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24 de setembro de 2022

O regador mágico


Os mais novos, e por conseguinte a maioria dos que andam pelas redes sociais, não se lembram de todo, mas em meados dos anos 1970 passava na televisão uma série de humor inglesa, "O regador mágico", do original "Pardon my genie". Grosso modo era um regador que, tal como na lâmpada mágica do Aladino, continha um génio que de lá saía quando era esfregado e concedia o habitual desejo ao seu dono.

Mas este pequeno regador verde, em plástico, nada tem de mágico. A sua magia reside simplesmente no facto de, mesmo sendo pequeno, ter o tamanho certo para nele caber e brincar um pequeno gato, genial mas não génio dos desejos.

Daqui a umas semanas já lá não caberá e perder-se-á a magia. 

Esta cena faz-me recuar aos tempos de infância em que na casa paterna existia (e existe) uma daquelas aberturas estreitas e baixas, chamadas gateiras, porque feitas precisamente para por elas entrarem os gatos e  assim caçarem os ratos nas lojas (arrecadações) das casas antigas. 

Mas nesses tempos de tenra infância, eu conseguia transpor, ladino como um gato, essa gateira, de fora para dentro e vice-versa.  É claro que hoje já lá não cabe a cabeça, quanto mais os ombros. 

Mas estas coisas, afinal, só ajudam a relembrar que todos nós já fomos pequenos, pequeninos, capazes de entrar e sair por sítios onde só passam gatos.

A vida como ela é, com magia mas sem génios.

7 de setembro de 2022

A vida em papéis




Quando temos algum tempo livre, mesmo que já no queimar dos últimos cartuchos de uma pausa no trabalho, designado por muitos, de férias, há a tentação de deitar mãos à obra e mexer em velhas papeladas, dando o devido destaque a umas, organizando outras e queimando outras mais. 

Com esta minha velha mania de guardar caixas e embalagens e outros papéis (e ainda bem, porque à conta disso tenho cadernetas de cromos dos anos 70 a valerem 500 e mais euros, e cromos a valerem 5 euros por unidade), às tantas damos de caras com a box do telemóvel Nokia 6600, da máquina fotográfica Sony DSC-P71, do CD da Sapo ADSL, de uma colecção do “Bits & Bytes” – suplemento do Jornal de Notícias, da colecção da revista PC Guia dos anos 90,  revistas dos anos 70, como a Tele Semana e a Crónica Feminina, etc, etc, coisas e tecnologias que ainda há duas ou três dezenas de anos eram a cereja no topo do bolo e que hoje nos parecem as velhas mocas dos homens das cavernas.

As coisas são como são. Nem sempre é saudável mexer no estrume com que plantamos e fizemos crescer as nossas vivências e convivências, mas verdade se diga, tudo o que somos hoje, para o bem e para o mal, somos o fruto dessas árvores.

E posto isto nestes termos, porque guardados, damos de cara com os cadernos diários dos primeiros tempos de escola dos nossos filhos, e dos seus desenhos inocentes, e percebemos que, como num flash, passaram vinte anos, duas décadas. 

E o lugar comum de que "ainda parece que foi ontem" torna-se mesmo realidade.

Ficamos assim atados nesta dicotomia do que é mais certo, se o guardar tudo aquilo que um dia nos vem dar um murro no estômago sobre a saudade do reviver em imagens o tempo passado se, pelo contrário, queimar tudo na primeira oportunidade e com isso fazer das memórias e testemunhos apenas cinza que o vento leva.

Tem que se lhe diga. E se há gente que queima os vestígios do seu passado sem o mínimo de esmorecimento, já outros, como eu, teimam em guardar tudo o que um dia nos possa abrir a janela do passado, mesmo que isso nos possa fazer chorar. Se de dor ou de saudade, ou de vergonha, isso pouco importa.

Mas, verdade se diga, com tanto já vivido e incerto quanto ao que virá,  pouco importa mudar agora a agulha como num velho gira-discos. O sulco já é demasiado profundo.

O buxo e o luxo

 


Hoje em dia, em qualquer cemitério, mesmo no de Guisande,  impera o luxo e a ostentação. Cada vez os jazigos são mais polidos, com decorações e inscrições feitas, não pela mão do artista e do seu cinzel, mas por máquinas comandadas por computadores, com sistemas de laser e outras tecnologias. Arte sem arte.

Mas são sinais dos tempos e, sem julgamentos, nem sempre a ostentação corresponde à memória serena e sentida dos nossos entes queridos. 

Noutros tempos, os mausoléus, capelas e jazigos vincavam a riqueza e importância social dos seus proprietários, mas hoje em dia, se é certo que já ninguém os manda fazer em pedra lavrada, a coisa está mais nivelada e a mais humilde família é capaz de mandar assentar um jazigo de pedra cara e todo luzidio.  

Na foto acima, no cemitério de Guisande, pelo início dos anos 1960 predominava a simplicidade das campas rasas, apenas com uma simples lápide em lousa. Os canteiros eram delimitados com o buxo, arbusto sempre verde, tão característico dos cemitérios por esses tempos. 

Porventura, os cemitérios deveriam ser sítios singelos e tão despidos quanto possível, até em consonância com a simbologia de nada mais sermos que pó. Há culturas que assim fazem.

Mas, de um modo ou outro, as coisas são como são e no fundo o nosso modo de vida em sociedade leva-nos a acompanhar as modas e as tendências, com os seus defeitos e virtudes, e quanto a isso pouco ou nada há a fazer. 

Para quem ali é sepultado tudo termina, mas para os que cá ficam, continua a roda do dia-a-dia e com ela a engrenagem lubrificada pelas nossas vaidades, na demonstração do antes parecer que ser. 

Assim, como paradoxo, e mesmo reflexão, a singeleza do buxo em contraposição com o luxo.

5 de setembro de 2022

A vida em papelada



Quando temos algum tempo livre, mesmo que já no queimar dos últimos cartuchos de uma pausa no trabalho, designado por muitos, de férias, há a tentação de deitar mãos à obra e mexer em velhas papeladas, dando o devido destaque a umas, organizando outras e queimando outras mais. 

Com esta minha velha mania de guardar caixas e embalagens e outros papéis (e ainda bem, porque à conta disso tenho cadernetas de cromos dos anos 70 a valerem 500 e mais euros, e cromos a valerem 5 euros por unidade), às tantas damos de caras com a box do telemóvel Nokia 6600, da máquina fotográfica Sony DSC-P71, do CD da Sapo ADSL, de uma colecção do “Bits & Bytes” – suplemento do Jornal de Notícias, da colecção da revista PC Guia dos anos 90,  revistas dos anos 70, como a Tele Semana e a Crónica Feminina, etc, etc, coisas e tecnologias que ainda há duas ou três dezenas de anos eram a cereja no topo do bolo e que hoje nos parecem as velhas mocas dos homens das cavernas.

