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5 de janeiro de 2022

Lá terá que ser...

- Então, por aqui?

- É verdade!

- Para a 3ª dose?

- Pois! Tem quer ser!

- Esperemos que seja a última!

- Não sei, não! Se calhar vai durar e lá para o verão, estamos aqui para a 4ª!

- Será?

- É capaz, é!

- Se calhar, lá terá que ser!

- Pois, terá que ser! Como cantam os Deolinda, o que tem de ser tem muita força! E sei que vai ser, porque tem de ser.

E lá foram os dois para a fila que serpenteava como uma cobra a enfeitiçar o passarinho, antes de oferecerem o braço despido à espetadela da víbora.

No fundo, protestámos, refilamos, mas somos todos mansos cordeiros. A nossa sociedade, dizem, é livre e democrática, mas feitas as contas, antes como agora, vamos para onde nos mandam e temos que fazer o que querem que façamos. 

Mas tudo é mais sofisticado porque num sofisma intrincado em que somos levados a crer que nós é que decidimos o que fazer. 

Será assim?

30 de dezembro de 2021

O velho Monte

 


Olha lá o velho monte, 

como agora, então bonito,

e nele, bem assente,

linda e simples, a capela.


Não tinha, então, fonte,

nem calçada de granito,

mas crianças e mais gente

à fresca sombra dela.

27 de dezembro de 2021

A beleza...



A verdadeira beleza não se exibe, 

não se mostra em poses, 

não se anuncia com rótulos, frases feitas e lugares comuns.

A verdadeira beleza é simples mas não simplória.

É discreta, quase envergonhada.

Pode estar numa flor na borda de um caminho, 

numa pedra vestindo musgo, numa descolorida ave cinzenta.

A verdadeira beleza é aquela 

que os teus olhos vislumbram e não a que exibes numa vaidade vazia.

A verdadeira beleza 

não veste seda nem cetim nem se cinge de veludo, mas talvez num aconchego de tojo.

24 de dezembro de 2021

O Natal já não é o que era...

O Natal já não é o que era! Dizemos muitas vezes. Não será bem assim, mas haverá alguma verdade. Desde logo porque necessariamente os tempos nunca são os mesmos, mesmo que nem sempre o avançar deles signifique evolução.

Depois, quer se queira ou não, há diferentes percepções do Natal e do seu espírito. Ora a percepção dos mais velhos não é de todo igual às dos mais novos. Estes porque em regra crescerem num contexto de facilidades e abundância, nada lhes faltando, aqueles porque um pouco ou tudo ao contrário. Hoje os mais novos não sentirão a diferença de comer rabanadas, chocolates, aletria, bolo-rei, etc, porque os têm e comem durante todo o ano. Quando muito farão uma cara feia como a uma sopa de nabos. Já os mais velhos sabem que noutros tempos essas coisas eram mesmo só pelo Natal e nunca à fartazana, daí o sentido e percepção do sabor das coisas, tanto na boca como na alma.

Mas adiante. Hoje em dia, de facto, o Natal é muita coisa e coisa nenhuma, porque já pouco do essencial e do que ao longo dos séculos lhe deu substância. É verdade que o espírito de comunhão em família ainda se mantém, bem-haja, mesmo que o conceito de família esteja já a ser subvertido, mas no geral é puramente comercial e consumista. Da componente tradicional e religiosa já pouco resta. Uma larga maioria, mesmo num país dito católico, celebra o Natal sem celebrar o seu motivo nem passar pela igreja. - Coisas de velhos!

Depois é tudo muito rápido e fácil. Já muitos começam a consoar num restaurante chique e a ostracizar o bacalhau, por coisas mais à chef, e daí esta pandemia estar a ser uma chatice do caraças. Não se cozinha, e tudo já se compra feito e pronto. Não se descascam as batatas, as nozes nem os amendoins, sequer. Já não se fatia presunto ou queijo. Compram-se as “tábuas de festa”. Tudo pronto a consumir. 

É esse o espírito e o comércio faz questão de no-lo lembrar com a devida antecedência, quando por meados de Outubro já apanhámos com o velhote da Coca-Cola, as marcas do perfume com as gajas boas, as operadores de telecomunicações a dizerem-nos que o que está a dar é o 5G, as marcas de relógios a mostrarem joias como se fôssemos todos Cristianos Ronaldos, os amigos do Sócrates ou os Rendeiros, e as grandes superfícies engalanadas com pirâmides de Ferreros, árvores de bacalhau e azeite, etc, etc.

O Natal está mesmo a mudar e os fundamentalistas da inclusão até lhe querem dissociar o simbolismo e contexto religioso. Ora, para esses, vão-se foder e entalem-se com as trufas! Para os demais, um Feliz e um Santo Natal!

22 de dezembro de 2021

Bem na carucha...


Carucha, carucho ou corucho é uma palavra do caraças!

