punham a jeito para uns deslizes do Ti Antoninho.

Se encontrava um piolho, bicho que por esses tempos era um caseiro habitual nas cabeçolas da rapaziada, o Senhor Antoninho aniquilava-o logo ali, esmagando-o com a  unha do polegar contra a própria cabeça do dono. Morria o piolho e ali já ficava sepultado na cova aberta, tal era a pressão feita no couro cabeludo.

Por outro lado, para rapar  a parte detrás dos pescoços e junto às orelhas, usava aquelas velhas máquinas manuais de corte de cabelo, que mais pareciam um corta relva, que pressionava com força. Sentir aquele tcheq-tchec-tcheq, pela cabeça acima era uma aflição danada. Depois, para terminar o trabalho, umas valentes chapadas encharcadas de Pitralon para queimar e desinfectar os cortes e arranhões. 

Feito o trabalho, revirados o assento e o encosto da cabeça para o cliente seguinte, que tanto poderia ser o meu tio Neca, como o Ti David ou o António Santiago, e retirado o lençol com que nos amortalhava, assim, aliviado e sem saudade daquele castigo capilar, deixava eu a barbearia para trás. Lampeiro, como a fugir, não fosse ser chamado para algum retoque, subia o monte com o pescoço vermelho como o de um peru e a cabeça e rosto a arderem num formigueiro desgraçado. Dali a pouco meses repetir-se-ia o calvário, porque, regra geral, pelo menos três vezes ao ano. Pela Festa do Viso, Natal e Páscoa.

Mas era assim, e as barbearias, como a do Viso do Ti Antoninho, por esse tempo não tinham contemplações com esquisitices de limpeza. A barba era aparada à navalhada e só de ver o barbeiro a afiar aquela espada numa tira de couro oleada já dava tremuras. Pela prateleira frontal, onde estavam dispostos pentes, tesouras e navalhas, ali eram penduradas tiras de papel de jornal onde a cada passagem da navalha pelas fuças, o barbeiro nelas depositava, um a seguir ao outro, montes de espuma com barba. 

O chão, esse parecia um posto de tosquia de ovelhas, como um relvado de cabelos de todos os tons, lisos, encaracolados, de crianças, jovens e velhos. Era varrido à vassourada apenas quando acabava o dia. 

Finalmente, ainda outra memória: Por muitas vezes, quando eu criança descia o monte mandado pela minha mãe à loja (mercearia) a Casaldaça, o Sr. Silva (Manuel Alves da Silva), pai do referido senhor Antoninho, debruçado na janela central de cima, atirava-me uma moeda de 1 escudo e pedia: - Ó Merquito, traz-me uma maço de cigarros Sporting! Compra rebuçados com o troco!

Nessa altura havia cigarros com nomes dos principais clubes. Não sei qual seria o clube do Sr. Silva, mas é de supor, pela marca dos cigarros, que o Sporting. A verdade é que se não fora os belos cromos com as vistosas camisolas  encarnadas a vestir jogadores como o Eusébio, o Coluna, o Simões, o José Augusto e o Águas, entre outros, e eu não seria benfiquista mas sim sportinguista à custa de comprar tantos maços de tabaco às riscas verdes-brancas para o Sr. Silva do Viso e dos rebuçados que o pouco troco me permitia lamber.

Mas, fechando a cancela a estas memórias, toda essa saudosa gente boa, o Sr. Silva, a sua mulher, a Dona Carolina, o seu filho António, tratado por Antoninho ou Toninho, ou mesmo a mulher deste, a Ti São, já todos partiram e hoje já só subsistem em algumas das nossas memórias. Nas dos familiares, certamente,  mas nas minhas, seguramente.

Por tudo isto, a casa chanfrada continua ali a avivar-me esses tempos, episódios e figuras passadas. 

Mas volvidas décadas, desaparecidas umas pessoas e envelhecidas outras, mantém-se sempre gracioso aquele cisne, na sua pose cimentada, ali ao fundo da balaustrada da escada da casa, a fazer-nos lembrar a música do bailado do Lago dos Cisnes, de Tchaikovski, que certamente na sala de cima tantas vezes o Sr. Antoninho pôs a tocar no velho gira-discos.

Se há alguém que terá ouvido todas aquelas sinfonias, óperas e concertos, o cisne será certamente um deles. 

