19 de março de 2023

Caminhadas na minha terra - O velho marco





O Domingo nascera fresco com um algodão branco a polvilhar o azul do céu mas percebia-se que com o avançar da manhã o astro rei acabaria por se revelar pleno e reinar no resto do dia desse final de Março.

Subiu a encosta de Trás-os-Lagos ao alto da Gandarinha por entre caminhos já mal delineados numa floresta onde reinam os eucaliptos e os poucos pinheiros, ainda juvenis que brotaram sob as cinzas dos últimos incêndios, eram apenas um testemunho pobre do que foram densos pinhais há cerca de meio século. Por esses tempos, havia limpeza e tudo se aproveitava: O tojo ou mato e os fetos para atepetarem os quinteiros e a cama do gado e os gravetos que secos se desprendiam das árvores sacudidas pelos ventos agitados do Inverno e que lançados ao lume ajudavam a aquecer os longos serões. 

Já no alto, atravessou a estrada e tomou para sul o velho caminho que dava em linha recta ao arraial de Santo Ovídeo, feliz e e inusitadamente limpo. No princípio dessa velha ligação por onde outrora passavam carros de bois, ali estava o granítico marco de limite de freguesa entre Guisande e Lobão que um velho cantoneiro, por esperteza mandada, o deslocou para o lado oposto na desculpa de desobstruir a cancela do Mato do Capitão. 

Diziam os antigos que mexer em marcos, fosse de demarcação de freguesias ou simples dentes encravados como limites de propriedades, era pecado que dava direito ao inferno. Mas o velho cantoneiro, que dizem que se chama Tucas, ou era avesso a esses ditos e superstições ou então agiu de pura boa fé sem nisso ver pecado ou roubo, apenas conveniência, mas certo é que com essa mudança, acrescentou e retirou metros quadrados da geografia de uma e outra freguesias. Coisas.

Com o caminho limpo como não se via há anos, logo surgiu o amplo arraial do Santo Ovídeo, também ele limpo e de erva reverdescida pelas últimas chuvas. Rodeou a capela e lá estava o velho campanário sem a sineta que dizem os de Lobão ter sido roubada pelos rivais de Guisande para com ela adornarem a capela do Viso, como se uma mentira repetida lendariamente muitas vezes se tornasse verdade. Mas de lendas, mesmo que mentirosas, se faz também a riqueza cultural das terras. 

Lá dentro desse amplo espaço que a fabriqueira de Lobão arrebatou na justiça à Junta de Freguesia, no fresquinho do interior da capela o Santo Ovídeo conversaria com os parceiros de altar, o S. Lázero e a Senhora da Guia, talvez discutindo que vai sendo tempo, lá para o final de Agosto, de voltarem a ter uma festa digna das romaria que noutros tempos se faziam. Pois vai...

Desceu depois pela estrada que leva ao lugar do Ribeiro e logo depois, a marcar a subida, o pequeno regato com o mesmo nome do santo que por ali reina. Percebia-se que o enorme movimento de terras ali defronte talvez tivesse ajudado a obstruir a plena passagem das suas águas e então à farta delas se formou ali uma lagoa, tão bonita e límpida quanto perigosa, porque um descuido de carro, pessoa ou animal, ali cairá direitinho e a profundidade pode consumar uma tragédia. 

Logo de seguida cortou à esquerda e meteu pelo pinhal acima e percorreu o velho mato de familiares antepassados, a confinar com o atrás referido regato que debaixo de uma velha parede tomada por vegetação, brotava farto das águas da Gãndara. Na regueira, ainda ali estava o alicerce do velho eucalipto gordo que uns anos antes fora abaixo. 

Voltou-se para sul e e percorreu o limite da linha de fronteira entre Guisande e Lobão e onde a mesma faz uma quebra mais brusca, lá estava, ainda, o velho marco com a Cruz de Cristo, ainda ensanguentada pelo rubor de alguém que a pintara. Ainda firme e erecto. Dali apontava para sul para a divisão já no limite com o lugar de Azevedo, ali mais ou menos pela represa de sede do rancho, onde os mais velhos ainda se lembram de existir outro marco. Mas esse, pela indiferença de quem terraplanou para do pinhal bravio abrir caboucos para o crescimento do lugar, revolveu indiferente como se fora um simples calhau. Se pecado foi, nunca ninguém se confessou e até mesmo quem já chegou a ter poderes, mesmo perante as evidências, negou-se a reconhecer que ali ainda era Guisande porque dava jeito que o lugar de Azevedo crescesse para cima dos calos dos vizinhos. Quem foi, já não faz parte do mundo dos vivos e importará que esteja e descanse em paz mas que cometeu esse pecado, de omissão, cometeu.

Logo depois virou à esquerda e rapidamente estava a cruzar os Quatro-Caminhos, hoje em dia mais aberto e airoso, pelo menos de dia, mas outrora um lugar temido mesmo para os destemidos e ali se erguiam altares de oferendas a deuses menores, a bruxas e feiticeiros que o breu da noite adensava de um escuro sinistro e lúgrebe.

Mais adiante já passava sob uma ramada acabada de podar, agora mais comedida, mas que noutros tempos cobria de uma sombra fresca e desejada, de um verde denso e cachos de tinto,  o velho caminho, hoje Rua da Ramada.

Não tardou, estava regressado a casa. Uma simples caminhada, mesmo que curta e ao perto, pode revelar muita coisa, memórias passadas e presentes, bastando que não baste apenas dar à sola numa correria a encurtar minutos e segundos, mas a olhar com atenção e perceber as mensagens que nos transmitem um regato, um carreiro, um muro, uma pedra, uma árvore ou muitas delas. A natureza, impoluta ou transformada, está sempre pronta a falar com quem a sabe escutar.