Os dicionários dizem que corucho se refere ao buraquinho por onde entrem e saem as abelhas nos cortiços. Ora se buraquinho pode ter uma carga sexual ou erótica implícita, que não tente qualquer maluco meter lá a coisa nesse coruto. As abelhas não iam gostar.

Será também uma derivação ou adaptação de coruto, esta palavra mais relacionada ao significado de cimo ou alto da cabeça ou mesmo de um monte. “-Não me fodas o coruto!” “-Vamos subir os dois ao coruto daquele monte e de lá vamos ver o mundo!”

Seja como for, à bardamerda com o dicionário porque cá pela terra toda a gente, ou pelo menos os que já precisam de óculos para ler ao perto, sabem que significa o alto de uma árvore. A carucha. “-Subiu corajoso à carucha do diospireiro e quando deu por ela...catrapuz! Partiu as costelas à custa dela, da coragem.”

Já agora, carucha é uma palavra do caraças e do caralho, porque caralho tem a ver com altura e alto, pois dizem os especialistas nesta ciência que nos explica o significado ou origem das palavras, que se refere àquela coisa tipo cesto ou meio pipo, também conhecida como cesto da gávea, colocada no coruto dos mastros das naus e caravelas, onde o marinheiro, quase sempre de castigo e mandado p´ró tal caralho pelo capitão, esticava os olhos salgados para o horizonte até que para além de mar e mais mar, bradasse: “-Terra à vista!”

Bem vista, esta da carucha e, já agora e por arrasto, do caralho. 

As palavras são assim, como coices de burro que quando bem acertadas ficam a li a moer, a moer.

21 de dezembro de 2021

O cara de cu


Foi num dia de Natal, a meio da tarde. Enquanto as mulheres da casa se afadigavam nos preparativos para a consoada, a cortar pencas, descascar batatas e pescar as postas do norueguês atado num saco de ráfia bem junto onde chocalhava a bica da fonte, e como o tempo estava frio mas límpido a fazer adivinhar mais uma camada da branquinha lá para os lameiros de Trás-da-Igreja, fui dar uma voltinha de arejamento ali para as bordas do Outeiro e Pereirada onde o Monte de Mó se vem espraiar e chorar em grossas lágrimas que correndo juntinhas aos cômoros vão dar o primeiro impulso à ribeira que por ali abaixo vai a cantarolar noite e dia de encontro ao Inha e logo depois ao Douro.

Contemplei as silhuetas despidas de castanheiros e carvalhos e saltitei o olhar a seguir piscos e melros que nos ramos nus ainda procuravam uns bagos de uvas esquecidas nas latadas ou nos caminhos lamacentos algumas larvas debaixo da folhagem. Ao longe, pelas Quintães e Cimo de Vila, o fumo já ondulava prateado das chaminés do casario onde se adivinhava o calor da consoada que se aproximava.

No regresso decidi tomar o caminho que do norte da Pereirada vem dar ao Pinheiro, no edifício da Junta, até para ver se ainda por ali havia azevinho que em tempos da primária se visitava de mansinho como um segredo bem guardado, na colheita de raminhos verdes com bagas vermelhas. 

Já dentro da sombra densa dos pinheiros e carvalhos, um pouco à frente vi um automóvel preto, a ocupar o caminho. Não estava abandonado porque o raio do carro, como se tivesse vida como o carocha do Herbie, estava a baloiçar num ritmo certinho, acima e abaixo.

- Mau! Será que vou ter que voltar para trás e meter novamente os pés já húmidos na erva molhada e nos carreiros lamacentos? O tanas! P´rá frente que o caminho é público! Siga!

Mas, o raio do automóvel, preto como um melro, ocupava mesmo o caminho projectado apenas para carro-de-bois e assim tive mesmo que passar na nesga entre ele e o mato um pouco mais alto.

Ao passar, os olhos desviaram-se curiosos para o interior e lá estava o casalinho, ela por baixo, ele por cima, ao comprido tanto quanto possível. Creio que só ela me viu e me fixou porque estava de olhos bem abertos, numa quase indiferença àquele aconchego desconfortante com as pernas emaranhadas entre manetes e guiador. A ele, não lhe vi a cara, mas vi-lhe o cu, porque branco e destapado. Um cara de cu.

É claro que esta cena correu ligeira porque o que vi foi mesmo de passagem e não me deti. Passado o carro, uma dezena de metros à frente, olhei para trás e lá continuou no balanço. Ainda com boa memória, fixei o modelo e a matrícula.

Quando cheguei a casa, os preparativos já estavam adiantados e a hora aproximava-se e dali a pouco a família já estava embrenhada na mesa farta e abençoada com as travessas bem prenhas num aconchego de batatas, couves e bacalhau, a que o molho de azeite e cebola caía generoso a escaldar num baptismo de água benta. A memória da cena de há pouco dissipara-se e a imagem daqueles olhos abertos e rosto indiferente e de um cu deslavado a baloiçar depressa se desvaneceu dando lugar às coisas boas da consoada.

