16 de março de 2024

O "rapa orelhas"

Há dias confidenciou-me o Ti  Manuel do Mouco, sem qualquer assomo de cristandade e sem dar crédito ao ensinamento evangélico da necessidade de perdoar 70 vezes 7,  que se houver juízo e sentido de justiça no Além, deve estar a arder nas labaredas do inferno, desde há cinquenta e tal anos, a besta quadrada que a ele e a outros mártires ensinou a ler, a escrever e a fazer contas na pobre e única escola da aldeia. Era o professor o terror da criançada e era entre ela conhecido como o "rapa orelhas",  já que com a negra cana de bambu, colhida do canteiro que mantinha na horta só para o abastecer desse apetrecho disciplinador, lhes ceifava sem dó nem piedade as orelhas ou o que restava delas. E daí, quem se surpreende por alguns dos nossos mais velhos apresentarem-se com orelhas caídas como perdigueiros ou calejadas?

Mesmo que não quisesse dar crédito ao azedume ou mesmo ódio do Ti Manuel ao "rapa orelhas", devia ter sido mesmo verdade a ter em conta outros iguais testemunhos de quem teve tão duras lições nessa velha escola. Eram as orelhas, eram as mãos, a cabeça e tudo quanto fosse carne e osso a merecerem os impiedosos castigos do irado professor, com tareias acompanhadas de "elogios" que mais pareciam uma lista de todos os animais domésticos e selvagens, desde o burro e porco ao urso e ao camelo. Até nessa lengalenga era uma lição de fauna a que aqueles pobres coitados aprendiam de cor e salteado de tanto ser repetida.

As crianças faziam de tudo para fugir à escola, como fingir que estavam doentes, chegando mesmo a ferir-se e a emborcar azeite para ficarem de caganeira, mas em regra pouco compaixão encontravam nos pais que não raras vezes aos castigos do professor somavam outras tantas tareias em casa. Por isso queixas era melhor não as fazer quanto mais queixinhas.

Tempos duros esses, com exageros. Nem todos os professores eram assim, mas em boa verdade, quase todos. Deviam ter em comum a disciplina de como bem arriar na canalha.  Hoje em dia os absurdos são outros e o barco deu uma volta de 180 graus e são agora os alunos a pôr em sentido os professores e se preciso for vão lá alguns dos pais acrescentar a disciplina a quem a devia administrar.

Estará, pois, a arder, desde há mais de meio século o professor franzino mas de mãos e braços duros e implacáveis na arte de ensinar á moda antiga e de como matar piolhos à canada e por sentença do Ti Manuel do Mouco continuará a arder por mais uns séculos. Mas haverá  mesmo inferno? Chegou a arrepender-se? Ou, em vez de estar a arder nas labaredas alimentadas a enxofre e alcatrão anda por lá a pôr o diabo em sentido e também a castigá-lo nas orelhas e nos chifres?. É que sempre ouvi dizer que certas pessoas são tão más que nem o diabo consegue lidar com elas.