As coisas são como são. Nem sempre é saudável mexer no estrume com que plantamos e fizemos crescer as nossas vivências e convivências, mas verdade se diga, tudo o que somos hoje, para o bem e para o mal, somos o fruto dessas árvores.

E posto isto nestes termos, porque guardados, damos de cara com os cadernos diários dos primeiros tempos de escola dos nossos filhos, e dos seus desenhos inocentes, e percebemos que, como num flash, passaram vinte anos, duas décadas. 

E o lugar comum de que "ainda parece que foi ontem" torna-se mesmo realidade.

Ficamos assim atados nesta dicotomia do que é mais certo, se o guardar tudo aquilo que um dia nos vem dar um murro no estômago sobre a saudade do reviver em imagens o tempo passado se, pelo contrário, queimar tudo na primeira oportunidade e com isso fazer das memórias e testemunhos apenas cinza que o vento leva.

Tem que se lhe diga. E se há gente que queima os vestígios do seu passado sem o mínimo de esmorecimento, já outros, como eu, teimam em guardar tudo o que um dia nos possa abrir a janela do passado, mesmo que isso nos possa fazer chorar. Se de dor ou de saudade, ou de vergonha, isso pouco importa.

Mas, verdade se diga, com tanto já vivido e incerto quanto ao que virá,  pouco importa mudar agora a agulha como num velho gira-discos. O sulco já é demasiado profundo.

21 de agosto de 2022

Abençoados tempos de fartura


(gente boa da "Quinta do Canastro", que tive o privilégio de me terem ajudado na minha caseirinha boda de casamento (final dos anos 80)


Noutros tempos, uma boda de casamento era tão genuína quanto top. Desculpem usar esta palavra “top”, mas está na moda, e fica fixe ser usada. Dá-nos um ar de quem usa t-shirts floridas.

Mas, dizia, a boda de casamento, era genuína porque conseguia reunir festa, celebração e simplicidade. Assim, o jovem casal definia a data de casamento e ia de seguida dar uma volta pelos restaurantes da moda, contratar o serviço da boda, que era só o almoço. Nada de ceias ou merendas: Assim, visitava-se o Dindão, o Senhora da Hora, o Taco Dourado, o Lano, o Topa, o Cruzeiro, o Pinheiro, o Algarvio, depois o Bolhão, etc, etc.

Mesas corridas, dispostas em forma de U, os familiares juntinhos aos noivos, no topo, escondidos atrás de um bolo parecido com a torre de Pisa, os casados de um lado, os solteiros do outro, por aí fora.

Depois as entradas com camarões, rojõezinhos, croquetes, moelas, polvo, orelha de porco, etc. Depois vinha a canjinha ou uma sopa de legumes bem passada, seguindo-se, mais a sério, a salada russa com filetes de pescada e, se mais ao luxo, bacalhau com puré de batata. Confortada a barriga, lá vinha o cozido à portuguesa, se a família de origem mais lavradoresca assim o determinava, ou em alternativa um assado misto num bordel gorduroso de carnes de cabrito, vitela e porco.

Depois lá vinha o desfile de doces e frutas, onde não podiam faltar as laranjas e as bananas e as uvas ou cerejas, dependendo da época. Já com o estômago a abarrotar, o remate com café e bagaço. Depois os amigos mais atrevidos começavam a bater e a partir pratos com os talheres, desafiando os casais, casados ou namoradeiros, a darem o seu beijinho. - E é p´rá noiva! - E é p´rós padrinhos!...  

Também podia acontecer o leilão com o corte da gravata do noivo e a subida do vestido da noiva, isto quando o ambiente já estava mais descontrolado. E alguns noivos aproveitavam porque poderia dar para ir ao Algarve. Finalmente, despedidos os convidados, umas fotos para o quadro do quarto num qualquer jardim público, depois, xixi e cama.

No dia seguinte o jovem casal ia em lua de mel à praia a Espinho ou ao jardim do Palácio de Cristal ou ainda, se mais endinheirado, até Troia, ou mesmo ao Algarve. E não era para todos.

Era assim, e a coisa aos convidados ficava quase sempre barata, porque sabiam quanto em cada restaurante custava a despesa aos noivos. Era à certa, cabendo aos familiares um esforço suplementar para uma ajuda ao início da vida de casados. 

Mas em pouco tempo a coisa deu uma volta de 180 graus e os casamentos e bodas dos anos 70 e 80 parecem anedotas quando comparados com os de hoje.

Vieram as quintas, as quintarolas, os protocolos, os vídeos, os drones, os palhaços, as bandas, as casas dos queijos, dos enchidos, dos doces, das frutas,  das esculturas de melancias e abacaxis, fontes e cascatas de chocolate, corta-sabores, desemperra línguas, etc, etc.. No protocolo ou na etiqueta da indumentária, as madames são um S. Miguel para cabeleireiras e esteticistas. Usam um vestidinho na cerimónia, outro no almoço e outro ainda na ceia. 

Já a ida para a igreja é uma preocupação definir se de carro normal, se de Ferrari, se de carro clássico antigo, se de limousine, se de charrete puxada por cavalos ou póneis, se de mota, de bicicleta, de trotinete, etc, etc. A pé, como eu, ninguém vai!

Os convites com design de artista, de seda, papiro ou papel biológico, prendinhas e lembranças todas xpto, fotos dentro de corações, no lago, no baloiço, na bicicleta, etc. 

As cerimónias na igreja, quando as há, e há porque as igrejas, com padres e acólitos, são sempre cenários irrecusáveis, mesmo se os noivos não são de missas, são de arromba com flores importadas, arranjos dignos de um casamento da realeza inglesa, grupo coral contratado, o Avé Maria do Schuberth e o Aleluia do Cohen.

Quando o álcool começa a fazer das suas, há danças do pinguim, do comboio, do quadrado, do quizomba, do kuduro, do barão, etc, etc. Há banho de espumante e de champagne francês e no fim da noite o fogo de artifício, 

Nas redes sociais os noivos e convidados partilham tudo e mais alguma coisa e até agradecem e destacam a lista dos "patrocinadores" das flores, dos sapatos, dos fatos, dos vestidos, das cuecas, dos bolos, dos convites, do vídeo, das fotos, o operador do drone, o banda, o grupo polifónico, a menina do violino, o rapaz do piano, o hotel, a quinta, o chefe, o condutor da charrete, a agência de viagens, etc, etc. É uma produção e peras.

Uma orgia de felicidade e de coisas boas que enchem os corações e as almas, dizem! Os convidados pagam para comer numa tarde o que daria para comer num mês. Mas pagam, porque sacrifícios destes valem a pena. É um investimento duradouro e conteúdo para as redes sociais de fazer inveja.

Claro está, os convidados na maior parte dos casos pagam tudo isso e até mesmo a lua-de-mel num qualquer resort paradisíaco.

E isto é mau? Claro que não! É sinal que até o mais humilde casal, mesmo que com ordenados mínimos ou mesmo desempregado,  tem direito ao seu grande dia, à sua celebração.

