Já vai por aí um entusiasmo desmesurado sobre a Viagem Medieval que, entretanto e por cerca de duas semanas, encherá a sede do nosso concelho com milhares de visitantes. Uns dizem que 500 mil, outros que 650 mil. Mas que vão fazer pela vida para chegar a um milhão, quiçá aspirando a 2 milhões. Isso é que era.
O interesse que vou vendo por aí, num entusiasmo infantil de gente armada em cavaleiros, senhores feudais, damas, bobos, jograis e outros quejandos, é proporcional ao meu desinteresse absoluto por este evento, sobretudo pelo modelo cimentado na componente gastronómica e da apropriação indevida do espaço público. O resto é entretenimento para encher chouriços, porque mais do mesmo, ainda que se mude a figura do rei. E anda-se há nisto há quase 30 anos.
Muitos, que desde a quarta classe não leram uma linha da História de Portugal, ou do período da Idade Média, e que reprovariam num simples teste de escolha múltipla, dizem que é uma lição. De facto, nunca é tarde para aprender.
Um sessão de recolha de sangue cativa o interesse de 20 pessoas, uma sessão de uma assembleia de uma associação cultural e desportiva local, menos de metade disso, uma peça de teatro, talvez 30 ou 40, uma sessão de leitura e poesia, provavelmente uma dezena, a apresentação de um livro, apenas os familiares, amigos e pouco mais, mas para estas farras de comer e beber entre a multidão, com concertos de música ou batalhas encenadas, é que resulta. "Panem et circenses". A fórmula pode parecer estafada mas já os romanos a aplicavam com êxito. Modernamente é replicada com igual êxito pelos autarcas e é vê-los entusiasmados com as ruas do burgo apinhadas com 100 mil pessoas diárias e a sonhar com o dobro disso. O céu é o limite. No rebanho há sempre lugar para mais um.
Apesar disso, desse entusiasmo de autarcas, sobretudo os que têm a jusante interesses eleitorais, a coisa funciona porque dá nas vistas e é manancial para as redes sociais, mas no resto, no que interessa ao dia a dia das pessoas, há ruas com erva de 2 metros a ocupar passeios, ruas interrompidas com abatimentos, estradas em reles condições, obras e melhoramentos por fazer, lixo por recolher, etc. É o que é! Não há volta a dar e o mal vai sendo geral e só por isso se percebe que uma Câmara de um município com quatro mil e poucos habitantes, no interior do país (Penamacor), desbarate 150 mil euros num concerto de uma banda musical. Deveria haver limites para a pouca vergonha, ou pelo menos ao bom senso, mas não há.
Para mim, depois de algumas das edições iniciais, mais genuínas, menos produzidas e dadas a especulações no que se vende, perdi o interesse por este evento. Sobretudo quando a coisa se tornou num negócio. É disto que estamos a falar. Um negócio, dos grandes e lucrativos e só por isso se percebe que certos dirigentes e certas figuras da organização andem por lá há decadas. Além do mais, na Idade Média não se passam facturas da caneca de vinho, do chouriço assado ou das sandes de porco. O Fisco por ali não meterá o bedelho. O controlo fiscal deve ser mesmo medieval.
Dizem que o evento representa centenas de milhares para a economia local. Sem dúvida, para os mesmos de sempre, dos que têm lugar cativo e sobretudo para a vizinhança. Por cá, o Café do Manel ou do Armando ficam a ver navios. A mim, nestes quase trinta anos, nunca me caíu um centavo no bolso. A economia é como a água da chuva, que se esvai por onde o terreno inclina.
Para além de tudo, é quase imoral, e de legalidade duvidosa, o que mais me faz espécie, que uma boa parte da zona nobre da cidade, de acesso livre e público, fique quase duas semanas condicionada e à qual se acede apenas pagando bilhete e usando a pulseira, uma espécie moderna marcação de gado. Quem pretender andar por ali livremente à sombra do Rossio ou do castelo, que tire o cavalinho da chuva, vá de férias e regresse depois de assentar o pó na relva seca.
Pela sua dimensão e duração, há anos que justificar-se-ía que este evento fosse realizado em recinto próprio, como numa Feira Popular, quiçá no Europarque, até porque dizem que é a cidade dos eventos. Mas, está visto, não vão por aí, preferindo, sem oposição e numa de quero, posso e mando, ocupar e condicionar uma boa parte da cidade durante duas semanas, como um domínio privado.
Para os que adoram e não falham, bom proveito! Por mim, passo ao lado, mesmo que tenha que assistir a este massacre nas redes sociais, no antes, durante e depois. Já cansa!
Bem sei que estarei pouco acompanhado neste desinteresse, mas, porra, por vezes é preciso agitar o pântano e seguir em sentido contrário ao rebanho.