Olho à minha volta e constato com uma simplicidade, natural mas quase cómica: há mais gente com menos idade do que eu do que o contrário. Não me causa espanto. É a vida a acontecer, como deve ser. Mas há uma sensação curiosa nisso, como se, sem grande alarde, eu tivesse atravessado uma porta que, antes, só imaginava abrir ou vislumbrava de longe, inalcançável, e que agora, como num salto do tempo, já transpús.
Pertenço, assim, com mérito e dom da vida, ao lote dos mais velhos, mesmo que ainda no limiar de um patamar mais alto a que muitos já acederam. Mas sem drama, ou nostalgia excessiva. Apenas uma constatação simples: o elevador da idade continua a subir, e eu vou dentro dele. Os botões dos andares ascendentes vão-se acendendo sozinhos, e de vez em quando espreito o espelho e penso: "Ainda sou o mesmo de há dez, vinte ou trinta anos atrás, só um pouco mais usado, como os velhos livros lidos e relidos."
Ser classificado como velho, idoso ou, mais semanticamente de "senior", tem um peso simbólico, real e curioso: É como receber uma farda invisível que muda a forma como nos olham na rua, nos locais públicos ou até na família. A diferença é que agora, entre muitas vantagens do amadurecimento, posso contar as coisas do meu tempo, de outros tempos, E eu lembro-me, sim. Recordo coisas que, mesmo bem contadas, os mais novos duvidam terem sido realidades.
Lembro-me de quando o telefone tocava e não se sabia quem era. De uma mensagem escrita que demorava dias, semanas a ser recebida e respondida. De quando as fotografias precisavam de tempo para nascer e nem sempre a cores. De quando os caminhos eram as estradas e estas apenas coisas de cidades grandes; a semana de trabalho era mais longa e curto o fim-de-semana. O traballho, de sol a sol, começava cedo e acabava tarde. As crianças íam à escola mas também ao campo e ao mato, a trabalhar, a ajudar a casa, os pais e os irmãos. Lembro-me da escuridão densa e do silêncio das noites, dos sons da natureza, do respeito e veneração aos mais velhos, e de como os domingos tinham cheiro e sabor — o chocolate quente da manhã, a missa cantada, o terço rezado naquela lenta lengalenga, o cheiro a frango assado ao almoço, a tinta no jornal impresso, a tarde de animação na televisão de um canal e a preto-e-branco.
Já vi e ouvi coisas que o tempo se encarregou de apagar dos manuais, mas que guardo cá dentro com nitidez surpreendente. E isso dá-me uma certa vantagem. Não é uma corrida, claro, mas é reconfortante saber que, enquanto uns ainda estão a descobrir o mundo, eu já vivi várias versões dele.
Nem tudo foi bom, nem tudo foi simples. Mas tudo foi vivido e de forma tão diferente dos dias de hoje. E talvez seja isso que nos distingue: a consciência de que sobrevivemos a todos os anos que vivemos. Carregamos memórias como quem carrega mapas antigos, cadernos rabiscados, dobrados, gastos nas lombadas, mas ainda úteis, com anotações válidas.
No fundo, ser mais velho é como estar num andar mais alto: a vista é melhor, mais ampla. E, mesmo que o corpo às vezes peça para descer, a cabeça continua a querer ir mais alto — por curiosidade, por teimosia, ou só por gosto de continuar a ver o mundo mudar.
O elevador continua a subir. E eu, com sorte, ainda vou assistir a muitos outros andares, a mudanças, mesmo que já sem surpresas porque há muito adivinhadas.