7 de agosto de 2023

O Sr. Manuel Alves que também é senhor Neca





Isto de falar dos outros, tanto mais quando ainda são vivinhos da silva, tem que se lhe diga, porque quem o faz corre o risco de ser injusto ou então excessivamente simpático, o que alguns dirão de lambe-botas. Mas assumo o risco e o que a seguir escreverei resulta apenas da minha percepção e experiência pessoais ao longo de muitos contactos e testemunhos, mais privados ou circunstanciais. E mais do que isso, com sinceridade, porque sem obrigação ou propósito de qualquer outra natureza.

Estou a falar do Sr. Manuel Alves, ainda entre nós apesar da sua já linda e avançada idade. A caminho dos 91 anos já que nasceu a 21 de Agosto de 1932. Uma pessoa quando é muito conhecida, pode ter vários nomes e o Sr. Manuel Alves é tratado de diferentes formas, como apenas Sr. Alves, Sr. Neca ou ainda por Nequita. Ainda Nequita do Viso ou Neca da Loja, por herança dos tempos em que em Casaldaça tinha uma mercearia e tasca. Ainda, não raras vezes, como o Neca da Tina, como é típico dos portugueses relacionar o nome do homem ao da esposa ou vice-versa.

Pessoalmente trato-o por Sr. Neca. Conheço-o desde que ainda criançola descia várias vezes do Viso a Casaldaça à mercearia da Sr.a Amélia. Nunca foram os meus pais clientes da farta mercearia do Sr. Neca, mas mesmo assim era frequentada por mim, porque que mais não fosse para comprar alguma coisa que no momento estivesse em falta na mercearia ao lado. Além do mais, mesmo já em adolescente, muitas vezes aos domingos à tarde alí íamos como gente grande merendar, um pirolito, umas zeitonas, amendoins ou então, quando com algum dinheiro inesperado no bolso, uma sandes de queijo. À fartazana! Também a comprar cromos da bola e dos cowbóys.

Mas, queira-se ou não, o Sr. Neca por um conjunto de razões é uma personalidade muito singular na nossa comunidade e freguesia e de algum modo um seu património ainda vivo mas que perdurará para o futuro. Como se sabe e já o disse, durante muitos anos exerceu a profissão de comerciante explorando a mercearia e tasca em Casaldaça, que a tomou das mãos da Sr.a Conceição e do Sr. Domingos "Patela",  e mais, tarde encerrada porque em edifício arrendado, mudou-se para o lugar do Viso, onde ainda vive, e ali continuou sobretudo com a afamada confecção de boa broa de milho e regueifa doce à moda de Guisande, aproveitando as mãos laboriosas e o saber da esposa de há 70 anos, a senhora Tina. Infelizmente tudo tem um fim e devido às limitações impostas pelo peso da idade, também essa actividade acabou há já alguns anos. Felizmente, no que toca à regueifa, creio que passou alguns segredos à minha prima Cilita. Mas ficam as memórias da azáfama, sobretudo em vésperas de Páscoa com o forno a parir deliciosas regueifas que gente de muito lado procurava.

Para além disso, o senhor Neca foi regedor na freguesia, no período que antecedeu o 25 de Abril de 1974, então um cargo que conferia respeito e autoridade e que a representava e no exercício do qual me contou algumas engraçadas histórias. Pano para outras futuras mangas. Foi por pouco tempo, é certo, e numa época em que os regedores já perdiam importância face à criação e proliferação pelas zonas rurais de postos da GNR, como aqui por perto em Canedo. Logo após o 25 de Abril de 1974 e assente a poeira da revolução, criadas as condições para as primeiras eleições autárquicas, o Sr. Manuel Alves fez parte como presidente da Junta de Freguesia de Guisande de 1982 a 1989, em represnetação do PSD. Mesmo depois disso, e perdidas as eleições em 1989 para o Partido Socialista, voltou a recandidatar-se mesmo que, já noutra dinâmica, não tivesse logrado a reconquista. 

Fez ainda parte da Comissão Fabriqueira e era pessoa muito considerada pelo saudoso pároco Pe. Francisco Gomes de Oliveira.

