23 de julho de 2023

Passeios na Minha Terra - 2023


Com orientação do Centro Social de Guisande e organização da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, o grupo de Guisande participou nesta Quinta-Feira, 20 de Julho, na edição dos Passeios na Minha Terra de 2023, e que  teve como destinos Alcobaça, Batalha e Nazaré.

Esta rota, diferenciadora para os participantes, permitiu a visita guiada aos diversos patrimónios classificados pela Unesco e a outros de interesse turístico mundial.

Cada participante pagou o valor de 6 €, para custo das entradas nos mosteiros.

Este programa concelhio tem vindo a decorrer desde Maio e dura até Outubro de 2023 abragendo a população sénior de todas as freguesia do nosso concelho bem como pessoas na qualidade de acompanhantes.

22 de julho de 2023

Recolha de Sangue em 22 de Julho de 2023

O Centro Cívico, no Monte do Viso, instalação do Centro Social S. Mamede de Guisande, acolheu neste sábado, 22 de Julho de 2023, mais uma jornada da recolha de sangue, entre as 9 e 13 horas.

A título de informação, nesta jornada registou-se uma participação de 38 pessoas das quais 30 doaram e 8 ficaram impossibilitadas de o fazer.

Um agradecimento aos participantes e à equipa que colaborou com a jornada. Bem hajam!

É Sábado, está sol, pés ao caminho...

 


Neste Sábado, porque estava sol, pés ao caminho bem cedo e subida à Freita, porque em cada hora, em cada dia ou mês, há sempre quadros com diferentes cores. Ainda há pouco, flores, agora frutos. Antes terra lavrada, agora milho já embandeirado. Ainda em Maio o Caima bradava vigoroso e agora lamenta-se molengão. O pintor pode ser renascentista, barroco, romântico, impressionista ou naturalista, que ali encontra a luz sempre diferente e as paletas de cores adequadas à inspiração.

Hoje sem companhia, apenas, sem convite,  um podengo dourado que se juntou sorrateiro, a que chamamos de "Raio de Cão", que quase parecia ser um guia, um sherpa da Freita, habituado áqueles caminhos e pedras. Quando parecia desencaminhado, surgia inesperado já de nariz nos nossos calcanhares. Mas, lá pelo sítio onde nasce o Caima, talvez sendento, desviou-se e atalhou pelas fragas em direcção ao Serlei.

Na Castanheira, um dos poucos casais da aldeia, arrancava batatas e ainda esperei ver ali malta dos trails e dos chalanges a fazer daquilo uma prova, mas não, confirmando-se a profecia de que "...se fosse para arrancar batatas ninguém aparecia". Ainda nos oferecemos mas disseram agradecidos, que não, que estavam já a acabar. Mas, pareceu-me, a colheita foi generosa para a rudeza daqueles concharelos ladeados de fragas e cada pequeno carreiro produzia um saco. O lavrador dava graças por tanta batata, mostrando uma das grandes e sorria debaixo daquele bigode de piaçaba.

Mais à frente, na dobra do lugar, uma senhora nos degraus gastos de um casebre deu os bons dias e mendigou uma esmola como se estivesse na Senhora da Saúde. Que era pobre, com uma reformazita de miséria que se esvaía na farmácia e que a Junta e Câmara não ajudavam. Que era solteirona e não tinha filhos para lhe valer. Tomando fé no lamento, dei-lhe duas moedas de 1 euro, que daria para alguns pães, e já caminho abaixo lamentei que Arouca tivesse milhões para fazer uma ponte para suspender turistas e não tenha uns trocos para acudir aos seus que precisam, deixando-os suspensos naquela vertigem de pobreza. Contradições.

Da Castanheira a Cabaços são dois passos, um saltinho por uma ribanceira íngreme e de pedras soltas, que fez jorrar suor que até ali, talvez pela suave brisa, não se sentiu. Já em Cabaços, pela ruela atapetada de estrume de cabras e vacas saltaram-nos à frente dois mastins enfurecidos, como se fôssemos políticos, a mostrarem xilofones de dentes afiados e ainda por cima com coleiras que pareciam a coroa de espinhos com que flagelaram a santa cabeça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Houvesse luta e nem aos pescoços lhe podíamos chegar.  A coisa ficou feia porque desarmados sem um bom quebra-queixadas e não recuavam as bestas, como um boxeur a levar às cordas o adversário, mas do cimo da escada mal talhada assomou à porta uma velhinha escurecida pelo fumo e engelhada pela idade, com um pau na mão, a gritar p´ra trás Judas!, p´ra trás Barrabás! e então os mastins, obedientes, recuaram, mas sempre a dizerem por latidos que lhes apetecia morder canelas e pescoços de caminheiros. Com nomes assim dados a feras, a coisa deu ares de um caminho de calvário com a diferença de não termos ali um Cireneu que nos acudisse naquela cruz nem uma Verónica a limpar-nos o suor do calafrio.

