22 de dezembro de 2021

O fado do pau para toda a colher

 


O que por aqui vou dizendo e escrevendo, e isto dever ser perfeitamente natural e compreensível, reflecte sempre e apenas a minha opinião e qualquer outra, em concordância ou em contrário, é legítima, concorde-se ou não. 

A propósito de alguns recentes eventos de cantoria de fados em espaços de igrejas e capelas cá pela zona, parece-me que  o fado não é o tipo musical que mais se adeque à natureza de tais espaços. 

Gosto de fado (mais do clássico do que o moderno), aprecio o fado e julgo, sem falsa modéstia, que conheço minimamente a história e evolução deste género musical, para lhe reconhecer um lugar importante na nossa cultura musical, mesmo que de cariz urbano e limitado no espaço, já que essencial e reconhecidamente identificado a Lisboa e com a variante que se reconhece no ambiente académico de Coimbra, mesmo que o fado ligado à cidade do Mondego e ao contexto universitário, tenha, de algum modo, depois seguido a sua própria evolução e de forma independente da do fado lisboeta. 

O resto é paisagem, mesmo que o fado hoje em dia se cante por todos os lados e os fadistas ou pseudo-fadistas sejam mais que as mães. De resto, pela sua qualidade e valor enquanto elemento identitário, cultural e imaterial, foi já reconhecido pela UNESCO. 

Voltando à questão, apesar dessa qualidade cultural e musical, volto a dizer que não acho que se adeque a ser cantado em espaços de culto religioso. Desde logo porque na sua essência o fado é de origem popular, castiça, vadia e associada à vida boémia da capital, quase subversiva. 

O reportório clássico ou mais moderno, continua a focar temas como o amor romântico, sentimental ou carnal, o desamor, o maternalismo, a paisagem urbana e humana de uma certa Lisboa antiga, e naturalmente outros temas mas seguramente não de índole intrinsecamente  religioso ou espiritual. Pode-se chamar à equação o conhecido Frei Hermano da Câmara, que em determinada altura deu esse toque mais religioso ao fado, popularizando até a balada de fado de Coimbra “Samaritana”, de autoria de Álvaro Cabral (1865/1918), e mesmo outras figuras,  mas no geral foi coisa rara e mais adaptada do que evoluída. De resto, se alguma religiosidade mora no reportório do fado, essa é muito mais notória na variante do fado coimbrão. 

Mesmo hoje em dia, se o fado foi de algum modo moldado na sua essência original, tal deve-se a uma certa modelação que foi inevitável durante o longo período de ditadura do Estado Novo onde a este importava um fado mais domesticado e a tocar em valores a ele mais caros, como o de cariz religioso. Portanto o fado num largo período da sua história viveu muito desta ambiguidade.

Não tenho dúvidas que o fado, sobretudo pela sua matriz puramente musical e melódica, nos seus ritmos lentos, compassados e chorosos, até se pode prestar a uma intervenção mais recatada, introspectiva, mas não é seguramente da sua natureza mais genuína. 

Não basta, pois, que nos poemas cantados no fado se invoque Jesus, Maria ou José, ou os santinhos das aldeias, as capelas de Santo Estevão, S. Domingos ou outras, para que a coisa se possa considerar ou disfarçar de sacra e litúrgica, embora haja quem pense que sim, como se o fado possa ser pau para toda a colher. Um lobo nunca será cordeiro mesmo que lhe vista a pele.

Há por aí uma tese de doutoramento muito interessante e que aborda este tema da relação do fado com a religião e que pode levar a várias leituras e interpretações. Será o documento, dos que conheço, que melhor aborda e aprofunda esta relação sob um ponto de vista analítico e histórico. Interessante mas que, pela minha parte, não me leva a mudar a opinião quanto à legitimidade contextual de classificar o fado como religioso ou litúrgico. De resto, o fado nem precisa desses atributos e só perderia se assim fosse. Já muito mal se tem feito ao fado dentro do próprio contexto de fado.

Em resumo, e porque aqui não se pretende fazer a história do fado, até porque ela está mais ou menos feita e por quem melhor percebe da poda, volto à opinião inicial de que pessoalmente, apesar da tal ambiguidade de relação do fado com a Igreja e a religião, não acho adequada a sua interpretação em ambientes interiores de espaços de oração.  Não que tal me cause surpresa e ou espanto, porque vamos andando num tempo em que a subversão e mistura das coisas é norma corrente, mas apenas porque ainda gosto da velha máxima de que cada coisa no seu lugar, como quem diz, cada macaco no seu galho. 