Foi autarca e presidente de Junta num período muito específico e singular, ainda num contexto muito particular e com uma forma de gerir nem sempre de forma mais escrutinada e com as contas porventura sem o rigor dos actuais tempos, de resto o que era prática em muitas pequenas autarquias, no que se dizia vulgarmente ser de contabilidade de mercearia, mas apesar disso, foi um período em que quase tudo estava por fazer e era preciso desbravar caminho. Mesmo que nem sempre da melhor forma e passível de conbtraditório, a verdade é que durante o seu período de governação fez-se muita obra, com abertura de várias ruas, como as ligações a Louredo e a Gião, que não existiam, alargamentos, pavimentações, melhoramentos vários, etc. Fez-se a sede da Junta, construiram-se os jardins de infância de Fornos e Igreja, fizeram-se obras nas escolas primárias, ampliou-se o cemitério, etc, etc.

Pessoalmente tenho a maior das considerações pela sua pessoa e pelo seu passado mesmo que em determinadas alturas, principalmente quando fazíamos parte do jornal "O Mês de Guisande" tivéssemos tido um papel de escrutínio e tantas vezes de crítica e de algum modo responsáveies pela mudança política. Mas nesse aspecto foi sempre o Sr. Neca de um grande sentido democrático e nunca tomou as coisas a peito, deixando na política o que era da política, o que nem todos foram capazes de fazer pelo que ainda subsistem alguns ódios de estimação que só servem para dividir mesmo em momentos e objectivos comunitários.

Por várias vezes convidou-me a participar em listas a eleições mas sempre recusei por mera opção de não envolvimento na política, mas revela a confiança que tinha nas minhas simples capacidades. Em algumas situações mais pessoais foi sempre de uma enorme consideração, respeito e seriedade. Por diversas vezes ofereceu-se para me ajudar em diversas situações e quando foi preciso não deixou de o fazer e apoiar.

Por conseguinte, estas simples palavras sobre o Sr. Neca, são apenas um reconhecimento pessoal do seu papel e do seu contributo de cidadania na freguesia, mesmo reconhecendo que, como eu e cada um de nós, não é perfeito e terá também e certamente os seus pecados e omissões. Obviamente que pode haver que tenha uma percepção diferente mas, como seres imperfeitos que somos pela nossa própria humanidade, todos estamos sujeitos a análises menos simpáticas e até tantes vezes injustas ou desonestas. Quem de algum modo se envolve em actos ou acções de cidadania, infelizmente e como desmotivação, acaba por merecer mais críticas do que merecimentos. Isto não é novidade e na nossa própria comunidade, apesar de bons exemplos e de muita gente reconhecedora, o que não falta é desconsiderações e em grande parte por pessoas que nunca nada fizeram. Daí a velhinha sentença de que só não erra quem nada faz. Não surpreende, por isso, que não faltem por aí artistas que nunca erraram na vida, na justa medida de que nunca nada fizeram a favor dos outros e da comunidade onde se integram.

Sendo assim, e porque felizmente ainda anda por aqui, parecem-me ser justas estas simples palavras sobre o nosso Sr. Neca. Não me levará a mal. Bem haja por tudo quanto fez.

Jornada Mundial da Juventude 2023 - O deve e o haver

Quem por estes dias foi acompanhando, lendo, ouvindo e vendo, sobretudo pela televisão (e uma palavra de parabéns pelo trabalho fantástico da RTP), o decorrer da Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa, no nosso Portugal, só pode ficar com a certeza de que globalmente tudo correu bem, superando todas as expectativas, tanto ao nível da participação como da concretização do programa.

Nada, porém, é perfeito, e o tempo que se fez sentir principalmente no Sábado e Domingo, com temperaturas elevadas, naturalmente que se reflectiu em desconforto para os largos milhares de jovens, porque para além da exigência do programa, tiveram que tentar dormir em condições difíceis e fazer longas caminhadas entre os diferentes pontos. Já depois de terminado o programa, ainda mais deslocações a pé e o enfrentar de longas esperas pelos transportes em avião, combóio e autocarros, e ainda a duração dos mesmos. Mas, enfim, nada que o coração cheio de motivação proporcionada por quem vivenciou a jornada nos diferentes locais do programa, não ajude a superar, e depois do merecido descanso, serão mais notórias e límpidas as experiências e vivências. Como me disse ontem o Pe. António Jorge ao final da tarde, "...cansadinhos mas cheios de felicidade".

Acredito que para todos os jovens e mesmo para quem apenas acompanhou pela comunicação social em geral e pela televisão de forma particular, foi um evento marcante e que por muitos anos perdurará na memória individual e colectiva.

Agora é tempo de fazer contas e balanços. Já foram sendo feitos, nomeadamente pelo Papa Francisco durante a sua conferência de imprensa em plena viagem de regresso a Roma, e com intervenções avulsas do presidente da república, primeiro ministro, membros do Governo e do clero, mas certamente que com tempo serão feitas contas e balanços mais rigorosos.