Logo à frente, ainda mal refeitos do susto, chegamos ao ponto de partida, em Albergaria da Serra, que já foi das Cabras, e onde um grupo de ditos motards passou a poluir de fumo e roncaria o sereno lugar e do cheiro a estrume empestou-se o de gasolina. Bem que podiam estar todos nos Algarves. Respirava-se melhor por cá.

E pronto, jornada feita! Mais abaixo o S. Pedro esperava-nos com uma económica diária onde se aviou feijoada e rojões caseiros. Nada se perdeu e o dia ficou ganho.

Ficam de seguida alguns dos muitos olhares, de trás para a frente.



































21 de julho de 2023

ZX Spectrum 128K + 2 - Sinclair

 


A malta de agora, os mais novos, claro, não sabem destas coisas porque desde os primeiros momentos em que abriram os olhos e as orelhas ao mundo, ainda antes de se lhes tapar a moleirinha, já viam certamente os seus pais com telemóveis e depois já pela escola começaram a familiarizar-se com os computadores, entre eles os Magalhães, oferecidos às toneladas pelo bondoso do malabarista Sócrates (sendo que não foi por aí que o país escorregou para a bancarrota). Depois pelos aniversários, páscoas e natais, as consolas, as Segas, as Play Stations, os Nitendos, etc, etc., bem como de seguida a procissão com os andores de todas as demais santas tecnologias, que quase num passe de mágica se tornaram comuns e familiares e hoje qualquer um de nós, desde uma imberbe criança a frequentar o Jardim Escola até aos mais velhinhos no Lar, tem pelo menos um computador no bolso, com apps (aplicações) para tudo e mais alguma coisa, só faltando mesmo aviar francesinhas e tirar finos. Mas com tempo...

Ora eu e outros como eu, da geração de 60, ou mesmo anteriores, os cotas, podemos dizer que já fomos a Marte e a Saturno e que regressamos, porque de facto o salto, gigantesco, foi quase cósmico, e nunca o aforismo do "ir do 8 ao 80" fez tanto sentido.

Andamos, pois, já acostumados a ter um potente computador no bolso e para além da função básica de fazer e receber chamadas telefónicas há toda uma catrefada de ferramentas tecnológicas para tudo e mais alguma coisa, que o 5G veio exponenciar, e a AI, Inteligância Artificial, a permitir ao mais burros e iletrados da escola a possibilidade de se fazerem passar por génios, seja lá em que área, tanto a que lhes ensinam a somar 2 + 2,  a plantar alfaces, como a elaborar uma tese de mestrado ou mesmo a contruír um míssel hipersónico. Desde o puro entretenimento e arte de encher chouriços até às artes, engenharias e ciências, tudo cabe ali e está ao alcance da ponta do dedo. E se não cabe, compra-se uma coisa ainda mais potente, com mais gigas, mais memória, mais velocidade nos processadores. E se um Android é coisa de pobres, vai-se num iphone xpto que é outra música e sobretudo estatuto. Aquela maçã trincada ali na parte de trás da coisa vale agora mais que noutros tempos um livre trânsito para entrar no campo de jogos do Guisande ou na discoteca César Palace com direito a um Highland Clan.

Mas retomando o fio à meada, nos idos da década de 80,  quando os telemóveis eram ficção científica antes de começarem a ser tijolos, e os computadores profissionais coisas tipo sapateiras que ocupavam uma sala e pesavam tanto como o tractor do Raimundo, eu tive um computador portátil, maneirinho. Só não terei sido o primeiro em Guisande porque o comprei ao primeiro, então como agora passados 40 anos, inapto a usar tudo o que tenha teclas. Por isso, posso dizer que o comprei quase virgem, ainda com a caixa a cheirar a novo, e com um custo para o qual dispendi três ordenados e dava para comprar uma motorizada.

