5 de setembro de 2022

A vida em papelada



Quando temos algum tempo livre, mesmo que já no queimar dos últimos cartuchos de uma pausa no trabalho, designado por muitos, de férias, há a tentação de deitar mãos à obra e mexer em velhas papeladas, dando o devido destaque a umas, organizando outras e queimando outras mais. 

Com esta minha velha mania de guardar caixas e embalagens e outros papéis (e ainda bem, porque à conta disso tenho cadernetas de cromos dos anos 70 a valerem 500 e mais euros, e cromos a valerem 5 euros por unidade), às tantas damos de caras com a box do telemóvel Nokia 6600, da máquina fotográfica Sony DSC-P71, do CD da Sapo ADSL, de uma colecção do “Bits & Bytes” – suplemento do Jornal de Notícias, da colecção da revista PC Guia dos anos 90,  revistas dos anos 70, como a Tele Semana e a Crónica Feminina, etc, etc, coisas e tecnologias que ainda há duas ou três dezenas de anos eram a cereja no topo do bolo e que hoje nos parecem as velhas mocas dos homens das cavernas.

As coisas são como são. Nem sempre é saudável mexer no estrume com que plantamos e fizemos crescer as nossas vivências e convivências, mas verdade se diga, tudo o que somos hoje, para o bem e para o mal, somos o fruto dessas árvores.

E posto isto nestes termos, porque guardados, damos de cara com os cadernos diários dos primeiros tempos de escola dos nossos filhos, e dos seus desenhos inocentes, e percebemos que, como num flash, passaram vinte anos, duas décadas. 

E o lugar comum de que "ainda parece que foi ontem" torna-se mesmo realidade.

Ficamos assim atados nesta dicotomia do que é mais certo, se o guardar tudo aquilo que um dia nos vem dar um murro no estômago sobre a saudade do reviver em imagens o tempo passado se, pelo contrário, queimar tudo na primeira oportunidade e com isso fazer das memórias e testemunhos apenas cinza que o vento leva.

Tem que se lhe diga. E se há gente que queima os vestígios do seu passado sem o mínimo de esmorecimento, já outros, como eu, teimam em guardar tudo o que um dia nos possa abrir a janela do passado, mesmo que isso nos possa fazer chorar. Se de dor ou de saudade, ou de vergonha, isso pouco importa.

Mas, verdade se diga, com tanto já vivido e incerto quanto ao que virá,  pouco importa mudar agora a agulha como num velho gira-discos. O sulco já é demasiado profundo.