É perguntar-lhe!

Finalmente, mesmo que já não fazendo parte das minhas memórias, importa dizer que nesta casa chegou a funcionar pelos anos 1940 uma escola destinada a raparigas. Isto antes da construção da escola primária do Viso. Mesmo com a escola do Viso em funcionamento, na parte da tarde sobretudo os alunos da 4.ª classe ali tinham aulas para reforçar ou complementar os estudos, como preparação para o exame da 4.ª classe que por essa altura era coisa séria.


16 de outubro de 2022

Recortando o passado


Guardo muitos recortes da nossa imprensa regional sobre assuntos relacionados à nossa freguesia. 

Este, que reproduzo, é datado de Julho de 1998, por isso já com 24 anos. Refere-se ao início das obras de construção da Alameda da Igreja e aos 4 mil contos concedidos pela Câmara Municipal como apoio à obra.

O tempo passa inexoravelmente e muitas das coisas que fazem parte do nosso presente parecem-nos que foram realizadas há dois ou três anos quando, em boa verdade, passaram já vinte ou trinta.

2 de outubro de 2022

A canalhada, o diabo de Vila Maior e o Santo António

 


Por estes tempos, andamos todos mais civilizadinhos. Porventura não tanto por uma cultura intrínseca mas essencialmente por aculturação. Pode até parecer uma redundância, mas vejo em ambos os termos algumas diferenças.

Por conseguinte, numa sociedade em que muitos dos nossos comportamentos básicos são modelados ou mesmo condicionados pelo conceito do “politicamente correcto”, às tantas andamos para aqui a "engolir sapos", a dizer aquilo que em consciência realmente não queremos dizer, a assentir  com o que não concordamos, mas apenas para não arranjar chatices, para não sermos postos de lado, ou mesmo não perder um emprego ou comprometer o acesso a ele. 

Os casos de julgamentos colectivos, nesta era de redes sociais em que todos nós nos expomos a esse coliseu de feras digitais, são mais que muitos. As palavras e as atitudes têm que ser bem medidas sob pena de atiçarem as matilhas e por elas devorados. E nem precisam de grandes motivos para isso; A ignorância, a iliteracia e a descontextualização dão uma ajuda.

Em rigor, andamos há muito a ser formatados, como quem o faz a um cartão de memória ou a uma pen-drive, apagando a nossa pornografia para neles poderem ser regravados  cânticos de hossanas e aleluias.

Andamos efectivamente, todos bem afinadinhos e certas guerras já pertencem ao passado. Se hoje trazidas à memória, quando muito servem de aferidoras de diferenças, dos tempos e, claro está, dos comportamentos.

Recuemos aos anos 1970: A Escola Primária do Viso, nas suas duas salas, abarrotava-se então de crianças, ou canalha, como era vulgo dizer-se. Partilhava-se tudo, a pobreza, a côdea de pão, os livros, os lápis de cor, as cagadeiras à turca e até os piolhos. 

Mas não se permitiam misturas de géneros. Meninas de um lado, rapazes do outro. Por esses tempos as professoras não permitiam essas distracções e por conseguinte as  invasões de territórios, com limites definidos pela separação dos alpendres dos recreios, não eram toleradas. O saltar a cerca, normalmente pelos rapazes, numa espécie de desafio, era reguada certinha. Paradoxalmente, o terreiro do monte, logo ao lado, já era um espaço de liberdade  onde havia a mistura nas brincadeiras. No trinca-cevadas tanto se saltava para o lombo dos rapazes como das raparigas. Mas estas, verdade se diga, porque já assim amestradas, preferiam jogar a macaca do que lombar com os gandulas repetentes.

Então, nessa segregação tida como natural, sob o olhar austero dos presidentes da república e do conselho, como dois ladrões no calvário ladeando Jesus no crucifixo, pendurado na parede da escola por cima do quadro negro de lousa, a sala do lado poente pertencia às raparigas e do lado oposto, a nascente, aos rapazes.  Estes, de algum modo, estavam em vantagem nos dias frios de Inverno, em que nos intervalos a malta aconchegava-se à parede, como pintos encolhidos sob as asas da galinha, a absorver o sol ténue da manhã. E cada lugar desse solheiro era sagrado e aquele que se colocava ou passava à frente roubando a nesga de sol, levava com a habitual maldição: - Quem está à frente do meu sol, é o diabo de Vila Maior, com o sangue a escorrer e o gato a lamber! 

