31 de maio de 2017

Vamos aos livros a Casaldaça

Pois claro, muitos já não se lembrarão, nem os mais novos nem os mais velhos, mas tempos houve em que a  rapaziada de Guisande recebia a visita da  Biblioteca Itinerante, da Fundação Calouste Gulbenkian. Era uma vez por mês, em hora e dia certos (que já não recordo quais, mas creio que numa quarta-feira por volta das 15:00 horas) que aquela carrinha de modelo esquisito, estacionava no largo de Casaldaça, ainda em terra, e abria as portas para que a rapaziada pudesse escolher uma nova remessa de livros que daria leitura para todo o mês. Os leitores tinham, obviamente, que estar registados, o que se podia fazer sem qualquer custo junto do funcionário e mês a mês tinham que devolver os livros para poderem levantar outros tantos.




 A Biblioteca Itinerante, da Fundação Calouste Gulbenkian durante muitos anos percorreu o país de lés-a-lés, especialmente em aldeias onde o acesso aos livros e à leitura era inexistente, como era o caso da nossa freguesia de Guisande.
Não pretendo aqui fazer a história deste fantástico serviço, até porque há locais onde isso já é feito e pela Internet não faltam referências ao mesmo, mas apenas referir que o serviço foi criado pelo administrador da Fundação, Branquinho da Fonseca, em 1958.  Na nossa freguesia de Guisande a Biblioteca começou a aparecer no início dos anos 70 e creio que terá deixado de aparecer por meados dos anos 80. Sei também que oficialmente o serviço durou de 1958 (com 15 carrinhas) a 2002. Durante esse período adquiriu cerca de cinco milhões de livros (de todos os géneros) e fez 97 milhões de empréstimos. Os serviços foram então entregues às autarquias que serviam.


Quanto à carrinha de modelo esquisito, sei agora  que correspondia ao modelo Citroen HY (fabricado entre os anos de 1947 a 1981), que só por si irradiava uma magia fascinante. A que vinha ao largo de Casaldaça era de cor verde-velho. Tinha duas portas na parte traseira que se abriam de par-em-par e uma parte superior que abria para cima, para dar acesso ao fantástico mundo dos livros, da leitura e do fascínio das histórias e das imagens. Essa aura de reino maravilhoso era reforçado pelo tipo de leitura dos primeiros anos, onde preferencialmente eu escolhia livros de contos de fadas, repletos de reinos, reis, rainhas, princesas, gigantes, anões, fadas, feiticeiras e todo o resto da família de seres que povoam o imaginário infantil.
Aos poucos fui deixando as histórias infantis e mergulhei em livros sobre a fauna e flora, repletos de ilustrações maravilhosas e muitos outros livros sobre a terra, a história, as artes e as ciências. Recordo ainda que aguardava-mos pelo dia da visita da Biblioteca Itinerante com justificada impaciência. Todos queriam ser os primeiros a ser atendidos para melhor escolher.
Lembro-me que eram dois os senhores que acompanhavam a Biblioteca, sendo um o motorista e o outro o encarregado ou revisor, o que anotava as devoluções e as requisições. Já não tenho a certeza quanto ao número de livros que se podia requisitar, mas creio que eram cinco ou seis.

Também recordo os momentos angustiantes quando tinha que devolver os livros danificados pela ira maternal, arreliada por, perdido na leitura, eu não cumprir os deveres da escola e da casa. Nessas alturas não havia outro remédio senão tratar dos ferimentos às páginas rasgadas colando-as com cola e com fita adesiva, daquela clássica, e dissimular o melhor possível os livros feridos entre os resistentes. Claro que o revisor dava por ela mas fazia vista grossa pois a devolução de livros danificados devia ser norma nas aldeias, resultado da luta dos pais, alguns analfabetos e pouco dados à leitura, preocupados apenas com a mão-de-obra da pequenada e o cumprimento das suas responsabilidades. A leitura e o tempo com ela despendido  era considerada  pura malandrice pelo que os culpados, os livros, eram mal vistos e pior tratados. Castigava-se assim, de uma assentada, o leitor e os livros.

Hoje, felizmente, há livros por todo o lado e qualquer concelho ou freguesia já dispõem de boas bibliotecas, como o caso da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira onde é possível requisitar livros para leitura domiciliária.
O livro, apesar de relativamente caro, está bastante disseminado e tornou-se vulgar na casa dos portugueses e a pequenada desde cedo habitua-se a receber bons livros como prendas de aniversário, Natal, Páscoa e noutras ocasiões ordinárias.
 
Por tudo isto, toda a malta da minha geração tem uma profunda memória e admiração pelo serviço da Biblioteca Itinerante, já que graças a ele viajámos no tempo  por reinos maravilhosos, com histórias fascinantes e aprendemos coisas do mundo que nos rodeia. Enfim, crescemos ajudados por tudo quanto aprendemos através dos livros que num momento mágico chegavam ao largo da aldeia naquelas carrinhas maravilhosas.