11 de fevereiro de 2024

Tio Neca - O simbolismo da partida

 


É meu tio, mas podia ser pai ou tio de qualquer um. A partida definitiva de alguém que tem nos seus ombros  e no seu nome o epíteto de "homem mais velho da freguesia", é e deve ser fortemente simbólica para a freguesia, para a comunidade. Afinal, de quantos compõem a comunidade, do mais velho ao mais novo bebé, todos nasceram depois dele. Por outro lado, de todos quantos nasceram antes e que conheceu, todos partiram à sua frente. Tem que haver nisto um simbolismo forte.

O tio Neca era um homem comum. Inteligente, bem disposto, de gargalhada fácil, e com boa memória até quase aos 100, capaz de recitar de cor longas lengalengas e leituras que aprendeu na escola e na tropa, e que desde que me conheço como seu sobrinho, sempre disponível para brincadeiras, nas malhas ou nas cartas. Não foi homem de grandes feitos ou aventuras. Pelo contrário, desde logo pela sua condição de solteiro, viveu sempre relativamente despreocupado, pacatamente tanto quanto possível, num dia-a-dia sem trabalho de horários e patrões, de criar e educar filhos e aturar ou ser aturado por esposa. Chegou a explorar a mercearia que na casa havia sido do pai, ali pela década de 1950, mas em tempo difícil em que o livro dos calotes andava sempre com as contas em débito, acabou por fechar. 

Ia vivendo dos rendimentos e da venda de uma boa parte do património que herdou dos pais e de muita poupança, inicialmente até em exagero, descontando para a Casa do Povo que lhe assegurou a reforma, mesmo que nos tempos no Lar já não cobrisse as despesas. 

Por si nunca foi homem de gastos, grandes ou pequenos, e não fossem os mais chegados da casa a pô-lo nos carris da normalidade, vestia sempre a mesma roupa e comia o que feito de véspera. Era apesar disso esquisito na comida e nem qualquer coisa o alegrava e com saudade e água na boca recordava amiúde a fartura na cozinha e mesa da casa dos pais, sempre abundante de broa saída a cada semana do grande forno, capoeiras cheias, salgadeiras fartas e panelas de três pernas sempre a fumegar na larga lareira com carnes de porcos de largas arrobas. 

A minha mãe e sua cunhada Eugénia compreendia-lhe os gostos e com frequência, para o desougar, preparava-lhe umas iguarias ainda com os sabores e aromas dos tempos antigos, no que se consolava mas com medida bastante porque a sua idade já não se compatibilizava com salgados e fumeiros. Para ele, ao contrário de qualquer judeu, carne de porco era sagrada, se possível salgada e fumada. Sopa, à lavrador e com muita substância, muito entulho, como dizia. Mas sim, era muito esquisito o que arreliava quem tinha a função de lhe por a comida na mesa. Por essa dificuldade em cozinhar aos seus gostos e escapar dos seus reparos, durante os últimos anos as refeições vinham da cantina do Centro Social de Lobão, mas raramente comia sem torcer o nariz e fazer cara feia à comida que classificava de branquita e desconsolada. Do muito que sobrava fartavam-se os cães e gatos.

É certo que quando vivia na companhia da sua irmã Celeste, portas meias com a de meus pais, tinha os seus momentos de alguma inquietação e mesmo arrelias, porque vivia nessa estranha condição em que lhe era simultaneamente irmão, filho ou mesmo uma espécie de marido no que tocava a orientar a casa e das necessidades do dia-a-dia. Tratava dos campos, das hortas, das podas, das regas, de algum gado, a lenha para a lareira, etc, etc. 

Mas apesar dessas singularidades de cão e gato, próprias de qualquer família, que iam das arrelias comuns, das zangas às rezas, era senhor do seu destino e por isso nunca se "matou" de trabalho. De resto, a morte na sua fatal tarefa só o procurou  agora, bem tarde, uns meses depois de ter soprado as velas do bolo do centésimo aniversário. 

Depois da partida da sua irmã acabou por ter que deixar, com natural tristeza, a parte da casa que durante muitos anos partilhou e teve como sua, mas encontrou abrigo na mesma casa, na parte de meus pais e amparado e cuidado pela minha mãe e sobretudo pelo seu sobrinho Adérito, em larga medida que  lhe foi como um filho, ali esteve independente, à sua vontade, uns bons anos até que já em tempo de pandemia e depois de um episódio que o levou de urgência ao hospital, acabou por ser encaminhado pelos serviços para o lar Hospital da Santa Casa da Misericórdia em Arouca onde esteve durante quase três anos, bem acompanhado, cuidado e com visitas regulares. Pode-se dizer que nada lhe faltou também pela sua condição de saúde sem grandes problemas e esteve sempre relativamente bem, apenas com alguma perda de mobilidade o que se compreende com a idade avançada.

A caminho dos 101 anos acabou por encontrar o seu destino. Uma infecção respiratória, que tem levado muita gente, até a um nada habitual excesso de mortalidade face à média, mas a verdade é que também foi. Estava, apesar de tudo, já a melhorar, mas foi, até com alguma surpresa dos médicos e cuidadores.

Está, pois, no lugar que acreditava que estaria, ao lado dos seus, dos avôs, dos pais e de quase todos os irmãos, ficando ainda a mais nova, a Laurinda, mas também esta já a caminho dos 100, bem cuidada pelas filhas mas já privada da memória e do conhecimento.

A vida é assim e a partida é uma fatalidade que a todos chega, em diferentes tempos e modos mas como diz o povo na sua sabedoria milenar, e de resto óbvia, "quem de novo não vai, de velho não escapa".

No resto, foi-se esse simbolismo do mais velho de todos e alguém certamente fica no seu lugar e será sempre assim nesta roda da vida no seu movimento perpétuo. Vai a sepultar na próxima Quarta-Feira, dia de cinzas, no que aumenta o simbolismo e significado da nossa condição de pó que como tal à terra há-de voltar.

Que Deus o tenha em descanso eterno e em paz!