Finalmente, uma outra grande mudança, significativa nestas coisas: A data do casamento já não é definida pelo casal ou pelo padre ou pela altura em que ambos têm férias. Quem a define é a agenda da quinta ou da quintarola. Nalgumas há listas de espera de anos, dizem! Espere-se, pois, que é o mais importante!

Tanta coisa e tanta mudança em tão poucos anos, digo eu, que quase me envergonho da minha boda de casamento, humilde, simples, caseirinha, mesmo em casa, sob uma tenda de pano florido, e da trabalheira em matar porcos, vitelas e uma capoeira inteira, para que nada faltasse aos amigos e familiares.

O dinheiro deve ter sido à certa para o que se comprou na mercearia e se pagou a quem serviu, porque não sobrou para ir à Torreira ou ao Furadouro, quanto mais à Madeira ou Puta Cana.

Uma voltinha nocturna ao bilhar grande de um parque de uma cidade nas redondezas, umas farturas ou um novelo de algodão doce para adoçar as bocas sedentes de beijos, e no resto, xixi e cama. Naquelas alturas a maioria das mulheres casavam virgens, mas isso poderia ficar para depois do cansaço do dia e da boda. Nem era o mais importante, e de resto paciência pelo dia D era o que se aprendia a ter  durante o namoro. Hoje, no geral, as coisas já vão adiantadas.

Abençoados tempos modernos e de fartura, onde "todos somos tão felizes" e os casais chegam "quase todos" a "bodas de oiro" e em que os divórcios contam-se pelos dedos das mãos. 

Ainda bem que há Facebook para nos testemunharem estas coisas, porque se não fossem vistas, contadas ninguém acreditaria.

Se alguém vai dizendo que "vivemos acima das nossas possibilidades", isso é pura má língua. Na realidade vivemos muito modestamente.

Mas ainda em tempos mais recuados, os nossos pais e avôs casavam-se, comiam uma refeição melhorada, com arroz de galinha, e no dia seguinte iam em lua de mel para a puta da vida, no campo ou no mato. Hoje, vão quase todos para a Puta da Cana, ou outros paraísos tropicais. Diferenças, para além da semântica e dos trocadilhos.

Abençoados tempos de fartura!

18 de agosto de 2022

Fórmula 1 - Companheira de jornada



...E fui hoje dar uma volta com o meu cavalo da juventude, a Fórmula 1 - EFS - Sachs, preta com retoques dourados

Foi comprada com o meu dinheirinho em 1979, no Correia, em Sanguedo, paga a letras que sagradamente liquidava a cada mês. Nesse tempo o dinheiro era caro porque não caía do céu, como agora até parece. Os raios dos pais, por essa altura, não davam nada de borla. - Queres uma motorizada? Trabalha e compra-a! - Diziam.

Mais de que um objecto para entretenimento ou para não andar a pé, esta motorizada fez parte da minha vida, do tempo da juventude, das idas às festas, às tascas, ao futebol, à missa, à praia, aos namoros, para o trabalho, pois claro, chovesse, nevasse ou fizesse calor, e mesmo já depois de casado e com filhos, serviu de transporte à famelga nas voltas da vida.

Um carrito, não mais que um Renault 5, usado e abusado, a cair de velho, e dado a aquecimentos como as mulheres na menopausa, só me chegou às mãos já com o aparecimento do segundo filho.

Por conseguinte, esta minha velha companheira mecânica, já com umas próteses e um ou outro dente implantado, e a gemer de alguns ossos, ainda está aí para as curvas. E só não as dá com frequência porque isto de grupos de motorizadeiros é bonito e louvável mas é bota que não assenta na medida do meu pé.

Mas hoje fui dar uma volta. Claro que com seguro, que pago para estar parada. E portou-se bem, o raio da preta. Quando lhe metia a 5ª mostrava fome para a 6ª ou sábado.

De resto, nesta volta, creio que já não atingia tanta velocidade desde que por aquela tarde de um sábado algures em 1981, com o Tono Mota, companheiro dos bons velhos tempos, montado na parte de trás, salvo-seja, tivemos que fugir à GNR, que andou em nossa perseguição por tudo quanto era estrada em Canedo e Gião. No fundo, porque a velha (então nova) companheira assapava a valer, mesmo com dois nela montados, lá conseguimos despistar a bófia e arranjar o esconderijo, entrando a varrer num campo de milho algures por Canedinho. Isto de andar sem capacete para sentir os cabelos ao vento tinha os seus riscos.

Mas eram bons tempos, em que a GNR ajudava à festa. 

Hoje nem isso!

9 de agosto de 2022

A capela do Viso e outras memórias


Costumo dizer que, até ter casado, eu não ía à Festa do Viso; eu estava na Festa do Viso, já que ali nasci e cresci, mesmo encostadinho à capela e ao arraial. Por conseguinte, são muitas e remotas as memórias ligadas à festa, àquele bonito lugar e aos pormenores e singularidades de outros tempos, que naturalmente foram mudando com o correr dos anos. A própria fotografia, acima, de 1969, evidencia algumas coisas mudadas, sobretudo as árvores, as acácias, que já desapareceram.

A capela, é certo, continua imutável no mesmo sítio, desde que foi edificada por 1859, mas também ela foi sofrendo obras, sobretudo de conservação, umas mais ligeiras, outras mais profundas. Estas, as mais significativas, do que tenho memória ocorrerem em 1969, à passagem do centenário da edificação, com obras de decoração interiores, de trolharia, carpintaria, pintura e douramento os altares, requalificação do tecto e aplicação de azulejo na fachada principal incluindo os paineis das figuras da Senhora da Boa Fortuna e de Santo António, e ainda a construção do arco sineiro. 

Mais tarde, em 2004, com a requalificação da cobertura e destapamento do pavimento em soalho ficando com o interessante pavimento original em lajes de pedra do Monte de Mó. Ainda a reformulação do coro e construção de escada interior, facilitando o serviço. De registar melhoramentos como a instalação de bancos, a colocação do relógio com amplificação, etc.

Depois disso foram sendo dadas umas pinturas ligeiras, ainda o levantamento do arco sineiro para acomodar o automatismo dos toques, mas o certo é que neste momento a capela está de novo a precisar de obras de conservação, sobretudo ao nível das vedações na cobertura e nos rebocos interiores, que se apresentam vergonhosamente em mau estado e aspecto.

Para além das intervenções na capela propriamente ditas, ao longo dos anos, também a sua envolvente foi sendo mexida, com a realização de passeio cimentado e uma parte em calçada de pedrinha de calcário e basalto, mas certo é que ainda continua sem dispor de uma envolvência requalificada com uniformidade e dignidade. É um caminho que falta percorrer.

