Há casas assim, que mesmo de portas e janelas fechadas estão permanentemente, dia e noite, escancaradas às nossas memórias. Entramos nelas com pézinhos de lã, como fantasmas, damos umas voltinhas e voltamos a sair sem ter feito ranger o velho soalho ou fazer chiar os gonzos das portas.
Esta casa, a da fotografia, todos a conhecem. Fica ao fundo do monte do Viso. Chamo-lhe eu a casa chanfrada, não porque lá viva ou tenha vivido gente com umas quartas-feiras a menos; bem pelo contrário, sempre lá viveu gente ajuizada, de nome, honrada e de trabalho.
Casa chanfrada porque tão somente tem uma das suas esquinas recortada com um chanfro, como se o mestre pedreiro ali fosse ao canto e..zás, lhe cortasse uma talhada e, por conseguinte, dessa esquina resultou uma face adicional na qual, em cima e em baixo rasgaram portas, sendo que a de cima, a do Andar, dá para uma elegante varanda, a que o nosso povo designa de sacada. Já agora, a encimar as duas portas do Andar, duas belas padieiras com florões bem talhados na pedra.
Manuel Alves da Silva
Do que me lembra, pertenceu a casa a Manuel Alves da Silva, depois a seu filho António Alves da Silva e já depois da partida da sua esposa, Maria da Conceição Ferreira Fontes, em Abril de 2020, com 94 anos, pertence ainda à herança, mas dela usufrui sobretudo a filha Micas, e é sabido que se há alguém com um passado e ainda presente de trabalho laborioso nas coisas da terra é a esposa do Manuel Tavares. De resto, pela fotografia acima, veem-se ainda ali espigas a dourar num final de Outono, mas poderia ser um montão de espigas de dentadura a sorrir, vindas das ribeiras, prontas a desfolhar ou um carrego de bandeiras de milho ou feijão a secar. Aquele fundo do monte foi sempre assim, desde que me conheço, uma eira do povo, mas sobretudo da Micas.
António Alves da Silva, nasceu em 29 de Março de 1928. Era filho de Manuel Alves da Silva (foto acima) e de Carolina Pereira de Jesus. Era neto paterno de António Alves da Silva e de Margarida Rosa de Jesus (esta de Duas Igrejas). Era neto materno de António Rodrigues Caldeira e de Joaquina de Jesus. casou em 15 de Abril de 1950 com Maria da Conceição Ferreira de Fontes.
O pai do Antoninho, na imagem acima, nasceu em 14 de Março de 1898. Era filho de António Alves da Silva, da Barrosa, e de Margarida Rosa de Jesus, esta natural de Duas Igrejas. Era neto paterno de Manuel Alves da Silva e de Maria Soares. Era neto materno de António Ferreira de Passos e de Rosa Maria de Jesus (de Duas Igrejas).
Por parte do seu avô paterno era bisneto de José Francisco da Silva e de Rosa Maria de Jesus e por parte da esposa do seu avô paterno era bisneto de Manuel Ferreira de Passos e de Rosa Maria de Jesus.
De resto eram assim, noutros tempos, os largos dos lugares. No monte do Viso, atrás da capela, era uma eira comunitária do tamanho do mundo onde secavam palha, espigas e milho já malhado a assolhar dourado estendido em lençóis.
Pois bem, só por si, esta estreita fachada orientada para sudeste, tem muita história, porque, pessoalmente, me remete para as tardes de Domingo, em que o antigo proprietário, o saudoso senhor Antoninho (António Alves da Silva), abria aquelas portas de par em par e enchia o lugar com o som da sua aparelhagem em que punha a rodar um velho disco de uma qualquer sinfonia de Beethoven, Mozart ou Wagner.
Era uma das suas paixões, a música clássica e os respectivos discos. Outra, era conhecido o seu gosto por café, que o levava várias vezes ao dia à Corga de Lobão, onde normalmente o tomava. Talvez se apaixonasse por esta mulata bebida quando com seus pais esteve no Brasil, daí, para alguns, ter ficado com o apelido de "Toninho da Brasileira".
Não sabia do actual destino dessa boa colecção de discos de vinil, mas informou-me a neta que ali continua intacta à guarda da família. Quanto a tocar, porventura não, ou esporadicamente, mas as orquestras ainda soam sinfonicamente na memória como que orientadas pela batuta do maestro do tempo.
Escusado será dizer que entrei várias vezes nessa saleta onde o senhor Antoninho se deliciava a ouvir a sua música intemporal. Nesse aspecto partilhava com ele o gosto e paixão pela música clássica.
- Ó Almeida, sobe cá acima. Anda aqui ouvir uma coisa! - Desafiava-me por vezes quando ali passava depois do almoço de Domingo. E sabia, naturalmente discutir essa música, os nomes dos grandes compositores e sua obras.
A reboque desse gosto comum pela música, chegou-me a emprestar, com recomendações de mil cuidados, porque o não concedia a mais ninguém, alguns discos para eu passar na saudosa Rádio Clube de Guisande. Recordo-me particularmente do disco com o oratório Messiah de Georg Friedrich Händel, com o tão popular Hallelujah, que passei por alturas da Páscoa.
Mas para além desta particularidade relacionada à música clássica, a casa chanfrada traz-me muitas mais memórias. Desde logo, o referido senhor Antoninho durante anos teve ali uma barbearia. Não era propriamente um desenrascado Fígaro, como o da ópera de Rossini (O Barbeiro de Sevilha), que naturalmente deveria ter na sua colecção de discos, mas era o quanto bastasse a ser o barbeiro do Viso.