Foi, pois, ali por 1986 e uns picos, com o ZX Spectrum 128K +2, também conhecido como Sinclair ZX Spectrum +2, que foi lançado em Setembro desse ano. Então foi uma versão actualizada do ZX Spectrum, um popular computador doméstico lançado pela Sinclair Research Ltd. A versão +2 trouxe algumas melhorias em relação ao modelo anterior, incluindo a capacidade de carregar jogos e programas através de um leitor de cassetes de fita embutido, além de possuir 128KB de memória RAM. Essa actualização fez então do ZX Spectrum +2 um computador ainda mais atractivo para os ainda poucos utilizadores da época.

Convém lembrar que o computador só por si não tinha ecrã pelo que era comprado à parte, sendo que podia ser ligado à televisão e para os jogos poderia ainda ser ligado um joystick. Como se perceberá, com 128K de memória não dava para absolutamente nada de acordo com os actuais padrões, eventualmente para uma imagem de baixa qualidade, mas naquela altura dava para coisas que já pareciam impossíveis. É claro que o ponto forte da sua utilização era os jogos, que podiam ser carregados a partir de uma vulgar cassete do tipo de música, mas cujo carregamento só por si demorava aí uns 5 a 10 minutos e por vezes falhava o carregamento após esse tempo de espera. Era o tempo em que a paciência era uma arte. Por sua vez os jogos nas cassetes podiam ser comprados ou então, como agora, pirateados.

Verdade se diga, então rudimentares como agora sofisticados, nunca me entusiasmaram os jogos de computador, tirando um ou outro, como o popular Chukie Egg, em que alcançar um outro nível era quase como atingir um orgasmo, mas preferia programar outras coias, incluindo músicas cujo som era apenas o monocórdico bip. Mas nesse espírito aprendi a linguagem de programação que o computador usava, o Visual Basic, chegando mesmo a tirar formação e comprando livros. Fiz assim programas de contabilidade e outros na altura inovadores.

A verdade é que não mexendo na coisa há muitos anos, e mesmo que o monitor já tenha ido prestar contas ao criador, a verdade é que ainda tenho o computador lá por casa e uma catrefada de cassetes. No fundo são memórias ainda muito vivas e palpáveis e que mais não seja servem para nos trazer à realidade dos tempos actuais e ter em conta o fosso gigantesco ocorrido em apenas três décadas. 

Nem vale a pena lembrar, mas é claro que desde lá para cá, fomos tomando parte no processo de desenvolvimento e passando por todas as fases, a contar as versões do Windows, a sentir o peso e volume dos computadores e monitores a diminuirem, depois a internet, de velocidade de cágado à rapidade e velocidez de um míssil, e com ela todo um mundo novo como a digitalização dos serviços e empresas, as redes sociais, a inteligência artificial, etc. etc, etc.

É o que é, e só quem trilhou essas duas partes do caminho, como nas realidades ou fantasias do país maravilhoso de Alice, dividido pelo espelho, é que pode sentir as diferenças e com elas espantar-se, ou não. Os mais novos, estou certo, nunca as conhecerão nem se espantarão, porque entraram e viajarão sempre com o combóio em alto andamento.

Mas fica aqui para os meus seguidores a memória e o testemunho, sobretudo para quem não acredita que foi assim no passado não muito distante.


É BOM SABER:

Ainda a propósito do computador de que falei, na época do lançamento do ZX Spectrum 128K +2 em 1986, havia vários computadores concorrentes no mercado, alguns dos quais competiam directamente com o ZX Spectrum e outros que faziam parte do cenário geral de computadores domésticos da década de 1980. Alguns dos principais concorrentes do ZX Spectrum +2 incluíam:

Commodore 64: Lançado em 1982, o Commodore 64 era um dos concorrentes mais fortes do ZX Spectrum. Ele tinha uma ampla base de utilizadores e uma grande biblioteca de jogos e programas.

Amstrad CPC: A série de computadores Amstrad CPC, lançada em 1984, também era uma concorrente directa do ZX Spectrum. O Amstrad CPC oferecia gráficos e som melhorados e foi uma escolha popular para jogos e aplicações educacionais.

Atari 8-bit: A linha de computadores Atari 8-bit, incluindo modelos como o Atari 800 e o Atari 800XL, também competia com o ZX Spectrum. Foram bastante populares nos EUA e noutros países.

MSX: O padrão MSX foi uma plataforma de computador amplamente adoptada por várias empresas de electrônicos no Japão e noutros lugares. Embora não tenha sido tão popular em algumas regiões, os computadores MSX eram concorrentes do ZX Spectrum em vários mercados.

Apple II: Embora fosse mais comum nos Estados Unidos, o Apple II também foi vendido noutros países  e competia com outros computadores domésticos da época, incluindo o ZX Spectrum.