Ate mesmo o próprio monte ou arraial, depois das obras de transformação durante os anos 90 e seguintes, continua ainda a carecer de melhoramentos. A calçada frontal à capela e guias delimitadoras estão em mau estado, sobretudo decorrente do crescimento das árvores e respectivas raízes. Ainda o parque de merendas que continua bruto e com desorganização de árvores e arbustos. Enfim, não faltam motivos e pretextos para realizar obras de requalificação e melhoramentos. Haja o que não tem havido, vontade e dinheiro.

Já o tenho dito, quando participei na primeira Junta da União das Freguesias, fiz elencar como uma das obras de charneira em Guisande, a requalificação da zona do parque de merendas e envolvente da capela. Infelizmente, como quem não manda não pode, a juntar às dificuldades financeiras herdadas da transição, e com pouca ou mesmo nenhuma vontade política de quem na realidade mandava, incluindo a Câmara Municipal, a coisa passou, como tantas vezes acontece, como uma mera promessa eleitoral não cumprida. Depois disso veio mais um mandato de quatro anos e o assunto continuou na gaveta e a não merecer qualquer interesse e nem mesmo a limpeza regular do espaço foi assegurada, apenas pautada pelo calendário dos eventos. Entretanto o tempo avança e um terceiro mandato já está quase a completar um ano de quatro.

Apesar dessa minha incapacidade, porque apenas um mero vogal, penalizo-me por isso, é por essas e por outras, por não sermos tomados em conta ou até mesmo desconsiderados, que somos levados à desmotivação quanto ao continuar a dar tempo e dedicação à cidadania. Mas, adiante, até porque já correu muita água sob a ponte da Lavandeira.

Tenho esperança que a actual Junta ali faça qualquer coisa de relevante, sabendo que as pedras no sapato são muitas, mas pelo menos nota-se em quem dela faz parte, sobretudo do seu presidente, um maior interesse e abertura a fazer ali obras.

Resumindo  há tanto a escrever sobre a capela e monte do Viso, e mesmo das memórias relacionadas à festa, que espero, de algum modo vir a incluir algumas delas no meu futuro livro de apontamentos sobre a freguesia.

8 de agosto de 2022

Momentos... O Pe. Santiago



A procissão solene, a seguir à celebração da Eucaristia, é e deve ser um dos momentos mais significativos de uma festa de carácter religioso. Iremos muito mal quando a cereja no topo do bolo for um qualquer cantor pimba ou uma espampanante banda de topo. Mas há quem veja a coisa apenas e só por aí. Adiante.

Durante o percurso da procissão solene de ontem ao final da tarde, incorporado no magote de gente que seguia a Banda, a toque de caixa e de marchas próprias, não deixei de reparar que o Pe. António Santiago também assistiu à sua passagem, junto à sacada de sua casa. 

De idade avançada e debilitado, não deixou passar esse vislumbre de solenidade de que tantas vezes fez parte nas paróquias por onde missionou . 

Por comparação, não impedi que me viesse à memória uma fotografia de outros tempos, mesmo que a preto-e-branco, quando pelo 15 de Agosto de 1961, por isso  há mais de 60 anos, então jovem e viçoso, saiu dali, daquela mesma casa, também numa espécie de procissão solene, com a estrada juncada de verdura, flores e alegria humana, a caminho da Igreja onde celebraria a sua Missa Nova.

Há momentos assim, significativos, como tecidos e laboriosamente entrelaçados pelas agulhas prateadas do tempo, que teimam ajustar-se ao nosso corpo como um traje cerimonial. 

Que Deus lhe conceda um fim de vida de paz interior, porque foi longa e bonita a sua missão. 

Bem haja!

26 de julho de 2022

Bandas de cá, de lá, dali e da colá


A propósito da Festa do Viso programada para este ano, parece que alguém terá dito que "...pela segunda vez em Guisande". Não é que seja importante, mas para além de já ter estado por cá recentemente, creio que em 2013, pessoalmente recordo-me de pelo menos duas outras anteriores participações, pelos anos 80 e 90. Por conseguinte, está será pela menos a quarta vez que vem dar música a Guisande.

Os Tekos, de Grijó, Vila Nova de Gaia, são uma das boas bandas musicais neste conceito de reprodutores de músicas de terceiros, habitualmente designadas de bandas de baile. 

Este tipo de bandas, que percorrem vários estilos, desde o popular até ao rock passando pelos ritmos latinos, disco, etc, até às pimbalhadas, geralmente com bons músicos e meninas de boa estampa e quase despidas, são na actualidade mais que muitas e o negócio, apesar dos efeitos negativos da pandemia da Covid 19, que certamente deixaram algumas pelo caminho, parece ser rentável, pois a maior parte delas já exibem um enorme aparato de pessoal, luz e som, até com grandes camiões palco. 

Abaixo, a lista com apenas algumas das bandas do estilo.

Tekos

Função Pública

Banda Universo

AS Band

Banda Vatikano

Grupo Uskadabila

Orquestra Sirilanka

Banda Século 21

Banda Repúblika

Banda Hi-Fi

Banda Implacáveis

Banda TV5

Banda Nova Onda

Banda Jovisom

Banda Top 5

AlmaBand

GBand

Magma

Banda Lux

Banda Katedral

Banda Sense

Banda INNEM

HD Musik

Uskadkasa

Grupo Kapittal

Arkádia

Miranka

Setor Públiko

Banda XCA

Top Som

Soma e Segue

Grupo Impakto

Belcanto Show

Euphoric Show

Terceira Dimensão

Grupo K7

Novasom Band

Novo Século

8 de abril de 2022

Livros escolares antigos - Colecção



Por variadíssimas razões, tenho um especial apreço e carinho por livros escolares, sobretudo pelos do ensino primário. Desde logo, num sentido geral, o gosto pelos livros, depois pelo facto de alguns deles terem sido para mim importantes no ensino das primeiras letras. Também um entusiasmo e afecto pelo lado artístico dos livros, tanto das ilustrações como do grafismo associado aos estilos dos diferentes tempos em que foram produzidos.

Desses livros escolares tenho especial atenção pelos referentes às décadas de 1960 e 1970, naturalmente por serem do período em que andei na escola primária e no ciclo preparatório, fui criança e adolescente. E ainda dentro desses muitos livros escolares, também comummente designados de manuais escolares, tenho preferência pelos livros de leitura, sendo que também me merecem atenção os de história, ciências geográfico-naturais e até mesmo de gramática, aritmética, etc.

Posto esta declaração de interesses, mesmo que a poucos interesse, sei que há quem tenha desses velhos manuais bons exemplares e mesmo excelentes colecções, tanto em número como em qualidade e estado dos exemplares, mas longe dessa importância, também tenho já uma vasta colecção e que abrage tanto as referidas décadas de 1960 e 1970 como outras, sobretudo anteriores.

De um modo geral, dos muitos títulos que foram sendo publicados e que se tornaram mais ou menos generalistas no país, alguns mesmo com carácter de livro único nacional, tenho seguramente uma grande parte e já não serão muitas as publicações a faltar. E se faltam, porque raras e por isso arredadas de alfarrabistas e de outros locais de vendas e leilões onde seja possível tentar a sua aquisição. Vou andando de olho mas pouco ou raramente nada aparece que já não tenha. Ainda por estes dias consegui juntar mais alguns exemplares à colecção.