A este propósito, para perceber o enquadramento, e porque também gosto de saber opiniões, pedi informações na Diocese sobre a realização destes eventos. Em resposta, pelo Vigário Geral foi-me esclarecido que para os referidos concertos ocorridos há pouco tempo, não emitiu a Diocese qualquer autorização.

Gostaria de saber um pouco mais, nomeadamente sobre se há orientações superiores para este tipo de eventos e que de algum modo regulamentem e uniformizem o uso dos templos para eventos não religiosos, em todo o território da Diocese, mas por ora ainda não obtive resposta. Aguardo.

Nota de falecimento

 


Faleceu Diamantina da Silva Santos (a Sr.º Tina da Gândara), de 78 anos (21 de Maio de 1943 a 21 de Dezembro de 2021). Residia no lugar da Gândara, na Rua Nossa Senhora de Fátima, 1745 - Guisande.

O funeral terá lugar amanhã, Quinta-Feira, dia 23 de Dezembro de 2021, pelas 15:30 horas na igreja matriz de Guisande, indo no final a sepultar no cemitério local em jazigo de família.

Matriarca de uma grande família, mulher de luta e mãe dedicada, sempre sorridente, mesmo que as vicissitudes de saúde a limitassem desse há alguns anos. Marcou uma das casas com significado na vivência social e patrimonial da freguesia, a Casa Neves, com o seu marido, o Sr. Alcides Neves, que também já partiu há alguns anos.

Nesta hora de dor e perda, sentidos sentimentos a toda a família, de modo particular a filhos, netos, noras e genros.

Que descanse em paz!

Bem na carucha...


Carucha, carucho ou corucho é uma palavra do caraças!

Os dicionários dizem que corucho se refere ao buraquinho por onde entrem e saem as abelhas nos cortiços. Ora se buraquinho pode ter uma carga sexual ou erótica implícita, que não tente qualquer maluco meter lá a coisa nesse coruto. As abelhas não iam gostar.

Será também uma derivação ou adaptação de coruto, esta palavra mais relacionada ao significado de cimo ou alto da cabeça ou mesmo de um monte. “-Não me fodas o coruto!” “-Vamos subir os dois ao coruto daquele monte e de lá vamos ver o mundo!”

Seja como for, à bardamerda com o dicionário porque cá pela terra toda a gente, ou pelo menos os que já precisam de óculos para ler ao perto, sabem que significa o alto de uma árvore. A carucha. “-Subiu corajoso à carucha do diospireiro e quando deu por ela...catrapuz! Partiu as costelas à custa dela, da coragem.”

Já agora, carucha é uma palavra do caraças e do caralho, porque caralho tem a ver com altura e alto, pois dizem os especialistas nesta ciência que nos explica o significado ou origem das palavras, que se refere àquela coisa tipo cesto ou meio pipo, também conhecida como cesto da gávea, colocada no coruto dos mastros das naus e caravelas, onde o marinheiro, quase sempre de castigo e mandado p´ró tal caralho pelo capitão, esticava os olhos salgados para o horizonte até que para além de mar e mais mar, bradasse: “-Terra à vista!”

Bem vista, esta da carucha e, já agora e por arrasto, do caralho. 

As palavras são assim, como coices de burro que quando bem acertadas ficam a li a moer, a moer.

21 de dezembro de 2021

O cara de cu


Foi num dia de Natal, a meio da tarde. Enquanto as mulheres da casa se afadigavam nos preparativos para a consoada, a cortar pencas, descascar batatas e pescar as postas do norueguês atado num saco de ráfia bem junto onde chocalhava a bica da fonte, e como o tempo estava frio mas límpido a fazer adivinhar mais uma camada da branquinha lá para os lameiros de Trás-da-Igreja, fui dar uma voltinha de arejamento ali para as bordas do Outeiro e Pereirada onde o Monte de Mó se vem espraiar e chorar em grossas lágrimas que correndo juntinhas aos cômoros vão dar o primeiro impulso à ribeira que por ali abaixo vai a cantarolar noite e dia de encontro ao Inha e logo depois ao Douro.

Contemplei as silhuetas despidas de castanheiros e carvalhos e saltitei o olhar a seguir piscos e melros que nos ramos nus ainda procuravam uns bagos de uvas esquecidas nas latadas ou nos caminhos lamacentos algumas larvas debaixo da folhagem. Ao longe, pelas Quintães e Cimo de Vila, o fumo já ondulava prateado das chaminés do casario onde se adivinhava o calor da consoada que se aproximava.

No regresso decidi tomar o caminho que do norte da Pereirada vem dar ao Pinheiro, no edifício da Junta, até para ver se ainda por ali havia azevinho que em tempos da primária se visitava de mansinho como um segredo bem guardado, na colheita de raminhos verdes com bagas vermelhas. 