Esses são apenas alguns exemplos dos computadores concorrentes do ZX Spectrum 128K +2 na década de 1980. O mercado de computadores domésticos já era diversificado e competitivo naquela época, com várias opções disponíveis para os consumidores. Cada um desses computadores tinha as suas próprias vantagens e desvantagens, e a escolha do computador muitas vezes dependia das preferências pessoais e do conteúdo de software disponível para cada plataforma.

De lá para cá o salto foi gigantesco mas em muitos aspectos foram padronizados os sistemas enquanto plataformas, sobretudo no hardware, ficando a diversidade por conta do software e serviços.

Recolha de Sangue - 22 Julho 2023

 


O Ti Abel Fonseca na sua alegre casinha

Saí de casa para uma simples caminhada, para relaxar as pernas cansadas de corridas. Mas dos seis quilómetros que planeei fazer numa hora foram apenas dois, porque passando ao portão da casa do Ti Abel, meti conversa, ou terá sido ele, não vem ao caso, e num repente, entre tagarelecices de circunstância e outras sobre outros tempos, o tempo, o de agora, passou rápido e lá tive que atalhar para casa. 

Importa já esclarecer que fico sempre na dúvida se o devo tratar por tio se por primo. Em rigor e se nestas coisas vale mais a cepa familiar e a sua seiva, então o Sr. Abel é meu primo, em segundo grau, porque directo de minha mãe. Os seus pais, o Joaquim e o Américo, eram irmãos, filhos do mesmo Raimundo Fonseca e Margarida da Conceição, que Deus a todos tenha. Quanto a tio, é, como diz o povo, por afinidade e indirecto pois é por ser marido de uma tia de minha mulher. Seja como for, porque uns bons anos mais velho, acaba por assentar melhor o tio, mesmo sabendo-se que há tios mais novos que sobrinhos, pois há.

Mas então que seja! Primo ou tio, andava o Ti Abel do Fonseca a varrer a erva seca da calçada que um neto tinha vindo cortar com "uma máquina moderna" e que assim lhe poupou mais uma carga de trabalhos às suas já cansadas costas de calceteiro que foi toda a vida. 

Ali naquela cena tudo cheirava a outros tempos, a um certo bucolismo que sentido à distância temporal emanava ainda a aromas dos meus tempos de criança. Estava a varrer a calçada feita por si com uma vassoura entretecida de giestas, coisa já em desuso, como se a limpar o terreiro do lugar onde à noitinha haveria bailarico ao som de uma harmónica de beiços. Mas não, esses tempos de juventude lá para os lados de Cimo de Vila, onde a pretexto de tudo e de nada se armava uma festa pela noite dentro, já se dissiparam há muito e agora apenas residem nas memórias da sua cabeça que diz ainda estar fresca e finória. Queixa-se é dos ossos, das costas e sobretudo das pernas. Mas vai-se mexendo e remexendo nas coisas da terra ali à volta da pequena e alegre casinha que construiu com o seu suor lá pelos idos de 60. 

Quando não aguenta as costas e os ossos de arrancar ervas, guiar tomates e feijões de vagem, senta-se ali naquele banco sob a fresca ramada de americano, onde não tem conta aberta nem dinheiro em depósito, mas o valor do descanso que vale o peso em ouro de uma vida a lidar com pedras. Fora isso, vai andando, mesmo que a tomar quatro comprimiditos todos os dias e que ainda não dispensa às refeições (que já vêm do Centro Social) o copito de vinho. Não de americano, como gostaria e de há muito recomendado pelo Dr. Vasconcelos, mas do bom, do maduro, que assenta melhor.

Depois de perguntar pela idade da mãe, quis saber quantos anos tinha eu e respondendo à minha resposta disse-me que ainda era um jovem. Claro que não sou jovem, longe disso pelo menos uns quarenta, mas de facto fez-me pensar na relatividade das coisas e mesmo da própria idade. Mas esta relatividade, queira-se ou não, conforme se for caminhando lá virá a desvanecer-se e a transformar-se em realidade absoluta como a de outro meu tio, o Tio Neca, que em Outubro próximo fará 100 anos e não há na freguesia quem vá à sua frente na marcha do viver. Todos marcham atrás de si, incluindo eu e o Ti Abel.

