1 de novembro de 2022

O comboio do tempo - A Estação dos Sessenta

Tinha eu embarcado na Estação dos Cinquenta, com ar de decidido, ainda alegre, bem disposto e fresco, já esquecido que a Estação dos Quarenta ficara para trás.

Mal o comboio do tempo deu sinal de partida, abri a janela da carruagem, respirei fundo, e naqueles primeiros metros de viagem  a Estação dos Sessenta parecia-me ainda bem distante e dei comigo a pensar que seria um percurso para saborear calmamente em cada curva da linha. Faltaria ainda muito caminho a galgar e carril a romper.

Mas agora, depois de várias paragens em outros tantos apeadeiros, com o olhar a comer planícies, montes e vales, cheguei finalmente à Estação dos Sessenta. E a viagem já passada pareceu-me agora  tão curta como uma noite bem dormida.

À chegada do comboio, que se deteve vagarosamente entre uma nuvem de vapor arrotada pela locomotiva negra e cansada, o chefe da Estação dos Sessenta anunciou cerimoniosamente com a sua voz forte e pausada: - Deu entrada na Linha 1 o comboio do tempo, proveniente da Estação dos Cinquenta. Os passageiros que se dirigem para a Estação dos Setenta é favor prepararem-se. O comboio vai parar em todos os apeadeiros. Gozem a viagem enquanto puderem porque nem todos lá chegarão!

O comboio apitou num lamento longo e todos os passageiros, mesmo os que tinham ido fazer xi-xi, apressaram-se a retomar os seus lugares porque não lhes era permitido ficar por ali suspensos no tempo. O fogueiro abriu as válvulas da caldeira e a pesada locomotiva envolta em fumarada começou a engolir metros daquele par de linhas de aço tão próximas quanto separadas.

A recomendação do chefe da estação tinha esmorecido o já reduzido entusiasmo dos viajantes. Não era necessária. Afinal, todos sabiam que entre as estações principais de um comboio, até mesmo este especial,  o do tempo, há sempre passageiros que ficam pelos apeadeiros intermédios e serão menos os que chegarão à Estação dos Setenta, prontos a seguirem viagem até à estação seguinte.

Seja como for, chegado aqui, que remédio senão embarcar. É que não há outro transporte alternativo nem algum que faça a viagem em sentido contrário. É contra as leis do Senhor do Tempo, dos seus comboios, locomotivas e carruagens.

Parto, pois, na expectativa de entretanto poder chegar ao primeiro apeadeiro e depois ao seguinte e por aí fora até que se possa avistar e atingir a Estação dos Setenta. Há quem diga que fica a longa distância mas outros auguram que é já ali ao virar da curva.

A vantagem, é que a partir destas estações  avançadas, há menos passageiros e há lugares de sobra nas poucas carruagens. Todavia, dizem que os carris que a ela conduzem são mais estreitos e irregulares e que são frequentes os descarrilamentos antes da chegada à estação seguinte.

Não há nada a fazer. Apenas embarcar e seguir em frente na linha. Dos apeadeiros e as estações que faltam percorrer a cada passageiro do velho comboio, só o Senhor do Tempo o saberá. Alguns chegarão concerteza à Estação dos Setenta, talvez menos à dos Oitenta, menos ainda à dos Noventa e seguramente já poucos à dos Cem. 

Dizem que para lá da Estação dos Cem, talvez nem haja estações, quando muito dois ou três apeadeiros. Poucos o sabem. Todavia, em boa verdade, talvez já nem interesse saber, porque com tantos quilómetros já percorridos, com passagens por apeadeiros e estações, os passageiros deste comboio do tempo vão ficando cansados, amassados dos ossos e com os olhos já turvos de ver as paisagens a fugir-lhes. Talvez seja mesmo preferível fechar os olhos e tentar dormir no embalo daquele torpor constante do comboio a rolar no aço frio e a velha locomotiva a gemer, a gemer, a gemer.

Quem, sabe, talvez o fim da linha, o final da viagem seja numa esplendorosa e imensa estação forrada de  brancas e fofas nuvens, e o seu chefe seja o S. Pedro, a colher-nos numa voz suave e murmurada por entre uma espessa barba da cor das neves: - Senhores passageiros do comboio do tempo, chegaram à Estação do Tempo Final. Terminou a vossa viagem! O Grande Senhor do Tempo espera-vos para vos dar as boas vindas com um chazinho quente e bolachinhas celestiais! Façam bom e eterno proveito!