Já dentro da sombra densa dos pinheiros e carvalhos, um pouco à frente vi um automóvel preto, a ocupar o caminho. Não estava abandonado porque o raio do carro, como se tivesse vida como o carocha do Herbie, estava a baloiçar num ritmo certinho, acima e abaixo.

- Mau! Será que vou ter que voltar para trás e meter novamente os pés já húmidos na erva molhada e nos carreiros lamacentos? O tanas! P´rá frente que o caminho é público! Siga!

Mas, o raio do automóvel, preto como um melro, ocupava mesmo o caminho projectado apenas para carro-de-bois e assim tive mesmo que passar na nesga entre ele e o mato um pouco mais alto.

Ao passar, os olhos desviaram-se curiosos para o interior e lá estava o casalinho, ela por baixo, ele por cima, ao comprido tanto quanto possível. Creio que só ela me viu e me fixou porque estava de olhos bem abertos, numa quase indiferença àquele aconchego desconfortante com as pernas emaranhadas entre manetes e guiador. A ele, não lhe vi a cara, mas vi-lhe o cu, porque branco e destapado. Um cara de cu.

É claro que esta cena correu ligeira porque o que vi foi mesmo de passagem e não me deti. Passado o carro, uma dezena de metros à frente, olhei para trás e lá continuou no balanço. Ainda com boa memória, fixei o modelo e a matrícula.

Quando cheguei a casa, os preparativos já estavam adiantados e a hora aproximava-se e dali a pouco a família já estava embrenhada na mesa farta e abençoada com as travessas bem prenhas num aconchego de batatas, couves e bacalhau, a que o molho de azeite e cebola caía generoso a escaldar num baptismo de água benta. A memória da cena de há pouco dissipara-se e a imagem daqueles olhos abertos e rosto indiferente e de um cu deslavado a baloiçar depressa se desvaneceu dando lugar às coisas boas da consoada.

Passados alguns dias, a imagem voltou-me à cabeça e de novo aqueles olhos abertos e desconsolados e aquele cu em vai-e-vem. Acabei por indagar colegas e amigos e dentro de algum tempo fiquei a saber quem eram e onde moravam. Das poucas vezes que a vida nos fez cruzar, para mim ele continuou como um desconhecido a quem não lhe vira o rosto mas o traseiro. Quanto a ela, bonita, de olhos profundos, fiquei sempre com a sensação de que me reconheceu naquele encontro imediato na tarde de um qualquer Natal. Quando me via, aqueles olhos que conhecera abertos, baixavam-se tímidos, envergonhados.

O tempo foi passando e poucos anos mais tarde soube que ela já se desprendera daquele triste que se afogava em copos e em expedientes manhosos. Deixou-o sem pena, mas ficando com dois filhos, um nos braços e outro agarrado às pernas. Um deles poderia muito bem ter sido concebido no dia do Menino Jesus.

A vida fora-lhe um pouco ingrata e aqueles olhos grandes, negros e bonitos continuavam, todavia, tristes e desconsolados e quem sabe se todo esse desconsolo não nasceu naquela tarde dentro de um carro preto, também ele triste, sendo montada, afinal, por um simples cara de cu. A vida por vezes tem destas coisas, de uma tristeza tristemente triste. 

Rais´ma parta! Mais valia que naquela tarde de Natal tivesse voltado para trás e encharcado os pés na ribeira. Mais valia!

Feliz Natal!

Das Caldas a Paiva, alguma raiva





Pela nossa vizinha Caldas de S. Jorge, não é de agora algum alvoroço a propósito das obras de transformação do Parque das Termas. Da inevitabilidade dos transtornos das obras e da necessidade de se ir de jipe ou de carro-de-bois ao "Lavrador"  comer umas pataniscas, estourou agora outra bomba com o abate, que dizem “à socapa" de um belo e imponente carvalho, que há décadas ali morava a dar fresca sombra ao busto do saudoso médico da terra, apertado num abraço de alvenaria e ocupando meio passeio num tom de fanfarrão. No fundo, o carvalho cometeu o crime de crescer e de ser ele próprio. Terá morrido de pé, mas despido.

Do que li, sobretudo do lamento de um conhecido e ilustre filho da terra, viajado e conhecedor de culturas em que o respeito pela natureza é religião, a crítica saiu dura, contundente para os "responsáveis" e para os súbditos, numa apreciação que não se devia generalizar mas que que de alguma forma, quase literária, pretende ser um "soco" nas consciências dos seus". Ninguém, nem mesmo o Scooby Doo e o seu dono, gostam de ser mimoseados de "cobardes", mas há terapias que só lá vão de choque.