E não é que a coisa resultava? De facto a rapaziada podia aguentar com umas valentes reguadas ao preço de uma por erro na gramática ou vocabulário, mas ser apelidado de diabo de Vila Maior, é que não?

Por esses tempos a canalha era mesmo do diabo, fosse ele de Vila Maior, de Canedo ou de Guisande, especialmente os rapazes. E nem as cabeças com mais galos que um galinheiro caseiro, os intimidava. É que a vida não era fácil e com sorte, porque nesses tempos não havia diferença entre ela o irmão azar, um rapazola estouvado angariava mocas como quem coleccionava cromos, tanto em casa, como na escola, como até mesmo pelo pároco, este que não admitia turbulências naquela terra sagrada na envolvência da igreja. 

Para além de tudo, por esses tempos de escola primária no Viso, havia uma espécie de gangs, sobretudos os que opunham os de Casaldaça e Lama, da parte de baixo, com os do Viso e Cimo de Vila, da parte de cima. 

Tantas vezes, logo que o dia de aulas era dado como terminado, começava a batalha, normalmente apelidada de corrida. Isto é, uns corriam à pedrada os outros. Ora como do Viso para Casaldaça era a descer, e ainda parece que é, claro está que eram corridos mais facilmente os da parte de baixo porque, convenhamos, era mais fácil atirar pedras e arremessar calhaus de cima para baixo, em que todos os santos ajudam, se bem que tenho dúvidas que os santos se metam nestas zaragatas de canalha. De resto, dizem, o Santo António que mora na Capela do Viso, tem estado ali há muitos aninhos quieto e sereno pela simples razão de que é de pedra. E da pesada.

Pois bem, nestas corridas à pedrada, posso dizer, eu que também atirei a minha quota parte de calhaus, que os do Viso saíam sempre vitoriosos. Na verdade as pedras vindas de cima para baixo raramente chegavam às canelas enquanto que as arremessadas do Viso pareciam mísseis teleguiados às testas dos da parte de baixo. E por esses tempos, ainda nem se sonhava o GPS.

Claro está que, como quem vai à guerra dá e leva, o problema para os do Viso era quando iam a Casaldaça à loja, como quem diz à mercearia, mandados pelas mães. Aí, sem a protecção do grupo e sem as pedras e a gravidade a ajudar,  arriscavam-se a levar uma coça dos gandulas de Casaldaça. Se tivesse que ser, apanhavam-nas todas. Mas passados dias, o ciclo invertia-se e andava aquele bando de canalha a combater encarniçadamente como se  se tratasse de uma Guerra dos Cem Anos. 

Mas essa mesma rapaziada, conforme foi crescendo e passando de classe até mesmo abandonar a escola, já com pelos a pintar a intimidade, começou a organizar outras formas de tirar teimas e então, nas longas tardes de Domingo, foram sendo combinados e realizados vários jogos de futebol entre a malta de cima e a malta de baixo. O troféu em disputa ali no terreiro do Monte do Viso, invariavelmente era uma litrada de refrigerante da Gruta da Lomba, pomposamente pousado no cimo de um dos cruzeiros do calvário a arrefecer ao sol.

O certo é que o final do jogo raramente era decidido pelo tempo e pelo resultado, mas por quem fosse mais ladino a surripiar a garrafa da laranjada. Umas vezes eram os do Viso e pessoalmente arrotei muitas vezes a beber aquela bebida gaseificada, doce e amornada, mas outras vezes lá era apanhada pelos de Casaldaça. A verdade é que mesmo quando com o troféu nas mãos, não se livravam de nova corrida à pedrada pelo monte abaixo. Só depois de cruzarem a ribeira no fundo do vale é que se consideravam a salvo.

No fim de contas, eram todos bons amigos e então um rapaz que não tivesse a cabeça rachada era olhado de soslaio. Afinal, como uma espécie de iniciação. Anda, pois, por aí ainda muita rapaziada na casa dos 60 com umas boas cicatrizes gravadas a pedra lascada nos melões, uma espécie de tatuagens que só são visíveis quando apalpadas.

