Era pequena a aldeia de Guidães e quem se pusesse bem no coruto do seu mais alto monte abraçava-a de lés-a-lés a com o olhar. Ao fundo, a serpentear o vale, a ribeira generosa de águas a regar pelo pé os densos milheirais e a fazer rodar as mós dos moinhos do Quintas e da Cesteira. Mais ao lado, por onde o sol se esgueira ao fim de todas as tardes, lá estava a igreja matriz, branquinha como um ovo, com o sino velho a cantarolar o meio-dia. Olha ainda a esguia ponte do Padrão, o cruzeiro dos Três-Caminhos, a ermida de Nossa Senhora do Desterro pousada numa das duas colinas do Outeiro Grande, estas dois seios revestidos de castanheiros e carvalhos alvarinhos.
Era, pois, maneirinha a aldeia e não surpreeende que toda aquela gente que ali nascia, crescia e fazia pela vida até à hora de se entregar ao Criador, se conhecessem mutuamente como se fossem da mesma família. Mas isto, claro, entre os mais velhos, porque para a criançada, mesmo que pequeno aquele mundo rodeado de soutos e pinhais, era um constante segredo a desvendar, como o descobrir de um ninho de melro entre as espadas de um fiteirão ou de uma carriça no buraco de um muro.
Era assim também para o Custodinho, que quando calhava acompanhar a bisavô Dina em visita à filha ao lugar da Azenha, mesmo à saída de Guidães, parecia-lhe que pelos seus passos pequeninos, andava a dar a volta ao mundo, tanta era gente, coisas e sítios que nunca conhecera nem por onde passara. Por conseguinte, para além do caminho diário para a escola no lugar da Torre e das frequentes idas à igreja para a catequese, terço e missas, o mundo do Custodinho era o seu lugar, o seu casario, os seus caminhos, os matos e campos próximos. Esses conhecia-os como as suas mãos e os pés quase sempre descalços encresparam-se a percorrê-los todos os santos dias, até mesmo aos domingos nas suas brincadeiras com os da sua igualha do lugar. Conhecia, por isso, toda a gente do lugarejo, desde os mais novos aos mais velhos, que saudava pelo próprio nome quando com eles se cruzava. - Bom dia Ti Laura, dê-me a sua benção! - Boa noite Ti Alfredo! - Bom dia! Boa noite, Deus te abençoe Custodinho! Vai com Deus, rapaz!
Muito do seu pouco tempo livre, do que sobrava da escola, dos deveres e dos trabalhos da casa, matava-o o Custodinho com os filhos da Ti Arminda, o Alberto, um pouco velho que ele, já saído da escola e com os pés fora da catequese porque com a comunhão solene já feita, e ainda o Tonito, mais ou menos da sua idade, colega de escola e de carteira.
Viviam os dois irmãos com a mãe, mulher alta e magra, de rosto triste, enfaixada numa roupa negra como a noite. Moravam os três numa casita térrea, com uma pequena meia cave escura e húmida, voltada para as traseiras, onde morava uma salgadeira que a bem dizer poucos porcos salgou mas que pelo Inverno acomodava uma caixa de sardinhas que ao jantar compunham duas batatas envoltas em couves. Mas se o casebre era pequeno e escuro, era amplo e airoso o quintal em toda a volta, disposto em várias e estreitas leiras desniveladas entre si, repletas de muitas e boas árvores de fruto. Macieiras, pereiras, ameixoeiras, pessegueiros, laranjeiras, tangerineiras, etc, etc. Até uma enorme nogueira brava e um imponente castanheiro que lá pelo fim do Outono abria-se à fartura, com ouriços arreganhados a mostrarem dentes sadios e brilhantes. Até mesmo os muros e cômoros daquelas leiras eram generosos, com morangueiras e amoreiras entre os quais, logo por meados da Primavera, cantavam grilos à porta dos seus buraquinhos.
O Custodinho, naquela amizade e companhia frequente com os dois filhos da Ti Arminda, tinha naquela casa e naquela horta toda a generosidade da natureza e apenas com uma maçã de Santa Isabel, enchia a pança e só com vontade de guloso é que amanhava o condeito que a mãe lhe punha no prato ao jantar Mesmo na casa, em tempos em que a televisão só na tasca do Quim da Lebre, tinham os dois irmãos muitos livros, incluindo de banda desenhada, que lhes eram oferecidos de vez em quando, diziam, por um primo mais riquito, que vivia para os lados da Cruz Velha, a meia dúzia de léguas dali.
Devorava, pois, o Custódio, todas aqueles aventuras de ver e ler e só saía dali quando ouvia no largo a mãe a barregar pelo seu nome que lhe soava ao habitual “põe-te já em casa!”. Mas imbuído daquele manancial de índios e cow-boys, sempre que tinham tempo ao Domingo à tarde, lá improvisavam um “filme” a condizer como se aqueles matos e pinhais do lugar fossem um far-west. Outras vezes, eram “filmes” de espada e arcos de setas, à laia do Robin dos Bosques, em que o mato da Touça era a Sherwodd e o barracão do Ti Miguel o castelo de Nottingham, ou então os Três Mosqueteiros com lençóis a fazerem de capas.