Adiante. Quanto ao busilis da questão, o projecto e as obras do Parque das Termas e do que delas sairá, teria que ser fracturante até porque é lugar comum que as mudanças implicam sempre o desconforto pela perda do que é dado como adquirido. Mas sim, parece-me que, e não sei de que moda, tendência ou escola, o que vai vigorando nos espaços públicos tido como centrais e emblemáticos, é um certo exagero minimalista onde o pavimento de granito é rei e tapete para todo o pé. Deixemos o Parque das Caldas, até porque ainda não vi a ponta do véu do projecto, mas veja-se o que aconteceu no Jardim ou Largo do Conde de Castelo de Paiva, em que as tílias ali existentes que adocicavam o calor no estio, foram varridas para dar lugar ao espaço aberto, agora uma espécie de painel fotovoltaico capaz de estrelar ovos em dias de quentura. Como num poio de comida gourmet, por desfastio polvilharam a coisa com umas ervinhas aromáticas e uns arbustinhos minimalistas.

Porventura os paivenses terão a coisa que merecem, ou talvez não e gostem da mudança, pelo que ainda não li reacções, mas que a coisa no geral vai indo neste sentido, vai. Ora nesta onda de espaços abertos delineados e pavimentos com granito não há lugar para carvalhos, plátanos ou tílias. Quando muito, uns pintelhos por aqui e por ali.

20 de dezembro de 2021

De Rui Rio

Independentemente de outras possíveis e legítimas análises e opiniões, do pouco que ouvi e li do congresso do PSD neste fim-de-semana no Europarque, na Feira, retive alguns apontamentos positivos no discurso de Rui Rio, nomeadamente os seguintes três:

1 - A necessidade de uma fiscalização apertada dos apoios sociais, para que não sejam atribuidos "a quem não quer trabalhar". Sendo indispensáveis para quem deles precisa, os apoios devem ser fiscalizados num sentido de justiça e merecimento.

2 - Que o PSD está pronto para ser um governo "reformista" mas sem pôr em causa tudo o que outros fizeram até aqui.

3 - A visão clubísitica, que trata adversários quase como inimigos, não se coaduna com a forma como diz ver a atividade partidária.

Em relação ao primeiro ponto, parece-me ser uma questão de justiça e de objectividade. Os apoios sociais devem ser isso mesmo e não um modo de vida ou complemento de malandrice e chico-espertismo, em que com expedientes e laxismo do Estado se vai levando a vida sem nda fazer ou produzir.  Com pouco, é certo, mas sem esforço e responsabilidade. Essa cultura deve ser combatida.

Quanto à segunda ideia, também parece sensata. De facto, de qualquer Governo antecedente há sempre aspectos, medidas e políticas positivas. O constante fazer e desfazer o que outros fizeram, não deve ser uma fatalidade ou uma espécie de caça às bruxas. Se tem valor, mantenha-se ou melhore-se.

Finalmente, quanto ao terceiro apontamento, a questão da visão clubista dos partidos por parte de muita gente, é de facto ainda muito marcante e que leva ao apoio, tantas vezes, a incapazes, em detrimento de sufragar a confiança em gente competente, só porque na hora do voto fala mais alto o clubismo e a sigla. 

Quando a sala privada era um auditório público


As emissões regulares da televisão em Portugal começaram em 7 Março de 1957, mas um pouco antes, em 1956, houve emissões de carácter experimental, em instalações na Feira Popular de Lisboa. Apesar de uma programação inicial minimalista e com horário muito reduzido, a televisão depressa se transformou num fenómeno nacional e numa curiosidade que só terminava quando a emissão encerrava diariamente ao som do Hino Nacional.

Os aparelhos naturalmente começaram por ser poucos e caros, e com captura de sinal apenas em certas zonas do litoral, e desse modo não surpreende que as pessoas começassem a frequentar os locais mais ou menos públicos que tinham capacidade de instalação. Como nas demais aldeias, na freguesia de Guisande foram alguns cafés e mercearias como as do Sr. Joaquim Ferreira Coelho, em Fornos, e do Sr. Elísio dos Santos, em Casaldaça, logo na primeira metade da década de 1960, os primeiros a abrir essa janela que, mesmo condicionada por um regime de censura, nos alargava os horizontes. Depois, aos poucos, algumas casas particulares mais abastadas também foram adquirindo a caixa mágica.