Nestas coisas não temos certezas, até porque há sempre boas surpresas mesmo ao nosso lado, mas duvido que cá pela zona ou concelho alguém tenha uam colecção tão vasta como a minha quanto a antigos livros escolares do ensino primário. Creio que nem mesmo a Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira, pois tendo lá alguns exemplares, a maior parte dos quais também tenho, todavia, pelo que é possível observar pela consulta online, tenho muita coisa que por ali não consta.

À falta de melhor destino, porventura no futuro terei que equacionar a doação à Biblioteca Municipal, naturalmente havendo interesse da instituição. É uma coisa a considerar, mas por ora ainda não.

6 de abril de 2022

Anúncio de Páscoa

 


A fotografia de cima é de hoje. A de baixo é do mesmo dia mas de 2010, por isso já de há 12 anos. Em comum, a igreja, obviamente, até o mesmo tipo de céu nublado e a mesma azálea, uma bonita espécie que floresce antes de deitar folha. 

Desta planta arbustiva, conheço pelo menos outra variedade de folha caduca, mas com flores cor-de- laranja e essa recordo-a sobretudo sempre que pela véspera da Páscoa ia a Serradelo, à freguesia da Raiva, comprar o ali tradicional pão-de-ló, cavacas e melindres à Casa Doçaria Paivense. Existia, mas não sei se ainda lá está no jardim frontal, ali na Rua das Rosas daquela localidade.

Da casa, ouvi notícias de que já terá fechado, pelo que em rigor desconheço se assim foi ou se reabriu. Se foi, foi-se à vida uma casa com história e tradição e com ela muitas memórias associadas à Páscoa e a algumas das nossas boas romarias, como a de Santa Eufêmia.

Ainda quanto às fotografias, é notório o crescimento das árvores defronte da igreja, o azereiro (*) e a magnólia.

(*)nota: corrigi posteriormente de pilriteiro por azereiro, por indicação do Artur Costa. Obrigado!

27 de março de 2022

Grupo de Jovens de Guisande

 


O Grupo de Jovens de Guisande voltou a renascer. Ontem, na missa vespertina, por ele dinamizada, teve início a sua caminhada. Entre outros objectivos, a preparação para a sua participação na Jornada Mundial da Juventude que terão lugar em Lisboa no próximo ano, entre 1 e 6 de Agosto.

De que tenho memória (sim, já fui jovem), pertenci desde os 17 ao Grupo de Jovens de Guisande, então dinamizado pelo saudoso Pe. Alves do Seminário dos Passionistas. Desse grupo, entre outros, faziam parte o Cesário Almeida, o Orlando Lopes, a Georgina Santos a sua irmã Fátima, a Cisaltina Coelho, o saudoso Tomé, o Rui Giro e tantos outros.

Depois dessa excelente fornada, houve outros grupos de jovens, mas certo é que em rigor nunca houve um Grupo de forma continuada, no que naturalmente seria positivo, com os mais novos a integrarem-se com os mais velhos, numa natural sequência e sucessão etária.

Desse meu Grupo, não há muitas fotos, até porque por esses tempos as máquinas fotográficas eram um luxo e não havia telemóveis. Acima uma foto, junto ao balneário das Caldas da Rainha, de uma excursão de dois dias a Lisboa, em que para além de alguns elementos do grupo de Guisande participaram jovens de outras freguesias como de Louredo, Lobão, Gião, Canedo, Caldas de S. Jorge e S. João de Ver. 

Fica o registo e com ele os votos de longa vida a esta nova colheita do Grupo de Jovens de Guisande.


Sobre o Pe. Alves:

O padre Manuel Alves Pereira, filho de José Pereira de Oliveira e Nazaré Alves de Azevedo, nasceu 13 de Julho de 1938 – nascimento em Alvarães (Viana do Castelo). 

Foi baptizado e crismado em Alvarães (Diocese de Viana do Castelo). Entrou no Seminário Passionista de Peñafiel (Espanha) a 17 de Outubro de 1953. 

Entre 1957 e 1958 fez o noviciado em Peñafiel, emitindo a Primeira Profissão a 08 de Dezembro de 1958 (Corella-Espanha) e a Profissão Perpétua a 29 de Setembro de 1961 (Villareal de Urréchua-Espanha). Foi ordenado presbítero a 09 de Março de 1963, em Bilbau.

Foi Superior da Comunidade em Barroselas de 1967 a 1970; em Santo António (Barreiro) de 1994 a 1998. Foi Ecónomo Local em Arcos de Valdevez de 1965 a 1967; 

Em Santa Maria da Feira de 1980 a 1984; 

Em Barroselas de 1984 a 1987 e 1994 a 1994. 

Deu aulas em Antuzede (Coimbra) de 1964 a 1965; Santa Maria da Feira de 1970 a 1979; em Barroselas de 1987 a 1990. Desenvolveu intensa atividade em vários grupos e ação pastoral: Escuteiros (Fundador do Escutismo em Santa Maria da Feira), Grupos Corais (Barreiro, Barroselas), Pastoral Vocacional… Foi um grande missionário, tendo pregado em diversos pontos do país e estrangeiro.


Faleceu a 22 de Maio de 2016, em Viana do Castelo.

A pólvora continua a ser inventada


No início dos anos 1990, a Associação Cultural da Juventude de Guisande - ACJG,  fundia-se com o Centro Cultural e Recreativo "O Despertar", dando lugar à Associação Cultural de Guisande "O Despertar", com a união oficializada no Verão de 1994. Terminava-se a rivalidade, nem sempre positiva e uniam-se esforços e vontades.

Numa  das primeiras acções da nova associação, junto ao Moinho Velho no lugar do Reguengo, junto à ribeira da Mota (foto acima), só nesse sítio foi recolhida uma carroça de tractor completamente cheia de lixo, incluindo garrafas, plásticos e roupas abandonadas por quem ali usava o tanque.

Parece que nos tempos que correm essa acção tem um nome todo catita e até inglês para parecer moderno, embora o conceito parece que surgiu na Suécia. Trata-se do PLOGGING.

Em resumo,  nestes tempos actuais por vezes ficamos com a ideia de que agora é um fartote de descobrir a pólvora.

Em todo o caso, é uma ideia importante e válida, esta a de juntar exercício físico com a limpeza do meio ambiente, mas só peca por... ser precisa.

22 de março de 2022

À biqueirada


Foi já há uns valentes anos. Quantos, não sei ao certo, porque isto de calcular tempo passado, a partir dos 40 perde-se a noção porque um ano parece ter metade. 