Mas se é verdade que o senhor Antoninho tinha sensibilidade para a música clássica, não posso dizer tanto da sua arte de barbeiro. Por várias vezes saía de lá, eu e as demais crianças do lugar, com golpes de tesouradas no pescoço e nas orelhas e até mesmo na véspera da minha comunhão solene deu-me uma golpada inadvertida no belo remoinho que por esse tempo tinha no cabelo junto à testa. As fotografias que guardo dessa solenidade, são testemunhas dessa sinfonia de tesouradas. Mas, verdade se diga, em defesa do mestre barbeiro, as crianças eram irrequietas e ali presas naquela toalha que parecia uma camisa de forças, o melão não lhes parava quieto pelo que se punham a jeito para uns deslizes do Ti Antoninho.
Se encontrava um piolho, bicho que por esses tempos era um caseiro habitual nas cabeçolas da rapaziada, o Senhor Antoninho aniquilava-o logo ali, esmagando-o com a unha do polegar contra a própria cabeça do dono. Morria o piolho e ali já ficava sepultado na cova aberta, tal era a pressão feita no couro cabeludo.
Por outro lado, para rapar a parte detrás dos pescoços e junto às orelhas, usava aquelas velhas máquinas manuais de corte de cabelo, que mais pareciam um corta relva, que pressionava com força. Sentir aquele tcheq-tchec-tcheq, pela cabeça acima era uma aflição danada. Depois, para terminar o trabalho, umas valentes chapadas encharcadas de Pitralon para queimar e desinfectar os cortes e arranhões.
Feito o trabalho, revirados o assento e o encosto da cabeça para o cliente seguinte, que tanto poderia ser o meu tio Neca, como o Ti David ou o António Santiago, e retirado o lençol com que nos amortalhava, assim, aliviado e sem saudade daquele castigo capilar, deixava eu a barbearia para trás. Lampeiro, como a fugir, não fosse ser chamado para algum retoque, subia o monte com o pescoço vermelho como o de um peru e a cabeça e rosto a arderem num formigueiro desgraçado. Dali a pouco meses repetir-se-ia o calvário, porque, regra geral, pelo menos três vezes ao ano. Pela Festa do Viso, Natal e Páscoa.
Mas era assim, e as barbearias, como a do Viso do Ti Antoninho, por esse tempo não tinham contemplações com esquisitices de limpeza. A barba era aparada à navalhada e só de ver o barbeiro a afiar aquela espada numa tira de couro oleada já dava tremuras. Pela prateleira frontal, onde estavam dispostos pentes, tesouras e navalhas, ali eram penduradas tiras de papel de jornal onde a cada passagem da navalha pelas fuças, o barbeiro nelas depositava, um a seguir ao outro, montes de espuma com barba.
O chão, esse parecia um posto de tosquia de ovelhas, como um relvado de cabelos de todos os tons, lisos, encaracolados, de crianças, jovens e velhos. Era varrido à vassourada apenas quando acabava o dia.
Finalmente, ainda outra memória: Por muitas vezes, quando eu criança descia o monte mandado pela minha mãe à loja (mercearia) a Casaldaça, o Sr. Silva (Manuel Alves da Silva), pai do referido senhor Antoninho, debruçado na janela central de cima, atirava-me uma moeda de 1 escudo e pedia: - Ó Merquito, traz-me uma maço de cigarros Sporting! Compra rebuçados com o troco!
Nessa altura havia cigarros com nomes dos principais clubes. Não sei qual seria o clube do Sr. Silva, mas é de supor, pela marca dos cigarros, que o Sporting. A verdade é que se não fora os belos cromos com as vistosas camisolas encarnadas a vestir jogadores como o Eusébio, o Coluna, o Simões, o José Augusto e o Águas, entre outros, e eu não seria benfiquista mas sim sportinguista à custa de comprar tantos maços de tabaco às riscas verdes-brancas para o Sr. Silva do Viso e dos rebuçados que o pouco troco me permitia lamber.
Mas, fechando a cancela a estas memórias, toda essa saudosa gente boa, o Sr. Silva, a sua mulher, a Dona Carolina, o seu filho António, tratado por Antoninho ou Toninho, ou mesmo a mulher deste, a Ti São, já todos partiram e hoje já só subsistem em algumas das nossas memórias. Nas dos familiares, certamente, mas nas minhas, seguramente.
Por tudo isto, a casa chanfrada continua ali a avivar-me esses tempos, episódios e figuras passadas.
Mas volvidas décadas, desaparecidas umas pessoas e envelhecidas outras, mantém-se sempre gracioso aquele cisne, na sua pose cimentada, ali ao fundo da balaustrada da escada da casa, a fazer-nos lembrar a música do bailado do Lago dos Cisnes, de Tchaikovski, que certamente na sala de cima tantas vezes o Sr. Antoninho pôs a tocar no velho gira-discos.
Se há alguém que terá ouvido todas aquelas sinfonias, óperas e concertos, o cisne será certamente um deles.
É perguntar-lhe!
Finalmente, mesmo que já não fazendo parte das minhas memórias, importa dizer que nesta casa chegou a funcionar pelos anos 1940 uma escola destinada a raparigas. Isto antes da construção da escola primária do Viso. Mesmo com a escola do Viso em funcionamento, na parte da tarde sobretudo os alunos da 4.ª classe ali tinham aulas para reforçar ou complementar os estudos, como preparação para o exame da 4.ª classe que por essa altura era coisa séria.