Pela minha parte e das minhas recordações, no lugar de Cimo de Vila foi o meu avô, Américo Fonseca, o primeiro a adquirir o aparelho, o que terá sido no ano de 1966 e poucos anos depois, na casa do meu tio Avelino, por onde acompanhei as notícias e os acontecimentos da revolução do 25 de Abril de 1974. Seguiu-se, no Viso, a chegada a casa do meu tio Joaquim e em Casaldaça à mercearia do Sr. Domingos Sá. Aos poucos, pelos diferentes lugares. Em casa de meus pais, creio que por 1979 ou mesmo já no início de 1980. 

As emissões regulares no sistema a cores aconteceram aquando da transmissão do Festival RTP da Canção, em 7 de Março de 1980, em que sairia vencedor o José Cid com a canção "Um grande, grande amor". Todavia, poucos foram os que tiveram capacidade de mudar de televisor capacitado para a recepção a cores e por isso não surpreende que uma vez mais tenham sido os cafés a tomar a dianteira. Só muito mais tarde, aos poucos, os velhos aparelhos, os blaupunkts, os telefunkens e os philcos foram postos de lado.

De lá para cá todos conhecemos mais ou menos a evolução da televisão em Portugal, da RTP, dos seus diferentes canais, como o canal único e depois no Natal de  1968 a RTP2, conhecida como 2º programa, na banda UHF, o pagamento de taxa,  o aparecimento de novos canais privados, com o aparecimento da SIC, em 6 de Outubro de1992 e da TVI em 20 de Fevereiro de 1993, até à internacionalização dos sinais, e mais recentemente a emissão pela internet, cabo e satélite. Haverá certamente muito caminho a percorrer, ainda que tecnologicamento pareça que já não há muito mais a fazer, mas seguramente já sem a dimensão e amplitude das mudanças e evoluções ocorridas nos primeiros 30 ou 40 anos.

Voltando às minhas memórias de televisão desses primeiros tempos, recordo que na casa do meu avô, em Cimo de Vila, aos domingos, e sobretudo no Verão, logo a seguir ao almoço, e porque a sala era pequena, o televisor era colocado à porta da sala e voltado para o pátio comprido e estreito onde aos poucos a gente do lugar se acomodava, formando uma plateia compacta para assitir às novidades. Normalmente a coisa começava com o "TV Rural" onde o Eng.º Sousa Veloso nos trazia as novidades das coisas das lavoura. Também, muito apreciado o programa apresentado pelo Pedro Homem de Melo que nos trazia o folclore nacional. Marcantes, a visita do papa Paulo VI a Fátima, em Maio de 1967, bem como a chegada do Homem à Lua, em Julho de 1969.

Pelo meio, no dia-a-dia, a constante escapadela de casa e das tarefas para ir a casa do avô e padrinho para assitir aos desenhos animados e às séries como "Bonanza", "Daniel Boone", "Skippy", "Daktary"e tantas outras que nos marcaram a infância. Um pouco mais tarde em casa do meu tio Avelino e do meu tio Joaquim, repetiam-se as plateias de vizinhos para assitir aos filmes, como o "Lancer", na sexta-feira à noite, e a outras aventuras de índios e cowboys.

Aos Domingos à tarde, a coisa era complicada para a criançada, pelo que com a obrigação da Catequese, marcada para as 14 horas, seguida da reza do Terço, ou perdia-se a televisão e as aventuras ou ganhava-se uns "galos" nas cabeças, esculpidos à mocada da mão pesada do Sr. Vigário Pe. Francisco. Desse modo, escapar pelo menos ao Terço para fugir até aos cafés de Casaldaça era um misto de aventura e de loucura, já que raramente se escapava ao castigo, e desculpas de dores de barriga ou de dentes, ou outras artimanhas, não serviam de atenuante. Só agravava o peso da coça. Nesses tempos as queixinhas aos papás valiam e duravam tanto como manteiga em nariz de cão.

Seja como for, foi assim que  a malta desses primeiros tempos de televisão lidou com essa novidade mágica e misteriosa da televisão. Mesmo naquele pequeno e arredondado ecrã a preto-e-branco, de reduzida definição, abriam-se as portas largas para a imaginação, para uma realidade fantástica e fantasiada que depois tinha extensão e continuidade nas brincadeiras em comum, tanto no recreio da escola como no terreiro do lugar, espaço polivalente que tanta servia aos jogos de futebol como aos jogos da macaca e do pião. Nesse tempo a televisão não era a cores, nem em alta definição em HD, nem tinha box para gravações, nem era exibida em formato gigante, mas tinha o dom e a magia de nos fazer felizes na simplicidade do pouco quante baste. 

Como dizia alguém, "éramos felizes sem o saber".