O Ramiro, o picheleiro, tinha um grupo de malta já perra dos ossos para as coisas do pontapé na bola, uma mistura de veteranos e reformados, mas que facilmente se vendia por umas trainadas que metessem cabidelas ou rojões à minhota, e de quando em vez, lá combinava um jogo de futebol com outra qualquer equipa que padecesse mais ou menos dos mesmos males, da velhice, dos ossos e da paixão pela bola. 

Assim, de quando em vez, quase sempre ao Sábado à tarde, pegava na cana e no isco da saudade de quem já teve melhores dias e dando a volta pelo Vale, Louredo e aqui em Guisande, lá pescava um grupo suficiente de carapaus de corrida para formar uma equipa e mais alguns suplentes, porque isto de jogar sem treinos e com as pernas já cansadas obrigava a um plantel extenso.

Em Guisande o Ramiro pescava o Jorge Ferreira, o António Ribeiro, velhas glórias do Guisande F.C. e creio que o Álvaro sapateiro. Não sei porque carga de água, porque nem meti cunha, também fui pescado duas ou três vezes, quase sempre para jogar a médio ou a defesa esquerdo, talvez porque mesmo sendo destro, acertava bem como o canhoto. E então lá ía com o grupo, não porque me entusiasmasse o jogo em si, mas sobretudo pelo convívio, pelo banho e pelo jantar depois da jogatana. 

Lembro-me de uma vez em que fomos para os lados de Amarante, não sei se de Verão ou Inverno, mas deveria ser Inverno porque choveu pegado durante o jogo e dos pés à cabeça era um frio gélido e pele de galinha. O equipamento, de manga curta e calçõeszinhos brilhantes à anos 80, pouco ajudava a escapar daquele gelo e o pelado encharcado fazia lembrar um lagar. A bola, essa tinha o peso da cabeça do Zé Grande, bom defesa, e quando vinha lá do ar a cair como um míssil ninguém lhe chegava a cabeça. Só mesmo de capacete.

Para além do frio gélido, do terreno encharcado e a malta, de um lado e outro, a chutar para a frente quase como num jogo de râguebi, pouco mais me lembro, mas há uma coisa que jamais esqueço: Jogando a defesa esquerdo, estava na frente numa jogada de ataque quando a bola veio-me ter aos pés. Posicionei-me, apontei, e numa espécie de canto curto ou cruzamento longo, peguei um valente biqueiro na bola ensopada e ela sobrevoou toda a malta, defesas e atacantes e foi-se encaixar dentro da baliza no ângulo superior direito. Golo! Um bonito golo! Merecia repetição em slow motion!

Já não me recordo do resultado final. Se calhar ganhamos, ou talvez não, mas isso pouco importa, pois afinal o jogo valeu por aquele golo marcado da esquerda pelo pé que tinha mais à mão, e dessa vez, foi mesmo o direito.

Depois, veio o final do jogo, o banho, a pomada nos músculos e o gelo nas pisaduras. Confortados com cuecas quentes lá fomos para os lados da Lixa fazer a segunda parte da jornada, o convívio com uma boa jantarada oferecida pelos lorpas dos visitados. Boa gente!

Chegamos a casa quase de madrugada, perros dos ossos e pesados da barriga. O próximo jogo só dali a uns meses quando a malta estivesse restabelecida.

Há coisas assim, e num desconforto de chuva e frio lá surge um golaço como um raio de sol, mesmo que fosse de pouca dura.

19 de março de 2022

Quando o Monte do Viso era o teatro dos sonhos

 


Nesta fotografia de 1961 vemos um grupo de crianças a celebrar o magusto no terreiro do monte do Viso ao lado da escola e da capela.

Por esses tempos o monte era o verdadeiro teatro dos sonhos da rapaziada porque ali era o palco de tudo quanto era brincadeira, tanto na hora do recreio da escola como aos fins-de-semana.

Nesse tempo havia, escola, havia crianças, muitas. Não havia telemóveis nem internetes. Nem tudo era bom, pois não, mas nem tudo era mau. 

Esta velha foto, mesmo que sem definição HD, mostra o que hoje é impensável, crianças à roda, alegres e felizes numa irmandade sadia e genuina. Havia por ali valores que hoje estão de todo perdidos. Mas as coisas são como são e não são mais que a consequência natural do andamento do tempo e das mudanças inerentes.

Como se vê pela fotografia, a escola não aparece pois está nas costas de quem fotografou e mesmo a capela aparece apenas parcialmente do lado esquerdo. Mesmo assim é perceptível que a escadaria frontal tem mais degraus e por conseguinte mais desnível bem como o monte, rude e irregular tinha várias árvores nos lados.

A configuração actual resulta de obras de requalificação realizadas pelo final dos anos 1990 e seguintes.

Era o teatro dos sonhos e a rapaziada, dançava, jogava e corria que se fartava. Os tempos mudaram e hoje correr é novidade e digna de exaltações tais que nos levam a pensar ser feito igual ao do Neil Armstrong e companhia quando pela primeira vez deram uns saltinhos na Lua. Andamos, de facto, todos na lua, aluados. A nossa Lua, a da minha geração e de algumas seguintes, foi o terreiro do monte do Viso. Isso sim, é que era!

24 de janeiro de 2022

O que é Nacional, é bom!

 


Quem nunca ouviu este slogan?  Certamente que quase todos, pelo menos os mais velhos.

Pois bem, esta marca, a "Nacional", tem já uma longa história, concretamente desde 1849 quando a raínha D. Maria II concede a João de Brito a autorização para a utilização da marca nos seus produtos. 

Volvidos 30 anos, em 1879, os herdeiros de João de Brito constituem a firma com o nome de Companhia Nacional de Moagem e nela os cereais começam a ser processados com diversas finalidades, como para massas alimentícias, bolachas mas também para rações de animais.

Mais tarde, num contexto político conturbado por uma nova república nascida em sangue, a firma muda de nome, para CIPC - Companhia Industrial de Portugal e Colónias, voltando a mudar, em 1986, após a adesão de Portugal à CEE, para a designação Nacional - Companhia Industrial de Transformação de Cereais, S.A. 

Posteriormente, em 1999, é adquirida pelo Grupo Amorim Lage, S.A. e já em 2005 o Grupo Amorim Lage sofre uma reestruturação e a empresa passa a designar-se de Cerealis Produtos Alimentares, S.A.

Em todo o seu percurso a expansão e inovação foram crescentes, numa constante adaptação às tecnologias de fabrico, necessidades e tendências de mercado, sempre com o lançamento de produtos inovadores e que, muitos deles, se tornaram emblemáticos.

A Nacional é, pois, uma marca de prestígio no nosso pequeno país, com produtos de qualidade, e remete-nos para memórias bem antigas, sobretudo as relacionadas às massas e às bolachas, no tempo em que estas eram vendidas a avulso. Ia-se à mercearia  e pedia-se cinco tostões de bolachas.

Muitas vezes consumimos um produto de uma marca antiga e não nos apercebemos da história que a mesma comporta e de todo um percurso de evolução.

Por tudo isto, muitas marcas e delas muitos produtos, fazem parte das nossas memórias, vivências e convivências colectivas. 