Voltando ao princípio, hoje em dia anda tudo mesmo bem formatadinho, e aos professores ou aos pais já não são permitidas repreensões orais quanto mais reguadas, tabefes, cintos a assobiar ou mocas de rachar o melão. Por sua vez, as crianças são poucas, como aves raras, bem protegidas como em gaiolas e até mesmo as escolas do Viso e da Igreja há muito que fecharam por falta delas.

Já não há, pois, mais corridas à pedrada e até mesmo os velhos caminhos, antes fornecedores dessas armas de arremesso, foram há muito pavimentados. Nas velhas escolas tocam-se concertinas, distribuiem-se camisolas, casacos e calças e, do mal o menos, a do Viso faz parte do Centro Cívico e então podemos fechar os olhos e reviver as velhas brincadeiras e imaginar o que seria agora com as raparigas apartadas dos rapazes.

Já não há pedras, nem crianças nem escolas! Pouco mais há que  a nossa memória e até essa um dia destes há-de ser corrida, senão à pedrada, seguramente pelo esquecimento.

Bons tempos! 

Vá lá! Portem-se bem e sejam felizes!

27 de setembro de 2022

O Tono Mota chegou aos 60





O Tono Mota (António dos Santos Mota) chega, neste dia 27 de Setembro, aos 60 aninhos. Nascido a 27 de Setembro de 1962, é assim, em cerca de um mês, um pouco mais velho que eu. 

Não sei quantas crianças nasceram em Guisande neste ou no ano anterior. Seriam 4, 5,  meia-dúzia? Mais ou menos? Admito que o ignoro, mas sei que no ano de 1962, por isso há 60 anos, nasceram em Guisande 33 crianças. Foi frutífero, parece-me. Deu homens e mulheres com vidas de trabalho, seriedade e dignidade. São hoje homens e mulheres de família, com filhos e netos, quiçá bisnetos. 

Uns ainda por cá, outros por terras de fora e ainda umas poucas que a morte já ceifou, de que destaco, pela idade jovem com que partiu, bem como por ser também meu colega de infância e juventude, o Carlos, filho do Zeferino Gomes, também já falecido, e da D. Fernanda. Que Deus o tenha na sua companhia!

Dessa trintena de gente nascida em 62, julgo saber o nome de vários: O António Mota, de quem agora recordo a propósito do seu aniversário, a Paula Lopes, o Mário Joaquim, a Maria Albertina, a Maria da Conceição (do Alcides de Jesus), o Joaquim (da Guilhermina), a Maria Fernanda, o Carlos (do Teixeira), o José Carlos (da Pereirada), a Maria da Anunciação, a Laura (falecida), a Maria Albertina (da Eva), o Leonel (do Menina), a Maria de Fátima (da Natália), o Carlos Alberto (meu primo), o Carlos Alberto (do Zeferino) (falecido), que atrás referi, o Eduardo (da Palmira), o António Fernando (do Cartel), a Maria Jacinta, da Leira, e outros mais. Portanto, mesmo não sabendo o dia e mês de aniversário da maior parte deles, alguns já fizeram e outros a fazer os tais 60 anos, de algum modo, para além de um número redondo, cheio de significado. 

Seja como for, o Tono do Mota, ou o Mota, como o chamo, tenho-o como um dos melhores amigos dos bons velhos tempos, desde a escola primária, Ciclo Preparatório, em Lobão, pelos tempos de juventude, confidências e conquistas de namoricos e depois os tempos da tropa, ele no Exército, na especialidade de Comandos, orgulhosamente com a sua boina vermelha, e eu na Marinha, com o meu panamá branco.

É certo que depois de ambos casados (e fui ao seu casamento, num dia frio de Inverno, na freguesia de Louredo), as nossas vidas naturalmente tornaram-se outras, já não com a liberdade desenfreada de solteiros e tempos de copos e farras, mas fazendo então pela vida,  construindo casa e criando filhos. Apesar disso, até pela proximidade dos nossos ninhos, fomos sempre "tropeçando" um no outro, ora no café,  no trabalho, ao final de uma missa, ou mesmo numa qualquer festa, pondo então a conversa e o rumo da vida mais ou menos em dia.

