30 de outubro de 2022

Os Manuéis da vida como ela é


Não é novidade. Num qualquer hospital e numa qualquer das suas enfermarias, mesmo no serviço de urgências, há vizinhanças que se estabelecem nas longas horas ali passadas. Uns mesmo mais novos, outros de idade parecida, outros ainda mais velhos parecendo mais novos ou mesmo mais novos parecendo mais velhos. É o que é!

Assim, ali ao meu lado direito, numa maca, alguém deitado, coberto pelo lençol, talvez para se proteger das luzes fortes no tecto, do ar condicionado, daquela algazarra de gente a gemer, a pedir ajuda, ou mesmo do emaranhado sonoro das gargalhadas do pessoal, porque nestas coisas não leva a lado algum ambientes carregados de tristeza, angústia e dor. Para isso lá estão os doentes.

Mas esse vizinho de circunstância estava ali, imóvel, a ponto de nem saber se morto se vivo ou se morto vivo. Entretanto, descobri que estava vivo, porque à solicitação cordial da enfermeira para colher sangue para análises, reagiu grosseiramente: - Outra vez! Já estou farto de ser picado! Porra! É demais!

- Mas, ó Sr. Manuel, tem que ser! Você não quer ser tratado? Você é que desmaiou, não fui eu! - rematou a enfermeira para o conformar e chamar à razão.

- Tá bem, tá bem! Tire lá o sangue! - anuiu vencido pela razão.

Pouco depois relatava a sua situação: Tinha 83 anos, era de Milheirós de Poiares e vivia ali pela Feira. Andara pela Guiné, logo desde o início de uma guerra onde pretos e brancos se matavam sem dó nem piedade, por razões e motivos que não entendiam mas que a mando de alguém e de um eufemismo chamado dever, assim o determinavam.

- Não morri na guerra, escapei a minas e armadilhas, a balas a zoar nos ouvidos e agora estou aqui derrotado, pronto para ir! Mas já pouco me importa! A minha boa esposa já foi há dez anos! Era uma santa! - Disse numa voz lamentosa. - Casamos antes três meses de ir para a guerra e um sacana de um vizinho que a desejava, andava sempre a moer-lhe a paciência a dizer que era melhor juntar-se a ele, porque eu, na guerra, não sairia de lá vivo. - Continuou a desfiar o rosário das suas memórias. - Era o filho do merceeiro local onde o carteiro ali depositava as cartas de todo o lugar e o “filho-da-puta” desviava todas  cartas que eu escrevia semanalmente, para convencer a minha mulher a desanimar e a dar-me mesmo como perdido e dela desinteressado. - Contou e continuou. - Mais tarde, a mãe dele descobriu a sua tramoia e obrigou-o a devolver as cartas. A minha mulher, que nunca perdera a esperança, recebeu um monte delas e levou uma semana para as ler.

Entretanto desligou o disco dessas memórias passadas e voltou-se para as do presente. Estava ali naquela situação porque, sem saber como nem porquê, começara a desmaiar como se alguém com um comando à distância o desligasse. Caiu, pois, na rua onde caminhava, desamparado, como morto, e torcera o pé, rachara a cabeça e outras amolgadelas menores. Dois ou três dias depois de deixar o hospital, onde passara duas intermináveis noites sem dormir, voltou a acontecer-lhe o mesmo, desta feita na casa-de-banho. Não sabia o que lhe estava a acontecer e receava o pior, pois os desmaios não davam qualquer aviso que lhe dessem tempo a prevenir-se e a preparar a pista de aterragem para o avião descontrolado. 

A história foi longa e os lamentos angustiantes, mas de facto pareceu-me uma situação extremamente perigosa. 

Entretanto, já quase todo examinado, fui deslocado para outra enfermaria mais confortável e ali ficou o Sr. Manuel, não sei das quantas, entregue à sua sorte ou falta dela. Nem tive tempo de me despedir e de lhe desejar as melhoras porque novamente debaixo do lençol procurava esconder-se da sua situação ou mesmo de si próprio.

De facto o que não faltam nos hospitais são estes senhores Manuéis, frutos de uma geração com histórias de vida, invariavelmente duras e reportadas a tempos difíceis, como se todas as suas existências tenham sido uma múltipla condenação, em que todas as fases das suas vidas, infância, adolescência, juventude, idade adulta e velhice não fossem mais que um ramalhete de muitos espinhos e poucas flores.

A vida é assim mesmo. Felizmente para as novas gerações, mesmo com as dificuldades próprias dos tempos modernos, jamais experimentarão as dificuldades e agruras dessas anteriores gerações. Ainda bem, mas bastará isso para que todos os senhores Manuéis deste país, enquanto por cá andarem, mereçam ser tratados com todo carinho e atenção  possíveis. Que mais não seja, é o mínimo que merecem e têm direito, em nome da dignidade, justiça e gratidão. 

As melhoras, Sr. Manuel, mesmo que, inevitavelmente, o botão do desligar um dia deste, mais cedo ou mais tarde, seja accionado pela última vez! 

[foto: JN]