1 de agosto de 2023

Uma imagem que precisa de mil palavras


É da gíria dizer-se que uma imagem vale por mil palavras, mas nem sempre a imagem só por si é reveladora de tudo quanto possa dizer. Nem sempre tem a objectividade óbvia, a leitura clara e por isso importa que o texto, as palavras, complementem tanto o que os olhos veem como o que está para além dela.

Uma imagem pode mostrar, por exemplo, um simples caminho, com pedras gastas pelo tempo e para muitos olhares não passará disso mesmo, um trecho incaracterístico já gasto por passos e rodados de outros tempos, agora pouco percorrido, desinteressante e mais ou menos similar a muitos outros. Mas as palavras podem acrescentar que é um trecho de uma milenar calçada romana, das muitas realizadas por todo o império e que ligavam cidades, províncias e regiões, da Hispânia, Gália e Britannia a Roma, segundo técnicas de construção que permitiram que chegassem sólidas aos nossos dias, quando, obviamente, não destruídas pela voragem dos tempos modernos e pela indiferença e indistinção dos valores do património histórico e cultural.

Mas adiante, porque a imagem que ilustra este artigo nada tem a ver com romanos, suas estradas ou outras façanhas de engenharia. Mas, como um caminho, ainda que metaforicamente, a imagem com a casa e o espaço onde se ergue, conduzem a outros tempos e lugares, a pessoas e a momentos, unicos e singulares.

Para quem não conhece, esta casa ali nas traseiras da capela do Viso, foi de meu bisavô paterno, Raimundo Almeida, depois de seu filho Joaquim, meu avô, que a ampliou e que já pelo fim da sua vida a transmitiu a alguns dos seus filhos, uma parte das quais a meu pai. Por conseguinte, pertence por herança e por aquisição de algumas das partes a alguns dos irmãos, a meus pais, e ainda uma parte inferior a primos. 

Pela sua antiguidade, pelas vicissitudes e efeitos de desgaste do tempo, bem como ainda por não pertencer todo o edifício a uma só propriedade, por conseguinte com os obstáculos inerentes a um edifício que é de todos e de ninguém, certo é que se tem acentuado o seu desgaste e por isso está hoje em dia com um aspecto triste e decadente, de resto como tantas outras similares construções, espalhadas pelo nosso concelho como por outros, nem sempre, ou nunca, protegidas no seu valor arquitectónico pelos organismos e instrumentos de gestão territorial, ficando assim entregues às garras do tempo e de outras vontades urbanísticas. No fundo são, em muito, umas ilustres casas de Ramires, testemunhando a decadência de homens e seus tempos, porque o tempo e as suas mudanças não se compadecem com lirismos de nobres tempos antigos e dos seus vetustos valores. O progresso e o vendaval das suas mudanças trouxeram igualmente rupturas e decadência porque quase sempre num barco a navegar sem homens ao leme.

Em grande parte, estas casas ditas de lavrador eram os solares de gente abastada mas que vivia essencialmente do seu trabalho e da vida ligada ao campo, à floresta e aos animais. Gente que no geral não nascia já rica por desígnio maior, mas que se fazia a si própria com muito sacrifício, trabalho e esforço. Por conseguinte, são estas casas uma espécie de solares minhotos ou beirões, bem mais modestos, sem brasão no cimo do portão da entrada, porque não foram erigidas sobre dinheiro de emigrantes fazendeiros arrancado lá pelos brasis, ou de condes, viscondes ou morgados, ou de qualquer outro título de nobreza de fachada, tantas vezes cimentada à custa do suor dos demais que os serviam a preço de uma côdea e água por jeira. Ainda por um oportunismo avaro da ignorância inocente de gente mal remediada. Sempre foi assim porque "em terra de cegos quem tinha um olho era rei". 

Não faltam, pois, por aí e mesmo por aqui, histórias de gente e famílias que foram salteadas em cartórios, porque quem sabia ler e escrever redigia contratos e escrituras que eram assinadas literalmente de cruz. Surripiar à luz de contratos ardilosos várzeas e soutos a gente boa mas iletrada, era como roubar doces a bébés. Assim se consolidaram fortunas, ampliaram tapadas e largas ribeiras, ao abrigo do resgate por incumprimento tantas vezes falhado, não por falta de palavra, que era lei e honra, mas por ratoeiras e estratagemas de clérigos e doutores.

Mas adiante, porque ali por aquela casa do Ti Jaquim do Viso sempre morou gente, não tica mas remediada e sobretudo honrada, e não fosse assim, o património de terras ao luar seria imensuravelmente superior. Ainda sobrou um bom naco e feita a partilha ainda em vida, cada um dos muitos filhos pôde herdar um bom quinhão composto de leiras, campos e matos, porque dinheiro vivo esse era raro, mesmo em casa dos mais abastados lavradores. Pena que apenas alcondorados em montes íngremes e ribeiras apertadas, longe das ruas que ladeiam o casario e que o progresso urbanístico valoriza. Servem agora para pasto de chamas e alfobres de giestas e tojo. E nem o raio da auto-estrada ali passou para serem expropriadas a preço de ouro. Por ali até o diabo perderia as sandálias.