O Mota foi sempre um tipo certinho, menos dado a brincadeiras e tropelias como, por comparação, com as do Beto Jorge, outro amigo comum dos bons velhos tempos. Mas se não tão expansivo e brincalhão como o filho do Albertino, seguramente mais assertivo, sempre leal nas pequenas e grandes coisas, no tempo em que partilhamos muito das nossas saídas em solteiros. De resto muitas vezes ia-mos à boleia um do outro, nas nossas motorizadas, na minha Fórmula 1 EFS-Sachs e na dele, uma V5 Sachs. 

Temos, por isso, mesmo que já enevoadas pela neblina do tempo, muitas aventuras e histórias em comum, correndo e galgando tudo quanto era sítio, festas e desfolhadas, na cata de raparigas namoradeiras. E quando algum de nós se prendia, mesmo que por dois ou três domingos, era simultaneamente um nó na garganta, porque depois do almoço, de um café e um "pneu" (águas castelo com uma rodela de limão) no café do Américo, acabada na RTP a corrida de Fórmula 1, quase sempre ganha pelo Nelson Piquet, Alan Prost ou Nikki Lauda, lá ía-mos os dois, já não juntos a partilhar a motorizada, mas separados, cada um por si. 

É claro que nisto de procurar a rapariga certa para a vida era uma espécie de jogo de aprendizagem por tentantiva e erro, e assim depois de dois, três ou quatro domingos a dar conversa, lá ficávamos novamente solteiros e de novo juntos nas saídas. Mas algum dia tinha que ser e o Mota, bem dentro do seu estilo de certinho, pouco depois de terminar a tropa, procurou assentar e arranjou uma valente mulher para a vida, ali bem perto de casa, na vizinha freguesia de Louredo. Lá me deixou, o Mota,  sozinho nas saídas domingueiras, mas nesta coisa de colegas de solteiro é como a partida das andorinhas depois do Verão e sentidos os primeiros frescos de Outono, uma a uma vão partindo todas.

Assim, poucos anos depois também lá deixei a solteirice e, seguindo o exemplo do Mota, fiquei igualmente por perto, até mesmo na mesma terra. Coisas.

Como disse, o Mota casou bem,  fez casa, criou e educou bons filhos e tem estado por ali bem perto da igreja de Louredo, quase a meio caminho da sua casa natal, no lugar do  Reguengo, que parte dela herdou dos pais, o Sr. Celestino e a Sr.a Isabel. 

Teve sociedade na área da construção civil com o seu irmão Manel que já depois deste abraçar a reforma, tem estado a trabalhar por sua conta e risco, sempre com muito trabalho e competência, mas sem canseiras exageradas, destas que por vezes e como certas corridas, nos levam à tentação de dar passos maiores que as pernas, tropeçando. Para quê empreender  muralhas se podemos fazer muros? O Mota foi e é assim, de passos curtos mas certos.

Apesar da sua discrição, tem integrado a vida da comunidade de Louredo, fazendo parte, desde há anos, do seu excelente grupo coral. Quem diria? Um pedreiro a arrancar salmos, hossanas e aleluias? É assim mesmo! Afinal, comigo e com outros, como o Rui Giro, o Orlando, o Maximino Gonçalves, etc, fez parte do grupo de alunos da primeira escola de música de Guisande, ali pelo início dos anos 1980, no Salão Paroquial. De resto, como nas parábolas cristãs, todos temos alguns talentos e, por poucos que sejam, importa que os façamos render e apresentar boas contas a quem no-los confiou. 

Não quero nem importa dar rasgados e exagerados elogios ao Mota, nomeadamente enfeitar o ramalhete com flores que ele não tem no seu jardim, mas tão somente  enaltecer a sua simplicidade, o bom carácter, a amizade e a lealdade, e dizer-lhe, publicamente, que tenho-o como amigo e um dos melhores dos meus bons velhos tempos. 

Não sei se me tem em igual conta, mas quero acreditar que sim, e por isso, porque quase a par nesta coisa do caminhar pelos degraus da escada da vida, em que nunca sabemos quando terminará, vamos continuando a subir, ou, como me parece ao chegar aos 60, a descer, mas que seja, até quando Deus quiser. Importa é descer de passo firme, sem nunca escorregar.

Bom aniversário, Mota, e que venham muitos mais e bons e que eu os conte!