21 de dezembro de 2021

O cara de cu


Foi num dia de Natal, a meio da tarde. Enquanto as mulheres da casa se afadigavam nos preparativos para a consoada, a cortar pencas, descascar batatas e pescar as postas do norueguês atado num saco de ráfia bem junto onde chocalhava a bica da fonte, e como o tempo estava frio mas límpido a fazer adivinhar mais uma camada da branquinha lá para os lameiros de Trás-da-Igreja, fui dar uma voltinha de arejamento ali para as bordas do Outeiro e Pereirada onde o Monte de Mó se vem espraiar e chorar em grossas lágrimas que correndo juntinhas aos cômoros vão dar o primeiro impulso à ribeira que por ali abaixo vai a cantarolar noite e dia de encontro ao Inha e logo depois ao Douro.

Contemplei as silhuetas despidas de castanheiros e carvalhos e saltitei o olhar a seguir piscos e melros que nos ramos nus ainda procuravam uns bagos de uvas esquecidas nas latadas ou nos caminhos lamacentos algumas larvas debaixo da folhagem. Ao longe, pelas Quintães e Cimo de Vila, o fumo já ondulava prateado das chaminés do casario onde se adivinhava o calor da consoada que se aproximava.

No regresso decidi tomar o caminho que do norte da Pereirada vem dar ao Pinheiro, no edifício da Junta, até para ver se ainda por ali havia azevinho que em tempos da primária se visitava de mansinho como um segredo bem guardado, na colheita de raminhos verdes com bagas vermelhas. 

Já dentro da sombra densa dos pinheiros e carvalhos, um pouco à frente vi um automóvel preto, a ocupar o caminho. Não estava abandonado porque o raio do carro, como se tivesse vida como o carocha do Herbie, estava a baloiçar num ritmo certinho, acima e abaixo.

- Mau! Será que vou ter que voltar para trás e meter novamente os pés já húmidos na erva molhada e nos carreiros lamacentos? O tanas! P´rá frente que o caminho é público! Siga!

Mas, o raio do automóvel, preto como um melro, ocupava mesmo o caminho projectado apenas para carro-de-bois e assim tive mesmo que passar na nesga entre ele e o mato um pouco mais alto.

Ao passar, os olhos desviaram-se curiosos para o interior e lá estava o casalinho, ela por baixo, ele por cima, ao comprido tanto quanto possível. Creio que só ela me viu e me fixou porque estava de olhos bem abertos, numa quase indiferença àquele aconchego desconfortante com as pernas emaranhadas entre manetes e guiador. A ele, não lhe vi a cara, mas vi-lhe o cu, porque branco e destapado. Um cara de cu.

É claro que esta cena correu ligeira porque o que vi foi mesmo de passagem e não me deti. Passado o carro, uma dezena de metros à frente, olhei para trás e lá continuou no balanço. Ainda com boa memória, fixei o modelo e a matrícula.

Quando cheguei a casa, os preparativos já estavam adiantados e a hora aproximava-se e dali a pouco a família já estava embrenhada na mesa farta e abençoada com as travessas bem prenhas num aconchego de batatas, couves e bacalhau, a que o molho de azeite e cebola caía generoso a escaldar num baptismo de água benta. A memória da cena de há pouco dissipara-se e a imagem daqueles olhos abertos e rosto indiferente e de um cu deslavado a baloiçar depressa se desvaneceu dando lugar às coisas boas da consoada.

Passados alguns dias, a imagem voltou-me à cabeça e de novo aqueles olhos abertos e desconsolados e aquele cu em vai-e-vem. Acabei por indagar colegas e amigos e dentro de algum tempo fiquei a saber quem eram e onde moravam. Das poucas vezes que a vida nos fez cruzar, para mim ele continuou como um desconhecido a quem não lhe vira o rosto mas o traseiro. Quanto a ela, bonita, de olhos profundos, fiquei sempre com a sensação de que me reconheceu naquele encontro imediato na tarde de um qualquer Natal. Quando me via, aqueles olhos que conhecera abertos, baixavam-se tímidos, envergonhados.

O tempo foi passando e poucos anos mais tarde soube que ela já se desprendera daquele triste que se afogava em copos e em expedientes manhosos. Deixou-o sem pena, mas ficando com dois filhos, um nos braços e outro agarrado às pernas. Um deles poderia muito bem ter sido concebido no dia do Menino Jesus.

A vida fora-lhe um pouco ingrata e aqueles olhos grandes, negros e bonitos continuavam, todavia, tristes e desconsolados e quem sabe se todo esse desconsolo não nasceu naquela tarde dentro de um carro preto, também ele triste, sendo montada, afinal, por um simples cara de cu. A vida por vezes tem destas coisas, de uma tristeza tristemente triste. 

Rais´ma parta! Mais valia que naquela tarde de Natal tivesse voltado para trás e encharcado os pés na ribeira. Mais valia!

Feliz Natal!