28 de novembro de 2023

A última fornada

Quando passava na sua motorizada a caminho do trabalho e horas mais tarde no regresso, pelo ron-ron do motor sabia o lugar das horas certas, porque era pontual o Ti Alexandrino no compromisso diário do seu trabalho de padeiro. Assim foi durante muitos anos, a amassar farinhas e a cozer pão, do mais branco, fino e macio até ao mais moreno, rude e denso, na forma de pães, moletes, sêmeas, cacetes e broas, tudo passava pelas mão do velho padeiro. 

Um dia, porque os anos fazem-se deles, lá chegou à idade da reforma e apesar dos pedidos do patrão, nem mais uma hora dedicou à casa e à arte. Foi mesmo a última fornada. Veio para casa e passadas semanas já se desprendera da farinha nas roupas e calçado e daquela vida a trabalhar de noite e a dormir de dia. A velha motorizada ou o pequeno carro ficaram meio encostados na garagem e rararamente saíam à rua. A sua nova rotina emparelhou certeira com a de alguns velhos amigos, como o Lúcio e o Manel Couveiro, na conversa fiada sobre o tempo, o futebol e a política na tasca do Rezingão, jogando, ou assistindo como preferia, a umas cartadas, "sueca" ou "copas", até um dominó, e entre uma cevada servida a escaldar e um copo de branco com açúcar, os dias passavam agora mais rápidos que as noites na padaria.

Passaram os dias, semanas, meses e anos, esse rosário de contas contadas, e num instante, com as memórias de padeiro já enevodas pela farinha do tempo, até a tasca deixou de ser ocupação das horas mortas. O corpo, talvez ressentido desse viver ao contrário durante meia vida, derretido pelo calor dos fornos, começou a murchar mais depressa que uma planta sem água num vaso esquecido, os ossos a rangerem de cima a baixo e as pernas a amolecerem, trôpegas como as do Ti Belmiro ao saír da tasca com uma copadas a mais da conta. Resignado, o Ti Alexandrino passa agora os dias por casa, na companhia da patroa e dos gatos. Tem duas ou três cadeiras nos cantinhos da varanda onde passa horas, ao quentinho do sol quando faz frio ou à sombra quando faz calor. Se chove, dentro de casa à lareira ou na sala a ver Gouchas e coxas. Da aldeia, sem as idas à tasca e à missa, apenas vai vendo e acenando aos que lhe passam à porta.

Nunca teve grandes ambições e destas não houve lugar a ilusões. Fez uma casinha quanto lhe bastasse, criou bons filhos e filhas e no resto, padeiro. Tudo nos conformes como tem que ser a vida: nascer, fazer casa, constituir família, deixar sementes, trabalhar, envelhecer e morrer. Não se preocupa com o dia de ir prestar contas ao Criador, porque as teve sempre claras, sem grandes aritméticas, mas pede-lhe, pelo menos, que o não faça acabar o seu tempo numa cama prostrado como um inútil, dependente do mais básico num animal, mesmo que humano, o beber, comer, urinar e cagar. 

Gostaria de morrer ali sentado no cadeirão no cantinho da casa virado a sul, aquecido pelo morno sol de Outono. Ouvira de alguém ou lera em livro que "feliz é o homem que morre quente e calçado". Por ele poderia ser mesmo assim e pouco lhe importa se já hoje ou amanhã. Mas quando Deus quiser!