21 de julho de 2023

O Ti Abel Fonseca na sua alegre casinha

Saí de casa para uma simples caminhada, para relaxar as pernas cansadas de corridas. Mas dos seis quilómetros que planeei fazer numa hora foram apenas dois, porque passando ao portão da casa do Ti Abel, meti conversa, ou terá sido ele, não vem ao caso, e num repente, entre tagarelecices de circunstância e outras sobre outros tempos, o tempo, o de agora, passou rápido e lá tive que atalhar para casa. 

Importa já esclarecer que fico sempre na dúvida se o devo tratar por tio se por primo. Em rigor e se nestas coisas vale mais a cepa familiar e a sua seiva, então o Sr. Abel é meu primo, em segundo grau, porque directo de minha mãe. Os seus pais, o Joaquim e o Américo, eram irmãos, filhos do mesmo Raimundo Fonseca e Margarida da Conceição, que Deus a todos tenha. Quanto a tio, é, como diz o povo, por afinidade e indirecto pois é por ser marido de uma tia de minha mulher. Seja como for, porque uns bons anos mais velho, acaba por assentar melhor o tio, mesmo sabendo-se que há tios mais novos que sobrinhos, pois há.

Mas então que seja! Primo ou tio, andava o Ti Abel do Fonseca a varrer a erva seca da calçada que um neto tinha vindo cortar com "uma máquina moderna" e que assim lhe poupou mais uma carga de trabalhos às suas já cansadas costas de calceteiro que foi toda a vida. 

Ali naquela cena tudo cheirava a outros tempos, a um certo bucolismo que sentido à distância temporal emanava ainda a aromas dos meus tempos de criança. Estava a varrer a calçada feita por si com uma vassoura entretecida de giestas, coisa já em desuso, como se a limpar o terreiro do lugar onde à noitinha haveria bailarico ao som de uma harmónica de beiços. Mas não, esses tempos de juventude lá para os lados de Cimo de Vila, onde a pretexto de tudo e de nada se armava uma festa pela noite dentro, já se dissiparam há muito e agora apenas residem nas memórias da sua cabeça que diz ainda estar fresca e finória. Queixa-se é dos ossos, das costas e sobretudo das pernas. Mas vai-se mexendo e remexendo nas coisas da terra ali à volta da pequena e alegre casinha que construiu com o seu suor lá pelos idos de 60. 

Quando não aguenta as costas e os ossos de arrancar ervas, guiar tomates e feijões de vagem, senta-se ali naquele banco sob a fresca ramada de americano, onde não tem conta aberta nem dinheiro em depósito, mas o valor do descanso que vale o peso em ouro de uma vida a lidar com pedras. Fora isso, vai andando, mesmo que a tomar quatro comprimiditos todos os dias e que ainda não dispensa às refeições (que já vêm do Centro Social) o copito de vinho. Não de americano, como gostaria e de há muito recomendado pelo Dr. Vasconcelos, mas do bom, do maduro, que assenta melhor.

Depois de perguntar pela idade da mãe, quis saber quantos anos tinha eu e respondendo à minha resposta disse-me que ainda era um jovem. Claro que não sou jovem, longe disso pelo menos uns quarenta, mas de facto fez-me pensar na relatividade das coisas e mesmo da própria idade. Mas esta relatividade, queira-se ou não, conforme se for caminhando lá virá a desvanecer-se e a transformar-se em realidade absoluta como a de outro meu tio, o Tio Neca, que em Outubro próximo fará 100 anos e não há na freguesia quem vá à sua frente na marcha do viver. Todos marcham atrás de si, incluindo eu e o Ti Abel.

Quanto à sua própria idade, disse que lá para o fim deste Verão fará 92 anos. Isto ontem, com aquela memória fresca e eu agora, passado um dia, já sem a garantia de que tenha dito 92 ou 93. Ai, cabeça, cabeça! Mas naquela certeza exclamada fiquei eu na dúvida se o disse com orgulho ou se já com algum desalento por ter em conta que nestas idades cada dia que passa tem um peso que verga ainda mais o corpo e amolece a vontade de viver. Mas, bem vistas as coisas, creio que o disse com claro orgulho e ciente de que chegou até aqui com a dignidade de quem viveu com trabalho e honra e se Deus quiser ainda andará por cá mais uns bons anos. 

Que mais pode um homem querer? Fez-se à vida e pela vida. Fez-se homem ainda quando era menino, trabalhou e mourejou. Casou com a Ti Maria,  fez uma casa pequenina como um ninho e seguindo o projecto feito em ditado de "terra quanta vejas e casa quanta caibas" que carimbou na fachada com um painel de azulejos com os sagrados corações de Jesus e Maria, como a pedir bençãos para o lar. Mas de tão pequena a casa, como homem do campo foi ampliando as instalações com capoeiras, currais e alpendres para nelas recolher galinhas, gado, alfaias e pastos. 

Produziu, deu nome e criou uma catrefada de filhos que de há muito, como pardais, voaram do ninho. Mesmo calcetando de paralelos quilómetros de ruas e vielas, nunca largou as terras. Plantou árvores e arbustos e tem defronte da casa, num canteiro em forma de ás de ouros, um já mais alto e direito do que ele e com um tronco que já pede avaliação de madeireiro. Supus eu que tivesse mais idade mas lembrou-se o Ti Abel, como se ainda fora ontem, que tinha trinta anos, pois plantado que foi por 1993. Os outros, mais pequenos, são mais novitos.

A juntar a toda essa carga dos noventa e picos e às dores dos ossos, o Ti Abel tem ainda o que diz ser uma cruz bem pesada, a de cuidar da esposa já em situação de perda de faculdades cognitivas, mas que aceita e suporta com a mesma dignidade e no cumprimento de votos jurados defronte do padre há já uma carrada de anos. O casamento também é isso, ou sobretudo isso. Melhor dito, era assim, porque agora as coisas são diferentes e casamentos são apenas compromissos, não com Deus mas com o notário ou conservador, como uma conta ou contrato a prazo e pretextos para bodas em quintas, porque os divórcios estão pré-anunciados. 

Bem, Ti Abel, vou andando! - Vai lá rapaz, vai! Despediu-se enquanto tentava meter na cabeça da Ti Maria, debruçada na janela da marquise, quem era quem com ele conversara. Infelizmente, terá sido tarefa inglória.

Dali a nada, no fundo dos Quatro Caminhos, passando aos campos das suas ribeiras, ladeadas de altos choupos, que já não pode fazer, com pena, tomei o caminho de casa a remoer essas coisas e o seu significado. Afinal uma conversa tem sempre que lhe diga. Haja ouvidos e o que  entre por um não esvazie pelo outro.

Perdi uns poucos quilómetros de caminhada mas ganhei uma viagem no tempo e naquela conversa, de algum modo já repetida noutras ocasiões, dei um saltinho aos meus tempos de criança em que tantas vezes entrei na casa que foi paterna do Ti Abel. Relembrei naquele largo  as brincadeiras, as desfolhadas, os bailaricos e um rol de gente então fresca mas, cada um na sua vez, já partidos. Regressei dessa viagem e de novo à realidade do tempo presente mas até esse, que apenas foi ontem, é já passado. 

O tempo é assim, como areia seca a esvair-se numa mão,  mesmo que fechada, em que os milhares de grãos, um a um retornam ao imenso areal.