21 de dezembro de 2021

O cara de cu


Foi num dia de Natal, a meio da tarde. Enquanto as mulheres da casa se afadigavam nos preparativos para a consoada, a cortar pencas, descascar batatas e pescar as postas do norueguês atado num saco de ráfia bem junto onde chocalhava a bica da fonte, e como o tempo estava frio mas límpido a fazer adivinhar mais uma camada da branquinha lá para os lameiros de Trás-da-Igreja, fui dar uma voltinha de arejamento ali para as bordas do Outeiro e Pereirada onde o Monte de Mó se vem espraiar e chorar em grossas lágrimas que correndo juntinhas aos cômoros vão dar o primeiro impulso à ribeira que por ali abaixo vai a cantarolar noite e dia de encontro ao Inha e logo depois ao Douro.

Contemplei as silhuetas despidas de castanheiros e carvalhos e saltitei o olhar a seguir piscos e melros que nos ramos nus ainda procuravam uns bagos de uvas esquecidas nas latadas ou nos caminhos lamacentos algumas larvas debaixo da folhagem. Ao longe, pelas Quintães e Cimo de Vila, o fumo já ondulava prateado das chaminés do casario onde se adivinhava o calor da consoada que se aproximava.

No regresso decidi tomar o caminho que do norte da Pereirada vem dar ao Pinheiro, no edifício da Junta, até para ver se ainda por ali havia azevinho que em tempos da primária se visitava de mansinho como um segredo bem guardado, na colheita de raminhos verdes com bagas vermelhas. 

Já dentro da sombra densa dos pinheiros e carvalhos, um pouco à frente vi um automóvel preto, a ocupar o caminho. Não estava abandonado porque o raio do carro, como se tivesse vida como o carocha do Herbie, estava a baloiçar num ritmo certinho, acima e abaixo.

- Mau! Será que vou ter que voltar para trás e meter novamente os pés já húmidos na erva molhada e nos carreiros lamacentos? O tanas! P´rá frente que o caminho é público! Siga!

Mas, o raio do automóvel, preto como um melro, ocupava mesmo o caminho projectado apenas para carro-de-bois e assim tive mesmo que passar na nesga entre ele e o mato um pouco mais alto.

Ao passar, os olhos desviaram-se curiosos para o interior e lá estava o casalinho, ela por baixo, ele por cima, ao comprido tanto quanto possível. Creio que só ela me viu e me fixou porque estava de olhos bem abertos, numa quase indiferença àquele aconchego desconfortante com as pernas emaranhadas entre manetes e guiador. A ele, não lhe vi a cara, mas vi-lhe o cu, porque branco e destapado. Um cara de cu.

É claro que esta cena correu ligeira porque o que vi foi mesmo de passagem e não me deti. Passado o carro, uma dezena de metros à frente, olhei para trás e lá continuou no balanço. Ainda com boa memória, fixei o modelo e a matrícula.

Quando cheguei a casa, os preparativos já estavam adiantados e a hora aproximava-se e dali a pouco a família já estava embrenhada na mesa farta e abençoada com as travessas bem prenhas num aconchego de batatas, couves e bacalhau, a que o molho de azeite e cebola caía generoso a escaldar num baptismo de água benta. A memória da cena de há pouco dissipara-se e a imagem daqueles olhos abertos e rosto indiferente e de um cu deslavado a baloiçar depressa se desvaneceu dando lugar às coisas boas da consoada.

Passados alguns dias, a imagem voltou-me à cabeça e de novo aqueles olhos abertos e desconsolados e aquele cu em vai-e-vem. Acabei por indagar colegas e amigos e dentro de algum tempo fiquei a saber quem eram e onde moravam. Das poucas vezes que a vida nos fez cruzar, para mim ele continuou como um desconhecido a quem não lhe vira o rosto mas o traseiro. Quanto a ela, bonita, de olhos profundos, fiquei sempre com a sensação de que me reconheceu naquele encontro imediato na tarde de um qualquer Natal. Quando me via, aqueles olhos que conhecera abertos, baixavam-se tímidos, envergonhados.

O tempo foi passando e poucos anos mais tarde soube que ela já se desprendera daquele triste que se afogava em copos e em expedientes manhosos. Deixou-o sem pena, mas ficando com dois filhos, um nos braços e outro agarrado às pernas. Um deles poderia muito bem ter sido concebido no dia do Menino Jesus.

A vida fora-lhe um pouco ingrata e aqueles olhos grandes, negros e bonitos continuavam, todavia, tristes e desconsolados e quem sabe se todo esse desconsolo não nasceu naquela tarde dentro de um carro preto, também ele triste, sendo montada, afinal, por um simples cara de cu. A vida por vezes tem destas coisas, de uma tristeza tristemente triste. 

Rais´ma parta! Mais valia que naquela tarde de Natal tivesse voltado para trás e encharcado os pés na ribeira. Mais valia!

Feliz Natal!

20 de dezembro de 2021

Quando a sala privada era um auditório público


As emissões regulares da televisão em Portugal começaram em 7 Março de 1957, mas um pouco antes, em 1956, houve emissões de carácter experimental, em instalações na Feira Popular de Lisboa. Apesar de uma programação inicial minimalista e com horário muito reduzido, a televisão depressa se transformou num fenómeno nacional e numa curiosidade que só terminava quando a emissão encerrava diariamente ao som do Hino Nacional.

Os aparelhos naturalmente começaram por ser poucos e caros, e com captura de sinal apenas em certas zonas do litoral, e desse modo não surpreende que as pessoas começassem a frequentar os locais mais ou menos públicos que tinham capacidade de instalação. Como nas demais aldeias, na freguesia de Guisande foram alguns cafés e mercearias como as do Sr. Joaquim Ferreira Coelho, em Fornos, e do Sr. Elísio dos Santos, em Casaldaça, logo na primeira metade da década de 1960, os primeiros a abrir essa janela que, mesmo condicionada por um regime de censura, nos alargava os horizontes. Depois, aos poucos, algumas casas particulares mais abastadas também foram adquirindo a caixa mágica.

Pela minha parte e das minhas recordações, no lugar de Cimo de Vila foi o meu avô, Américo Fonseca, o primeiro a adquirir o aparelho, o que terá sido no ano de 1966 e poucos anos depois, na casa do meu tio Avelino, por onde acompanhei as notícias e os acontecimentos da revolução do 25 de Abril de 1974. Seguiu-se, no Viso, a chegada a casa do meu tio Joaquim e em Casaldaça à mercearia do Sr. Domingos Sá. Aos poucos, pelos diferentes lugares. Em casa de meus pais, creio que por 1979 ou mesmo já no início de 1980. 