Todavia, em rigor não é principal propósito deste texto falar da casa em si, embora naturalmente me entristeça assistir à sua decrepitude num misto de naturalidade e impotência. Acima de tudo,  pela sua proximidade, porque ali à sombra da capela de Nossa Senhora da Boa Fortuna e Santo António, quero realçar a relação da casa com o nossa festa do Viso. 

Tanto a capela como a parte mais antiga da casa serão mais ou menos contemporâneas, por isso construídas ali pelo ano de 1869 onde naquele monte nascia apenas carqueja, esteva e alguns sobreiros. Por conseguinte, a casa e a gente que nela foi habitando, em diferentes tempos e gerações, assistiram a muitas festas, a momentos de devoção, de partilha e diversão. Gente que trabalhava no campo mas que naquele dia, no primeiro Domingo do estival Agosto, celebrava a vida na abundância de uma pipa de vinho aberta e do sacrifício de um porco ou galo subtraídos ao aido ou à capoeira. Ainda e principalmente a celebração da fé e a sua religiosidade na figura e invocação materna de Maria, sob o título de Nossa Senhora da Boa Fortuna. Também a Santo António porque por esses tempos o gado e os animais tinham valor de gente e o lisboeta que morreu francsicano em Pádua era o seguro a quem se recorria. Não surpreende que por ele e na exaltação das suas virtudes ali no púlpito da capela, em dias de festa, se tenham proclamado inflamados sermões por abades mestres da oratória, principalmente em tempos em que a importância de chamar um afamado pregador tinha a mesma que agora contratar um Quim Barreiros ou outro que tal.

Havia foguetes, bandas de música, como sardinhas em lata aninhadas em pequenos e coloridos coretos; tascas a aviar vinho e iscas de bacalhau. Na própria casa funcionou durante muitos anos uma mercearia e taberna que nesses dias de festa eram uma roda viva de forasteiros com o balcão repleto de copos de quarteirão inundados de vinho a empurrar azeitonas, iscas e pataniscas; havia à volta da capela tendas onde se vendia fruta e sobretudo melão que grupos de rapazes e namorados compravam a partilhavam em doces talhadas ali à sombra do velho sobreiro; havia concertinas, harmónicas, violas e bailaricos onde homens e mulheres, rapazes e raparigas ganhavam ali o direito e permissão para se enlaçarem ao ritmo de um vira ou malhão.

Chegava gente com promessas a cumprir, da nossa terra mas também das aldeias vizinhas, de Louredo, do Vale e Romariz, entre outras. Durante muitos anos, ainda criançola, habituei-me a ver ali as mesmas pessoas que depois da missa estendiam a toalha à sombra do sobreiro ou das austrálias e a cesta de verga paria coisas boas, como enchidos, doces e fruta.

É claro que com o tempo foram envelhecendo, os romeiros e a casa  avoenga, esta perdendo as suas cores, atapetando-se já o musgo nas paredes e telhado, cumes levantados pelo vento, que no Viso sopra mais alto. Também as pessoas que ali passaram as suas vidas, subindo e descendo escadas, abrindo e encerrando portas e janelas, também, uma a uma, foram partindo e no que diz respeito à festa, senão radicalmente, é pelo menos diferente, mas com coisas e ritmos que permanecem imutáveis tanto hoje como há cem anos, desde logo a fé, a devoção, o amor à terra e às suas coisas. A casa e a capela, como irmãs, já velhinas, permanecem ali, de algum modo imutáveis nos seus alicerces sob a fraga do monte, na sua essência e na sua alma mesmo que desbotadas na cor e com a cal e o saibro a cairem às lascas. 

Pode mudar tudo, porque até as pedras envelhecem, mas que não se mude nem perca o mais fundamental: a alma, a nossa identidade, o sentido de pertença e o respeito por nós próprios e pelo terrão onde se implantam as nossas mais profundas raízes. Quando estes valores forem desconsiderados e mesmo esquecidos, então, mesmo que não mortos, estaremos irremediavelmente pobres, ocos e escancarados como uma velha casa sem telhado, sem portas e janelas ou se ainda com elas, já empenadas e sem gonzos. 

Há imagens que precisam de mil palavras, mas estas serão sempre escassas e insuficientes na descrição que se queira fazer sobre as visões que apenas estão presentes no mais profundo de cada um de nós.

Esta imagem, pois, para além dela própria, tem muitas outras que mesmo que invisíveis são bem mais indeléveis porque profundas.