23 de agosto de 2018

Mata borrão

O Venâncio já não tem idade para brincar aos cucos, pelo que no peso dos seus sessenta anos, bem feitos - assegura - considera que já viu de tudo e o que faltará para ver já pouco ou nada contará para o totobola da surpresa. 
Educado sobre valores que pelos tempos actuais vão definhando como minhoca em pedra quente, até que pereça mirrada, mesmo assim contemporizava com  a naturalidade das mudanças, de resto em consonância com o que já nos seiscentos poemizava o grande Camões: 

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Apesar de compreender a mutação dos tempos e das vontades, continuava o Venâncio a não encaixar certas coisas que ia vendo, por as achar tão simplisticamente difíceis de perceber, se não as consequências pelo menos as origens. Como, por exemplo, logo ali ao seu lado, na praia, onde, de barriga ao sol, não conseguia evitar ver e ouvir um grupo de adolescentes, mais para crianças do que para adultos, em cenas e predicados próprios de um filme, no mínimo para maiores de 16 anos, tendo eles, os actores num palco real de areia quente e macia, talvez uns 13 ou 14 anitos. Aquela rapariguinha de corpo delgado e cabelos compridos, quase da cor da areia em que se rebolava com um rapazola pouco mais velho, possivelmente dois ou três anos antes celebrara a comunhão solene. Na escola, onde certamente "aprendera" algumas daquelas disciplinas próprias de adultos, frequentaria o sexto ou sétimos anos.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

As conversas e as "acções" daquele grupo de rapariguitas e rapazitos soavam ao Venâncio como algo pouco natural e fora de tempo e como não visse por perto a sombra de adultos com ares de pais ou, modernamente, encarregados de educação, questionava para si próprio se aquelas criançolas, sobretudo as raparigas, não tinham pais, ou  pai ou mãe. E se tinham, sabiam eles ou preocupavam-se em saber onde, quando e como passavam o tempo os filhos e filhas, e com quem? Poderiam tais filhos de tenras idades ter noção das consequências de algumas das suas "brincadeiras"? Ou, como na escola de antigamente, confiava-se no mata-borrão para apagar ou remediar certos excessos líquidos? É certo que nos tempos que correm consomem-se pílulas, mesmo do dia seguinte, como quem come gomas ou se chupa rebuçados da tosse, mas lá vem o dia em que a cântara parte a asa e mesmo sob a alçada da legalidade, não cheira nada bem a perspectiva de um aborto a uma criança, porventura de forma recorrente. E ser mãe adolescente, não sendo, infelizmente novidade, também não se afigura como positivo para nenhuma das partes. Os maus resultados sobram para todos, até para os pais que, invariavelmente, seguindo uma atitude de "deixa andar", de facilitismo e excessiva permissividade, criam as bases certinhas para estas brincadeirinhas de crianças a fazer de adultos.

Mesmo que lhe causem confusão estas coisas a destempo, o Venâncio voltou os olhos para o jornal desportivo e rematou bem à sua maneira, a de quem já não tem pachorra para debates e arrebates de moralidade ou falta dela: - Se der merda, alguém que limpe! E para certas borradelas não há mata-borrão que valha.

Continuou distraído, o Venâncio, a ler uma qualquer notícia sobre o tema das eleições no Sporting onde um labrego chamado Bruno Carvalho, como lapa, parece teimar em não se despegar do poder num clube histórico, mas poderia muito bem ter lido que as mães adolescentes em Portugal são mais de duas mil por ano, seis por dia, e só não são mais porque a pastilha faz "milagres" e os abortos são mais que muitos. Afinal de contas, ali, bem ao lado do Venâncio, a estatística poderia estar a consolidar-se.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E enfim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.