Quanto à sua própria idade, disse que lá para o fim deste Verão fará 92 anos. Isto ontem, com aquela memória fresca e eu agora, passado um dia, já sem a garantia de que tenha dito 92 ou 93. Ai, cabeça, cabeça! Mas naquela certeza exclamada fiquei eu na dúvida se o disse com orgulho ou se já com algum desalento por ter em conta que nestas idades cada dia que passa tem um peso que verga ainda mais o corpo e amolece a vontade de viver. Mas, bem vistas as coisas, creio que o disse com claro orgulho e ciente de que chegou até aqui com a dignidade de quem viveu com trabalho e honra e se Deus quiser ainda andará por cá mais uns bons anos. 

Que mais pode um homem querer? Fez-se à vida e pela vida. Fez-se homem ainda quando era menino, trabalhou e mourejou. Casou com a Ti Maria,  fez uma casa pequenina como um ninho e seguindo o projecto feito em ditado de "terra quanta vejas e casa quanta caibas" que carimbou na fachada com um painel de azulejos com os sagrados corações de Jesus e Maria, como a pedir bençãos para o lar. Mas de tão pequena a casa, como homem do campo foi ampliando as instalações com capoeiras, currais e alpendres para nelas recolher galinhas, gado, alfaias e pastos. 

Produziu, deu nome e criou uma catrefada de filhos que de há muito, como pardais, voaram do ninho. Mesmo calcetando de paralelos quilómetros de ruas e vielas, nunca largou as terras. Plantou árvores e arbustos e tem defronte da casa, num canteiro em forma de ás de ouros, um já mais alto e direito do que ele e com um tronco que já pede avaliação de madeireiro. Supus eu que tivesse mais idade mas lembrou-se o Ti Abel, como se ainda fora ontem, que tinha trinta anos, pois plantado que foi por 1993. Os outros, mais pequenos, são mais novitos.

A juntar a toda essa carga dos noventa e picos e às dores dos ossos, o Ti Abel tem ainda o que diz ser uma cruz bem pesada, a de cuidar da esposa já em situação de perda de faculdades cognitivas, mas que aceita e suporta com a mesma dignidade e no cumprimento de votos jurados defronte do padre há já uma carrada de anos. O casamento também é isso, ou sobretudo isso. Melhor dito, era assim, porque agora as coisas são diferentes e casamentos são apenas compromissos, não com Deus mas com o notário ou conservador, como uma conta ou contrato a prazo e pretextos para bodas em quintas, porque os divórcios estão pré-anunciados. 

Bem, Ti Abel, vou andando! - Vai lá rapaz, vai! Despediu-se enquanto tentava meter na cabeça da Ti Maria, debruçada na janela da marquise, quem era quem com ele conversara. Infelizmente, terá sido tarefa inglória.

Dali a nada, no fundo dos Quatro Caminhos, passando aos campos das suas ribeiras, ladeadas de altos choupos, que já não pode fazer, com pena, tomei o caminho de casa a remoer essas coisas e o seu significado. Afinal uma conversa tem sempre que lhe diga. Haja ouvidos e o que  entre por um não esvazie pelo outro.

Perdi uns poucos quilómetros de caminhada mas ganhei uma viagem no tempo e naquela conversa, de algum modo já repetida noutras ocasiões, dei um saltinho aos meus tempos de criança em que tantas vezes entrei na casa que foi paterna do Ti Abel. Relembrei naquele largo  as brincadeiras, as desfolhadas, os bailaricos e um rol de gente então fresca mas, cada um na sua vez, já partidos. Regressei dessa viagem e de novo à realidade do tempo presente mas até esse, que apenas foi ontem, é já passado. 

O tempo é assim, como areia seca a esvair-se numa mão,  mesmo que fechada, em que os milhares de grãos, um a um retornam ao imenso areal.

20 de julho de 2023

Linhas de água e decisões a meter água

Confesso que desde que vi um porco maneta a andar de bicicleta e ainda a usar o telemóvel e óculos de sol,  já nada me surpreende. Mas mesmo assim, há certas coisas e determinadas decisões que pela sua aparente dualidade de critérios, não dá para perceber de todo o que vai na cabeça de quem as toma. E das duas uma: ou encolhemos os ombros numa indiferença de quem diz - Deixa andar!, ou então toma-se a coisa a peito e incomoda-se. 

Nesta situação de que falarei, por mim, apesar deste texto com um objectivo de reflexão, nem uma coisa nem outra, porque não me diz respeito de modo particular mas apenas como cidadão, e porque mesmo não compreendendo o diferente tratamento para coisas semelhantes, deixo a coisa rolar porque, como dizia há dias o Dr. Rui Rio, "...já não tenho esperança neste país".