Apesar disso, e da percepção geral de que tudo correu bem, do reconhecimento internacional, do importante impacto que representa para o país como reforço do lastro económico sobretudo no sector do turismo, naturalmente que se vão levantar vozes contrárias, juntando-se a algumas que durante o evento aqui e ali foram ouvidas ou que a imprensa deu espaço, bem como outras que estrategicamente estiveram caladas mas que se farão ouvir entretanto. Dirão que  foram gastos escandalosamento 80 ou 100 milhões, quando ninguém se impressiona ou escandaliza com uma transferência de um vulgar jogador da bola por 100, 120 ou 200 milhões, que sendo dinheio dos clubes é também em larga medida dos contribuintes e do país. Mas é sempre assim e não faltou nem faltará quem pretenda misturar alhos com bogalhos e a menorizar ou mesmo ressalvar  a árvore no meio da floresta.

É claro que nestas coisas, é importante a contenção, gastar o apenas necessário e quaisquer ostentações desmusaradas e desproporcionais devem ser sempre limitadas, mas enquanto portugueses, para além de mostrarmos ao mundo que sabemos organizar grandes eventos, somos igualmente mestres a fazer disparates, como o caso dos estádios de futebol aquando do Europeu de Futebol em 2004 e que deixaram uma herança de elefantes brancos ao abandono ou utilizados esporadicamente só para não esquecermos que existem. 

No caso tão falado do palco do Campo da Graça, teria sido possível gastar muito menos. De resto os demais placos mostraram que era possível gastar menos com o mesmo efeito visual e funcional. Ainda bem que reduziram os gastos mas poderiam ter ido mais além, embora o tempo já fosse escasso para grandes alterações.

Alguns sectores também fizeram questão de continuar a mexer na ferida dos abusos sexuais, como se ela tenha sido esquecida, o que não foi, a começar pelo próprio Papa Francisco. Importa de facto não esquecer esta triste realidade e tudo fazer para quem nem um único caso fique por justiçar e reparar, ou que volte a acontecer, mas importa igualmente analisar a coisa como um todo. Infelizmente estes casos não são exclusivos da igreja católica e é horrendamente transversal a muitos sectores, como todos os dias somos confrontados pelas notícias de novos e antigos casos. 

Para além de tudo, apontamos o dedo à Igreja, quase esquecendo que os casos de pedofilia e abusos sexuais e morais acontecem tantas vezes no seio da própria família, com crianças a serem abusados por progenitores e familiares. Resulta desta ideia, de que este é um caso grave e que importa combater por todos os meios e com políticas e acções que previnam. Todavia, fazer crer que este é apenas um pecado grave da Igreja é fazê-lo de uma forma discricionária e é em si mesma uma fraca atitude. Pode-se não gostar da Igreja, dos padres, dos cristãos, dos católicos, ou seja lá do que for, mas ignorar igualmente o importante e fundamental papel da igreja no plano espiritual, mas sobretudo social, e tanta e tanta gente boa que se entrega de corpo e alma a causas e a pessoas desprotegidas e vulneráveis, é demonstrar ignorância e apenas uma premeditada repulsa facciosa. E não falta e nunca faltarão acérrimos opositores. É a lei da vida e nem sempre somos capazes de analisar as coisas de forma imparcial.

Neste contexto, a Igreja, no caso a católica, tem que, de facto, admitir e curar os seus pecados, ser mais aberta para tudo e todos e no geral acolher e passar à prática tudo quanto por estes dias foi dizendo por palavras objectivas e claras o Papa Francisco. Em muitos sectores da Igreja, nomeadamente nas células paroquiais, já muito está e vai sendo feito, mas importa ampliar porque os desafios são muitos e grandes. Não ser capaz de fazer isto é deixar para trás o combóio e, pior do que isso, é deixar a sociedade navegar sem objectivos e valores morais e humanistas que conduzam ao bem geral de todas as sociedades e povos, enfiam, da humanidade em toda a sua diversidade de raças, culturas e religiões, mesmo para quem não é crente.

É um lugar comum dizê-lo, mas de facto urge que todos os aspectos positivos decorrentes desta Jornada Mundial da Juventude não caiam em saco roto, em terra infértil, e que entretanto, pousada a poeira e caídas as canas dos foguetes, fique na memória apenas como mais um evento como se fosse apenas um qualquer festival musical, um woodsotck católico, como alguma imprensa sensacionalista o prognosticou, a mesma que escreveu que "jornadas mundiais começam com zaragata entre peregrinos num bar". 