Vivia, pois, naquela amizade sadia o Custodinho com os filhos da Ti Arminda e em tudo tão absorvido que não dera conta que nunca lhe vira o marido. Mas um dia, à noitinha, comido o condeito e acabado de rezar o terço, ouviu a mãe a falar com o pai e reteve esta conversa: - Ó Manel, então é verdade que o homem da Ti Arminda já saíu da prisão? - Disse-me a São do Lano, que já o viu um destes dias a entrar na casa dela, mas que sai antes de acordarem as galinhas e volta noite cerrada para que ninguém o veja.
O Custodinho ficou aparvalhado com esta novidade e não a entendeu logo mas no dia seguinte, nascido o sol, pôs-se em casa da Ti Arminda e meio em segredo perguntou colado às orelhas dos irmãos: - Vocês têm pai? Eu nunca o vi! Os irmãos olharam-se tristonhos e numa lição recomendada disseram que a mãe não queria que eles falassem no pai. - Mas onde é que ele mora? - perguntou o Custódio. Que não sabiam e que nunca o viram nem queriam ver.
Os dias passaram e no lugar não se falava noutra coisa até porque entretanto o homem, que ninguém conhecia, começou a acordar mais tarde e a vir para casa mais cedo, agarrado a uma bicicleta, que nunca o viram montar e em breve toda a aldeia era um mexerico, do lavadouro do Cimo da Aldeia até ao fundo do lugar dos Lameiros.
Receoso de dar de cara com alguém que esteve numa cadeia, deixou o Custodinho de procurar os amigos. Certo é que passadas algumas poucas semanas, ainda antes do Natal, chegou-se à casita mas encontrou-a fechada. Ó Tonito! Ó Beto! Ainda rondou do lado de fora o quintal voltado ao lugar mas não viu sinais de ninguém nem mesmo quando a rondou pelas traseiras do lado norte. Até o cão, o Jani, que sempre que o farejava lhe vinha lamber as pernas, não deu de si, nem xús nem mús. Ficou admirado e sem compreender, mas no dia seguinte ouviu o lugar a comentar que a Ti Arminda e os filhos tinham saído da casa, que era de renda, e que nudaram não se sabe para onde. Talvez para a beira de uma irmã que tinha a Arminda em Duas Igrejas, outros que para mais longe, para a terra do homem, que os levou.
O Custodinho naturalmente ficou por esses tempos triste e encabucado, já sem a habituada companhia dos irmãos e dos seus livros de aventuras e sem a fartura do quintal. Entretanto, nesse abandono repentino, não tardou que a casa entrasse em ruína e a horta apossada por silvas e tojo e, à falta de cuidado, a morrerem as árvores e os já minguados frutos eram assaltados pela criançada ainda antes do tempo de maduros. Mais tarde o terreno foi vendido ao Zé da Aurora e tudo arrasado para dar lugar a uma casa tipo franciú. Da velha casa e do quintal, hoje já só a memória mas até ela deslavada pelo tempo.
Os anos passaram e o Custódio, já homem e pai de filhos, continuando a viver no lugar, em rigor pouco descobriu do paradeiro daquela santa trindade que fez parte da sua infãncia. Foi, de quando em vez, ouvindo uns zuns zuns de que o Alberto estava a viver longe dali, numa certa terra, mas que bem de vida pois tinha uma oficina automóvel. O Tonito, um pouco mais lerdo, esse seguiu os estudos da nobre arte de pedreiro e trolha e ía andando. A Ti Arminda, que já em criança lhe parecia velha, teria naturalmente morrido, mas não antes sem ter dado mais um irmão ao Alberto e ao António, que o ex-prisioneiro não perdeu tempo a engendrar. Quanto a ele, de tão habituado daquela vida de prisão, que ninguém sabe ao certo por quantos anos, parece que logo depois da mudança e de fazer um filho à triste da Arminda, voltou a pôr a mão no alheio e regressou para trás das grades. Terá, naturalmente, já alcançado a liberdade plena que a morte a todos concede.
Hoje em dia, quando não lhe vem o sono, põe-se a recordar o Custódio naqueles tempos e dias e nos muitos episódios felizes vividos com os seus amigos. Se pela infância não via a Ti Arminda para além de uma mãe tristonha mas zelosa dos filhos, percebe agora que essa negrura do rosto e da roupa tinham uma semente, uma razão de ser bem mais profunda, e se nessa altura lhe parecia obscura ou não a compreendia, era agora clara e límpida.
A vida é assim e nem sempre os nossos puros olhos de criança veem para além da penumbra das coisas alegres e felizes. Talvez por isso, percebe agora o Custódio, nunca viu naqueles dois olhos uma centelha de brilho e de alegria, nem mesmo nos momentos em que nas brincadeiras, à sua vista, ria e cantava com os seus dois filhos. Nem mesmo nos dias em que o lugar ou a aldeia estavam em festa e estourava-se em foguetes.
Que descanse em paz a Ti Arminda e que o Alberto e o António, mais o irmão serôdio, fruto da liberdade, se vivos, que hão-de ser, que sejam felizes e orgulhem-se da mãe, que sozinha os criou e os manteve naquela ilusão inocente de que o pai ausente não fazia falta porque ela era mãe mas também pai. Uma santa trindade materna. Mãe e filhos de espíritos santos.