2 de outubro de 2022

A canalhada, o diabo de Vila Maior e o Santo António

 


Por estes tempos, andamos todos mais civilizadinhos. Porventura não tanto por uma cultura intrínseca mas essencialmente por aculturação. Pode até parecer uma redundância, mas vejo em ambos os termos algumas diferenças.

Por conseguinte, numa sociedade em que muitos dos nossos comportamentos básicos são modelados ou mesmo condicionados pelo conceito do “politicamente correcto”, às tantas andamos para aqui a "engolir sapos", a dizer aquilo que em consciência realmente não queremos dizer, a assentir  com o que não concordamos, mas apenas para não arranjar chatices, para não sermos postos de lado, ou mesmo não perder um emprego ou comprometer o acesso a ele. 

Os casos de julgamentos colectivos, nesta era de redes sociais em que todos nós nos expomos a esse coliseu de feras digitais, são mais que muitos. As palavras e as atitudes têm que ser bem medidas sob pena de atiçarem as matilhas e por elas devorados. E nem precisam de grandes motivos para isso; A ignorância, a iliteracia e a descontextualização dão uma ajuda.

Em rigor, andamos há muito a ser formatados, como quem o faz a um cartão de memória ou a uma pen-drive, apagando a nossa pornografia para neles poderem ser regravados  cânticos de hossanas e aleluias.

Andamos efectivamente, todos bem afinadinhos e certas guerras já pertencem ao passado. Se hoje trazidas à memória, quando muito servem de aferidoras de diferenças, dos tempos e, claro está, dos comportamentos.

Recuemos aos anos 1970: A Escola Primária do Viso, nas suas duas salas, abarrotava-se então de crianças, ou canalha, como era vulgo dizer-se. Partilhava-se tudo, a pobreza, a côdea de pão, os livros, os lápis de cor, as cagadeiras à turca e até os piolhos. 

Mas não se permitiam misturas de géneros. Meninas de um lado, rapazes do outro. Por esses tempos as professoras não permitiam essas distracções e por conseguinte as  invasões de territórios, com limites definidos pela separação dos alpendres dos recreios, não eram toleradas. O saltar a cerca, normalmente pelos rapazes, numa espécie de desafio, era reguada certinha. Paradoxalmente, o terreiro do monte, logo ao lado, já era um espaço de liberdade  onde havia a mistura nas brincadeiras. No trinca-cevadas tanto se saltava para o lombo dos rapazes como das raparigas. Mas estas, verdade se diga, porque já assim amestradas, preferiam jogar a macaca do que lombar com os gandulas repetentes.

Então, nessa segregação tida como natural, sob o olhar austero dos presidentes da república e do conselho, como dois ladrões no calvário ladeando Jesus no crucifixo, pendurado na parede da escola por cima do quadro negro de lousa, a sala do lado poente pertencia às raparigas e do lado oposto, a nascente, aos rapazes.  Estes, de algum modo, estavam em vantagem nos dias frios de Inverno, em que nos intervalos a malta aconchegava-se à parede, como pintos encolhidos sob as asas da galinha, a absorver o sol ténue da manhã. E cada lugar desse solheiro era sagrado e aquele que se colocava ou passava à frente roubando a nesga de sol, levava com a habitual maldição: - Quem está à frente do meu sol, é o diabo de Vila Maior, com o sangue a escorrer e o gato a lamber! 

E não é que a coisa resultava? De facto a rapaziada podia aguentar com umas valentes reguadas ao preço de uma por erro na gramática ou vocabulário, mas ser apelidado de diabo de Vila Maior, é que não?

Por esses tempos a canalha era mesmo do diabo, fosse ele de Vila Maior, de Canedo ou de Guisande, especialmente os rapazes. E nem as cabeças com mais galos que um galinheiro caseiro, os intimidava. É que a vida não era fácil e com sorte, porque nesses tempos não havia diferença entre ela o irmão azar, um rapazola estouvado angariava mocas como quem coleccionava cromos, tanto em casa, como na escola, como até mesmo pelo pároco, este que não admitia turbulências naquela terra sagrada na envolvência da igreja. 

Para além de tudo, por esses tempos de escola primária no Viso, havia uma espécie de gangs, sobretudos os que opunham os de Casaldaça e Lama, da parte de baixo, com os do Viso e Cimo de Vila, da parte de cima. 