A ver vamos se será a sociedade, no geral, capaz de vir a colher frutos deste enorme evento, católico, cristão mas sobretudo ecuménico. Naturalmente que todos esperamos que sim e creio que mesmo que daquele milhão e meio de jovens se apenas 10% for capaz de frutificar nos diferentes contextos onde se envolvam, já terá valido a pena.  

Rumo a Seul em 2027!

FV2023 - Momentos

 








6 de agosto de 2023

Festa do Viso 2023 - Momentos




















Quem se importa?

Quando um evento de entretenimento se transforma num parque de diversões a cobrar bilhete e  impede o cidadão comum de usufruir do direito constitucional à liberdade de circulação de um amplo espaço público, que é de todos, e tanto mais em zona nobre de uma vila ou cidade, não por duas ou três noites mas por duas semanas, algo está mal ou pelo menos e seguramente desproporcional. Mas há quem se entusiasme e regozije por isso e até ajude à festa. 

Não surpreende, pois, que, sendo assim numa suposta democracia, seja demasiado fácil implementar as ditaduras. A História está repleta desses guias ou manuais de como o bem fazer.

Falta-nos sentido crítico, porque em nome do políticamente correcto e porque parece bem às hordas, vamos andando, já amestrados, a toque de caixa, e tudo nos parece normal mesmo se privados de valores essenciais em nome do não sei de quê e das quantas. 

Tum, tum, ta, ta, tum, tum, tum, ta, ta, tum! - Acerta o passo, ó 21!

5 de agosto de 2023

Quando a amizade resiste ao tempo



Num bom convívio a envolver gente estranha, e até onde terá estado o Salazar, a avaliar pelo imponente Buick ali estacionado, mas certamente todos boas pessoas, para além de esgotarem o stock de barris de cerveja, mas também com gente conhecida e amiga, a alegria de reencontrar velhas amizades que o tempo e suas vicissitudes levaram para longe. 

De facto o encontro com o David Conceição, a esposa Fátima e ainda o Américo Santos (infelizmente vítima, mas a recuperar de um problema de saúde) valeram mais que a fartura de comida e bebida e das partidas de um certo Mr. Bean. 

Depois do espanto de quem se revê passada uma ausência de dezenas de anos, o retorno a velhas memórias comuns e a constatação que apesar do cinzel do senhor Tempo, esse escultor que nos molda a todos,  ficamos com a sensação que num repente tudo volta aos tempos de outros tempos, isto porque no fundo, mais velhos, mais gordos ou magros, engelhados e com menos cabelo ou este já alvo, continuamos a ser aquilo que sempre fomos, nós próprios.

4 de agosto de 2023

Santa trindade

Era pequena a aldeia de Guidães e quem se pusesse bem no coruto do seu mais alto monte  abraçava-a de lés-a-lés a com o olhar. Ao fundo, a serpentear o vale, a ribeira generosa de águas a regar pelo pé os densos milheirais e a fazer rodar as mós dos moinhos do Quintas e da Cesteira. Mais ao lado, por onde o sol se esgueira ao fim de todas as tardes, lá estava a igreja matriz, branquinha como um ovo, com o sino velho a cantarolar o meio-dia. Olha ainda a esguia ponte do Padrão, o cruzeiro dos Três-Caminhos,  a ermida de Nossa Senhora do Desterro pousada numa das duas colinas do Outeiro Grande, estas dois seios revestidos de castanheiros e carvalhos alvarinhos.

Era, pois, maneirinha a aldeia e não surpreeende que toda aquela gente que ali nascia, crescia e fazia pela vida até à hora de se entregar ao Criador, se conhecessem mutuamente como se fossem da mesma família. Mas isto, claro, entre os mais velhos, porque para a criançada, mesmo que pequeno aquele mundo rodeado de soutos e pinhais, era um constante segredo a desvendar, como o descobrir de um ninho de melro entre as espadas de um fiteirão ou de uma carriça no buraco de um muro. 