Passados alguns dias, a imagem voltou-me à cabeça e de novo aqueles olhos abertos e desconsolados e aquele cu em vai-e-vem. Acabei por indagar colegas e amigos e dentro de algum tempo fiquei a saber quem eram e onde moravam. Das poucas vezes que a vida nos fez cruzar, para mim ele continuou como um desconhecido a quem não lhe vira o rosto mas o traseiro. Quanto a ela, bonita, de olhos profundos, fiquei sempre com a sensação de que me reconheceu naquele encontro imediato na tarde de um qualquer Natal. Quando me via, aqueles olhos que conhecera abertos, baixavam-se tímidos, envergonhados.

O tempo foi passando e poucos anos mais tarde soube que ela já se desprendera daquele triste que se afogava em copos e em expedientes manhosos. Deixou-o sem pena, mas ficando com dois filhos, um nos braços e outro agarrado às pernas. Um deles poderia muito bem ter sido concebido no dia do Menino Jesus.

A vida fora-lhe um pouco ingrata e aqueles olhos grandes, negros e bonitos continuavam, todavia, tristes e desconsolados e quem sabe se todo esse desconsolo não nasceu naquela tarde dentro de um carro preto, também ele triste, sendo montada, afinal, por um simples cara de cu. A vida por vezes tem destas coisas, de uma tristeza tristemente triste. 

Rais´ma parta! Mais valia que naquela tarde de Natal tivesse voltado para trás e encharcado os pés na ribeira. Mais valia!

Feliz Natal!

16 de janeiro de 2014

Os Loureiros

 


Na aldeia de Sandiães não havia família mais numerosa que a dos Loureiros, que só à sua conta formava quase o lugar inteiro de Casal do Viso.

O rasto da origem da família recuava a Bonifácio Loureiro, bisavô daquela gente toda. Ainda criançola e de pés descalços viera ter a Sandiães, a casa de um parente afastado, mandado e recomendado pelos pais, pobres caseiros dos lados de Cabreiros, com pedido de lhe dar carga de trabalho e rédea curta. Em troca receberia apenas a escola primária e pouco mais que uma côdea molhada de caldo de couves e feijões.

Quase de origem misteriosa, que as poucas falas adensavam,  cresceu e fez-se homem o Bonifácio Loureiro, que à custa de tanto trabalho e de um casamento feliz e espertalhão com a Alzirinha, filha única do João dos Travassos, timbrado debaixo de uma meda de palha à sombra do estio de um Agosto, em poucos anos conseguiu aumentar o rol de leiras, várzeas e tapadas e morreu de velhinho com fama de lavrador abastado com bens ao sol e ao luar e várias cabeças de gado a pastar pelos viçosos lameiros.

Deixou uma corja de filhos e filhas que entre si dividiram propriedades e nelas, dispostas ao longo do velho caminho, edificaram  um casario juntinho como ramos apegados ao mesmo tronco. É esta, pois, a breve história da origem dos Loureiros em Sandiães.

Unida nessa fraternidade serrana, nunca ninguém subtraiu a fama de trabalhadores a essa famelga. Lavradores, pedreiros e trolhas, os Loureiros eram exemplos de como se faz vida cavando e construindo de sol a sol. 

Apesar dessa imagem de mouros e gente de trabalho, os Loureiros não gozavam de grande fama na freguesia porque poucas vezes iam ao redil do padre Arnaldo e deste pouca farinha faziam da cantilena de que nem só de pão vive o homem. Desde o mais velho, o Joaquim até à mais nova, a Celina, os Loureiros gostavam pouco de missa e muito menos de sermões. Por desfastio, e porque até por entre tojo e carqueja brotam as mais delicadas flores, eram, todos eles, devotos zelosos de S. Tiago, que se abrigava na capela do lugar e onde, lá pelos calores de Julho, se celebrava uma rija romaria. 

Por essa altura, era ver os Loureiros, zelosos e vaidosos, ou  na sua opa escarlate a empunhar a vara do juiz da festa ou a segurarem as pernas da aranha do pálio que regava de sombra a careca macia do padre Arnaldo, ou então na sacristia a recolherem as esmolas e promessas. Mesmo na véspera, a Celina, a Rosa e  Cassilda bordejavam o arraial e capela de enfeites e grinaldas de papel de crepe.

Porém, dançada a última cantiga e estourado o último foguete, a famelga voltava à aridez do trabalho e da canseira nos campos, e para com as demais festas, fossem elas quais fossem, mesmo que pelo Natal ou Reis, a carranca de Lazarim era a cara com que recebiam peditórios e rusgas de Janeiras. Para estas, mal se ouvia o tinir do ferrinho e o chocalhar da pandeireta lá no alto da curva do caminho velho, trancas à porta e luzes amortiçadas. – Que passassem e andassem! - Dali, esmolas só para o S. Tiago!


Américo Almeida