Tantas vezes, logo que o dia de aulas era dado como terminado, começava a batalha, normalmente apelidada de corrida. Isto é, uns corriam à pedrada os outros. Ora como do Viso para Casaldaça era a descer, e ainda parece que é, claro está que eram corridos mais facilmente os da parte de baixo porque, convenhamos, era mais fácil atirar pedras e arremessar calhaus de cima para baixo, em que todos os santos ajudam, se bem que tenho dúvidas que os santos se metam nestas zaragatas de canalha. De resto, dizem, o Santo António que mora na Capela do Viso, tem estado ali há muitos aninhos quieto e sereno pela simples razão de que é de pedra. E da pesada.

Pois bem, nestas corridas à pedrada, posso dizer, eu que também atirei a minha quota parte de calhaus, que os do Viso saíam sempre vitoriosos. Na verdade as pedras vindas de cima para baixo raramente chegavam às canelas enquanto que as arremessadas do Viso pareciam mísseis teleguiados às testas dos da parte de baixo. E por esses tempos, ainda nem se sonhava o GPS.

Claro está que, como quem vai à guerra dá e leva, o problema para os do Viso era quando iam a Casaldaça à loja, como quem diz à mercearia, mandados pelas mães. Aí, sem a protecção do grupo e sem as pedras e a gravidade a ajudar,  arriscavam-se a levar uma coça dos gandulas de Casaldaça. Se tivesse que ser, apanhavam-nas todas. Mas passados dias, o ciclo invertia-se e andava aquele bando de canalha a combater encarniçadamente como se  se tratasse de uma Guerra dos Cem Anos. 

Mas essa mesma rapaziada, conforme foi crescendo e passando de classe até mesmo abandonar a escola, já com pelos a pintar a intimidade, começou a organizar outras formas de tirar teimas e então, nas longas tardes de Domingo, foram sendo combinados e realizados vários jogos de futebol entre a malta de cima e a malta de baixo. O troféu em disputa ali no terreiro do Monte do Viso, invariavelmente era uma litrada de refrigerante da Gruta da Lomba, pomposamente pousado no cimo de um dos cruzeiros do calvário a arrefecer ao sol.

O certo é que o final do jogo raramente era decidido pelo tempo e pelo resultado, mas por quem fosse mais ladino a surripiar a garrafa da laranjada. Umas vezes eram os do Viso e pessoalmente arrotei muitas vezes a beber aquela bebida gaseificada, doce e amornada, mas outras vezes lá era apanhada pelos de Casaldaça. A verdade é que mesmo quando com o troféu nas mãos, não se livravam de nova corrida à pedrada pelo monte abaixo. Só depois de cruzarem a ribeira no fundo do vale é que se consideravam a salvo.

No fim de contas, eram todos bons amigos e então um rapaz que não tivesse a cabeça rachada era olhado de soslaio. Afinal, como uma espécie de iniciação. Anda, pois, por aí ainda muita rapaziada na casa dos 60 com umas boas cicatrizes gravadas a pedra lascada nos melões, uma espécie de tatuagens que só são visíveis quando apalpadas.

Voltando ao princípio, hoje em dia anda tudo mesmo bem formatadinho, e aos professores ou aos pais já não são permitidas repreensões orais quanto mais reguadas, tabefes, cintos a assobiar ou mocas de rachar o melão. Por sua vez, as crianças são poucas, como aves raras, bem protegidas como em gaiolas e até mesmo as escolas do Viso e da Igreja há muito que fecharam por falta delas.

Já não há, pois, mais corridas à pedrada e até mesmo os velhos caminhos, antes fornecedores dessas armas de arremesso, foram há muito pavimentados. Nas velhas escolas tocam-se concertinas, distribuiem-se camisolas, casacos e calças e, do mal o menos, a do Viso faz parte do Centro Cívico e então podemos fechar os olhos e reviver as velhas brincadeiras e imaginar o que seria agora com as raparigas apartadas dos rapazes.

Já não há pedras, nem crianças nem escolas! Pouco mais há que  a nossa memória e até essa um dia destes há-de ser corrida, senão à pedrada, seguramente pelo esquecimento.

Bons tempos! 

Vá lá! Portem-se bem e sejam felizes!