Era assim também para o Custodinho, que quando calhava acompanhar a bisavô Dina em visita à filha ao lugar da Azenha, mesmo à saída de Guidães, parecia-lhe que pelos seus passos pequeninos, andava a dar a volta ao mundo, tanta era gente, coisas e sítios que nunca conhecera nem por onde passara. Por conseguinte, para além do caminho diário para a escola no lugar da Torre e das frequentes idas à igreja para a catequese, terço e missas, o mundo do Custodinho era o seu lugar, o seu casario, os seus caminhos, os matos e campos próximos. Esses conhecia-os como as suas mãos e os pés quase sempre descalços encresparam-se a percorrê-los todos os santos dias, até mesmo aos domingos nas suas brincadeiras com os da sua igualha do lugar. Conhecia, por isso, toda a gente do lugarejo, desde os mais novos aos mais velhos, que saudava pelo próprio nome quando com eles se cruzava. - Bom dia Ti Laura, dê-me a sua benção! - Boa noite Ti Alfredo! - Bom dia! Boa noite, Deus te abençoe Custodinho! Vai com Deus, rapaz!

Muito do seu pouco tempo livre, do que sobrava da escola, dos deveres e dos trabalhos da casa, matava-o o Custodinho com os filhos da Ti Arminda, o Alberto, um pouco velho que ele, já saído da escola e com os pés fora da catequese porque com a comunhão solene já feita, e ainda o Tonito, mais ou menos da sua idade, colega de escola e de carteira.

Viviam os dois irmãos com a mãe, mulher alta e magra, de rosto triste, enfaixada numa roupa negra como a noite. Moravam os três numa casita térrea, com uma pequena meia cave escura e húmida, voltada para as traseiras, onde morava uma salgadeira que a bem dizer poucos porcos salgou mas que pelo Inverno acomodava uma caixa de sardinhas que ao jantar compunham duas batatas envoltas em couves. Mas se o casebre era pequeno e escuro, era amplo e airoso o quintal em toda a volta, disposto em várias e estreitas leiras desniveladas entre si, repletas de muitas e boas árvores de fruto. Macieiras, pereiras, ameixoeiras, pessegueiros, laranjeiras, tangerineiras, etc, etc. Até uma enorme nogueira brava e um imponente castanheiro que lá pelo fim do Outono abria-se à fartura, com ouriços arreganhados a mostrarem dentes sadios e brilhantes. Até mesmo os muros e cômoros daquelas leiras eram generosos, com morangueiras e amoreiras entre os quais, logo por meados da Primavera, cantavam grilos à porta dos seus buraquinhos.

O Custodinho, naquela amizade e companhia frequente com os dois filhos da Ti Arminda, tinha naquela casa e naquela horta toda a generosidade da natureza e apenas com uma maçã de Santa Isabel, enchia a pança e só com vontade de guloso é que amanhava o condeito que a mãe lhe punha no prato ao jantar Mesmo na casa, em tempos em que a televisão só na tasca do Quim da Lebre, tinham os dois irmãos muitos livros, incluindo de banda desenhada, que lhes eram oferecidos de vez em quando, diziam, por um primo mais riquito, que vivia para os lados da Cruz Velha, a meia dúzia de léguas dali.  

Devorava, pois, o Custódio, todas aqueles aventuras de ver e ler e só saía dali quando ouvia no largo a mãe a barregar pelo seu nome que lhe soava ao habitual “põe-te já em casa!”. Mas imbuído daquele manancial de índios e cow-boys, sempre que tinham tempo ao Domingo à tarde, lá improvisavam um “filme” a condizer como se aqueles matos e pinhais do lugar fossem um far-west. Outras vezes, eram “filmes” de espada e arcos de setas, à laia do Robin dos Bosques, em que o mato da Touça era a Sherwodd e o barracão do Ti Miguel o castelo de Nottingham, ou então os Três Mosqueteiros com lençóis a fazerem de capas.

Vivia, pois, naquela amizade sadia o Custodinho com os filhos da Ti Arminda e em tudo tão absorvido que não dera conta que nunca lhe vira o marido. Mas um dia, à noitinha, comido o condeito e acabado de rezar o terço, ouviu a mãe a falar com o pai e reteve esta conversa: - Ó Manel, então é verdade que o homem da Ti Arminda já saíu da prisão? - Disse-me a São do Lano, que já o viu um destes dias a entrar na casa dela, mas que sai antes de acordarem as galinhas e volta noite cerrada para que ninguém o veja. 

O Custodinho ficou aparvalhado com esta novidade e não a entendeu logo mas no dia seguinte, nascido o sol, pôs-se em casa da Ti Arminda e meio em segredo perguntou colado às orelhas dos irmãos: - Vocês têm pai? Eu nunca o vi! Os irmãos olharam-se tristonhos e numa lição recomendada disseram que a mãe não queria que eles falassem no pai. - Mas onde é que ele mora? - perguntou o Custódio. Que não sabiam e que nunca o viram nem queriam ver.