Então é assim: Há dias tomei conhecimento que numa certa câmara municipal foi indeferido um pedido de informação prévia para a construção de uma habitação, tão somente por haver um parecer desfavorável e vinculativo de uma entidade externa que considera (e esta gente não sai do gabinete para fora para comprovar) que a pretensão, de acordo com a cartografia militar, se implantava em zona  de passagem de uma linha de água.

Em rigor,  isso não é verdade porque a linha de água existe mas desde há décadas a passar pela extrema do terreno e  por isso fora da zona prevista para a implantação da moradia. Tal facto pode facilmente ser verificado e comprovado com uma visita dos técnicos ao local, o que não aconteceu. 

Além do mais espanta que tal decisão e parecer desfavorável tomado como vinculativo decorra da leitura de uma carta sem rigor métrico, porque na escala 1/25000 e ainda por cima em contra-mão com as cartas de ordenamento e condicionantes do PDM da respectiva câmara municipal, nas quais tal linha de água não está assinalada, não tem qualquer classificação porque irrelevante, muito menos de domínio público hídrico. E daqui, uma leitura possível e surpreendente, mesmo paradoxal, de que afinal uma carta militar sobrepõe-se a uma carta do PDM, supostamente bem definida quanto à classificação do solo e condicionantes. Esta é de facto uma novidade!

Mas tudo isto até poderia ser classificado como natural e curriqueiro e uma vez verificada a natureza e o verdadeiro traçado da linha de água, a coisa certamente viria a ser reapreciada e deferida. Ou seja, o parecer desfavorável até pode ser positivo no sentido de despoletar a confirmação "in loco" se há ou não inconformidade lesiva para terceiros.

Mas, cá está, a ligeireza, o paradoxo e a dualidade de critérios que são insondáveis, porque na mesma freguesia da área administrativa da mesma câmara municipal, não apenas como informação prévia mas já com licenciamento aprovado, está em construção uma habitação que também ela está totalmente sobreposta a uma linha de água, e já agora com fluxo permanente e não de apenas águas pluviais. Mas pelos vistos, na fase de análise técnica, niguém ligou patavina à linha de água na carta militar. Vá lá saber-se porquê...

Por conseguinte, a obra está em curso, a obra irá ser acabada e habitada e faz-se de conta que tudo está bem e que esta dualidade de critérios e análise dos regulamentos  e pareceres administrativos depende apenas de sorte ou azar ou aptidão óptica dos técnicos e decisores, como num jogo de roleta russa.

Mas ainda voltando à mesma bendita linha de água que motivou o indeferimento, a mesma passa por debaixo do logradouro pavimentado de uma instalação industrial, tendo sido entubada há anos ao arrepio da lei, e mesmo da mesma entidade externa, vá lá saber-se se por ordem de que divino espírito santo. Mas lá está, serena e tranquila. De resto o que não faltam por aí, no tal concelho e nos demais, linhas de água a passarem por debaixo de construções decorrentes de edificações clandestinas, é certo, mas igualmente por aprovações tomadas num tempo em que os atentados ao ambiente eram moda e carimbavam-se num qualquer almoço ou jantar entre velhas amizades.

É pena que seja assim, porque estas coisas devem ser decididas de forma criteriosa e segundo os mesmos princípios constitucionais de igualdade e direito. Infelizmente, nesta situação, não me parece que tal imparcialidade tenha acontecido e por isso é que se torna incompreensível. Mas, fico-me por aqui. Deixa rolar! 

Os proprietários, obviamente que não têm qualquer responsabilidade na decisão porque em primeira mão cabe aos decisores técnicos e políticos analisarem do cumprimento e do respeito pelas normas regulamentares, mesmo que lhes apresentem projectos com as tais linhas de água omitidas. Mas mesmo que tomemos as tais linhas de água que constam nas cartas militares como decisivas a ponto de constituirem motivo para pareceres nagativos, então que se tomem como obrigatórias as cartas militares na análise de todo e qualquer projecto. Dessa forma estaria a ser seguido um critério de igualdade e imparcialidade. Ora não sendo assim...dá merda!. 

Já agora, o recorte da cartografia militar que ilustra este artigo, que não tem nada a ver com a zona em questão,  é apenas demonstrativo aos meus leitores do que é uma carta militar e do rigor que se pode ter da mesma. Uma casa que tenha 15 x 15 metros, por isso com 225,00 m2 de área de implantação, está ali marcada como uma caganita de mosquito. É caso para se dizer que os senhores que decidem e dão pareceres nos gabinetes, conseguem ver mosquitos em África.