Os dias passaram e no lugar não se falava noutra coisa até porque entretanto o homem, que ninguém conhecia, começou a acordar mais tarde e a vir para casa mais cedo, agarrado a uma bicicleta, que nunca o viram montar e em breve toda a aldeia era um mexerico, do lavadouro do Cimo da Aldeia até ao fundo do lugar dos Lameiros.

Receoso de dar de cara com alguém que esteve numa cadeia, deixou o Custodinho de procurar os amigos. Certo é que passadas algumas poucas semanas, ainda antes do Natal, chegou-se à casita  mas encontrou-a fechada. Ó Tonito! Ó Beto! Ainda rondou do lado de fora o quintal voltado ao lugar mas não viu sinais de ninguém nem mesmo quando a rondou pelas traseiras do lado norte. Até o cão, o Jani, que sempre que o farejava lhe vinha lamber as pernas, não deu de si, nem xús nem mús. Ficou admirado e sem compreender, mas no dia seguinte ouviu o lugar a comentar que a Ti Arminda e os filhos tinham saído da casa, que era de renda, e que nudaram não se sabe para onde. Talvez para a beira de uma irmã que tinha a Arminda em Duas Igrejas, outros que para mais longe, para a terra do homem, que os levou. 

O Custodinho naturalmente ficou por esses tempos triste e encabucado, já sem a habituada companhia dos irmãos e dos seus livros de aventuras e sem a fartura do quintal. Entretanto, nesse abandono repentino, não tardou que a casa entrasse em ruína e a horta apossada por silvas e tojo e, à falta de cuidado, a morrerem as árvores e os já minguados frutos eram assaltados pela criançada ainda antes do tempo de maduros. Mais tarde o terreno foi vendido ao Zé da Aurora e tudo arrasado para dar lugar a uma casa tipo franciú. Da velha casa e do quintal, hoje já só a memória mas até ela deslavada pelo tempo.

Os anos passaram e o Custódio, já homem e pai de filhos, continuando a viver no lugar, em rigor pouco descobriu do paradeiro daquela santa trindade que fez parte da sua infãncia. Foi, de quando em vez, ouvindo uns zuns zuns de que o Alberto estava a viver longe dali, numa certa terra, mas que bem de vida pois tinha uma oficina automóvel. O Tonito, um pouco mais lerdo, esse seguiu os estudos da nobre arte de pedreiro e trolha e ía andando. A Ti Arminda, que já em criança lhe parecia velha, teria naturalmente morrido, mas não antes sem ter dado mais um irmão ao Alberto e ao António, que o ex-prisioneiro não perdeu tempo a engendrar. Quanto a ele, de tão habituado daquela vida de prisão, que ninguém sabe ao certo por quantos anos, parece que logo depois da mudança e de fazer um filho à triste da Arminda, voltou a pôr a mão no alheio e regressou para trás das grades. Terá, naturalmente, já alcançado a liberdade plena que a morte a todos concede. 

Hoje em dia, quando não lhe vem o sono, põe-se a recordar o Custódio naqueles tempos e dias e nos muitos episódios felizes vividos com os seus amigos. Se pela infância não via a Ti Arminda para além de uma mãe tristonha mas zelosa dos filhos, percebe agora que essa negrura do rosto e da roupa tinham uma semente, uma razão de ser bem mais profunda, e se nessa altura lhe parecia obscura ou não a compreendia, era agora clara e límpida.

A vida é assim e nem sempre os nossos puros olhos de criança veem para além da penumbra das coisas alegres e felizes. Talvez por isso, percebe agora o Custódio, nunca viu naqueles dois olhos uma centelha de brilho e de alegria, nem mesmo nos momentos em que nas brincadeiras, à sua vista, ria e cantava com os seus dois filhos. Nem mesmo nos dias em que o lugar ou a aldeia estavam em festa e estourava-se em foguetes.

Que descanse em paz a Ti Arminda e que o Alberto e o António, mais o irmão serôdio, fruto da liberdade, se vivos, que hão-de ser, que sejam felizes e orgulhem-se da mãe, que sozinha os criou e os manteve naquela ilusão inocente de que o pai ausente não fazia falta porque ela era mãe mas também pai. Uma santa trindade materna. Mãe e filhos de espíritos santos.