As emissões regulares no sistema a cores aconteceram aquando da transmissão do Festival RTP da Canção, em 7 de Março de 1980, em que sairia vencedor o José Cid com a canção "Um grande, grande amor". Todavia, poucos foram os que tiveram capacidade de mudar de televisor capacitado para a recepção a cores e por isso não surpreende que uma vez mais tenham sido os cafés a tomar a dianteira. Só muito mais tarde, aos poucos, os velhos aparelhos, os blaupunkts, os telefunkens e os philcos foram postos de lado.

De lá para cá todos conhecemos mais ou menos a evolução da televisão em Portugal, da RTP, dos seus diferentes canais, como o canal único e depois no Natal de  1968 a RTP2, conhecida como 2º programa, na banda UHF, o pagamento de taxa,  o aparecimento de novos canais privados, com o aparecimento da SIC, em 6 de Outubro de1992 e da TVI em 20 de Fevereiro de 1993, até à internacionalização dos sinais, e mais recentemente a emissão pela internet, cabo e satélite. Haverá certamente muito caminho a percorrer, ainda que tecnologicamento pareça que já não há muito mais a fazer, mas seguramente já sem a dimensão e amplitude das mudanças e evoluções ocorridas nos primeiros 30 ou 40 anos.

Voltando às minhas memórias de televisão desses primeiros tempos, recordo que na casa do meu avô, em Cimo de Vila, aos domingos, e sobretudo no Verão, logo a seguir ao almoço, e porque a sala era pequena, o televisor era colocado à porta da sala e voltado para o pátio comprido e estreito onde aos poucos a gente do lugar se acomodava, formando uma plateia compacta para assitir às novidades. Normalmente a coisa começava com o "TV Rural" onde o Eng.º Sousa Veloso nos trazia as novidades das coisas das lavoura. Também, muito apreciado o programa apresentado pelo Pedro Homem de Melo que nos trazia o folclore nacional. Marcantes, a visita do papa Paulo VI a Fátima, em Maio de 1967, bem como a chegada do Homem à Lua, em Julho de 1969.

Pelo meio, no dia-a-dia, a constante escapadela de casa e das tarefas para ir a casa do avô e padrinho para assitir aos desenhos animados e às séries como "Bonanza", "Daniel Boone", "Skippy", "Daktary"e tantas outras que nos marcaram a infância. Um pouco mais tarde em casa do meu tio Avelino e do meu tio Joaquim, repetiam-se as plateias de vizinhos para assitir aos filmes, como o "Lancer", na sexta-feira à noite, e a outras aventuras de índios e cowboys.

Aos Domingos à tarde, a coisa era complicada para a criançada, pelo que com a obrigação da Catequese, marcada para as 14 horas, seguida da reza do Terço, ou perdia-se a televisão e as aventuras ou ganhava-se uns "galos" nas cabeças, esculpidos à mocada da mão pesada do Sr. Vigário Pe. Francisco. Desse modo, escapar pelo menos ao Terço para fugir até aos cafés de Casaldaça era um misto de aventura e de loucura, já que raramente se escapava ao castigo, e desculpas de dores de barriga ou de dentes, ou outras artimanhas, não serviam de atenuante. Só agravava o peso da coça. Nesses tempos as queixinhas aos papás valiam e duravam tanto como manteiga em nariz de cão.

Seja como for, foi assim que  a malta desses primeiros tempos de televisão lidou com essa novidade mágica e misteriosa da televisão. Mesmo naquele pequeno e arredondado ecrã a preto-e-branco, de reduzida definição, abriam-se as portas largas para a imaginação, para uma realidade fantástica e fantasiada que depois tinha extensão e continuidade nas brincadeiras em comum, tanto no recreio da escola como no terreiro do lugar, espaço polivalente que tanta servia aos jogos de futebol como aos jogos da macaca e do pião. Nesse tempo a televisão não era a cores, nem em alta definição em HD, nem tinha box para gravações, nem era exibida em formato gigante, mas tinha o dom e a magia de nos fazer felizes na simplicidade do pouco quante baste. 

Como dizia alguém, "éramos felizes sem o saber".

4 de dezembro de 2021

Cartaz da Festa do Viso - Antigo - 1949?

 


Encontrar um cartaz da Festa do Viso em honra de Nossa Senhora da Boa Fortuna e Santo António, mesmo que relativamente recente, é por si só difícil, já que não há o cuidado e a sensibilidade de se arquivar de ano a ano. Ora, por ordem de razão, encontrar um mais antigo, como aconteceu agora entre papeladas da paróquia, é uma sorte, mas, azar dos azares, o mesmo não faz referência ao ano. 

Todavia, sabendo que a festa se realiza desde tempos imemoriais sempre no primeiro Domingo do mês de Agosto, sabemos que neste caso o dia 7 de Agosto calhou num Domingo. Fazendo um exercício especulativo mas com grande probabilidade, considerei numa primeira estimativa que o presente cartaz se reportava ou ao ano de 1955 ou 1949. Isto porque abaixo dos anos 1960 e até 1940, o primeiro Domingo apenas foi dia 7 nesses dois anos. Por outro lado, os dados mais antigos que temos sobre a nossa festa, incluindo indicação de comissões de festas reporta-se aos anos 1930. Por outro lado ainda, não deverá ser acima dos anos 1960, pois por essa década já tenho memória de cartazes com outros formatos e bem maiores. Este exemplar aqui é aproximadamente do tamanho A4.

E nesta especulação, obviamente que não podemos ter em conta alguma da ortografia e vocabulário, pois o termo Egreja passou a ser escrito  Igreja a partir do Acordo Ortográfico de 1911. Seria de facto extraordinário que este cartaz acima publicado fosse anterior a 1911, o que remeteria para uma data próxima da construção da Capela (em 1859). Sendo pouco provável, é no entanto possível.

A impressão foi feita na Tipografia Heróica, que ainda existe na Rua das Flores, no Porto. Esta empresa entre outras particularidades produz anualmente milhares de folhinhas com as quadras populares que são aplicadas nos vasos de manjericos. Poder-se-á, pois, tentar procurar na empresa caso exista arquivo, mas certamente será tarefa inglória.

Entretanto, por posterior pesquisa, consegui apurar a informação de que a Banda Musical dos Bombeiros Voluntários de Vila da Feira, que consta no cartaz, foi fundada em 1924 e extinta em 1942, o que significa que o referido impresso é ainda anterior a 1949, data inicialmente estimada. Fazendo nova pesquisa dos dias 7 de Agosto entre 1924 e 1942 apenas aparecem os anos de 1927, 1932 e 1938. Ou seja, o cartaz será seguramente de um destes três anos.

Quanto a este cartaz, ele diz-nos que no Sábado, dia 6, estiveram no arraial duas bandas de música, a da Vila de Arouca e a dos Bombeiros Voluntários de Vila da Feira (que já não existe). Não deixa de ser curiosa a indicação de que as bandas se exibiram até às...3 da madrugada.

Ainda a descrição interessante sobre a ornamentação e a iluminação a "acetilene e à minhota" pelos hábeis Sr. Rufino de Almeida Postal e Manoel Pinho, de Oliveira de Azeméis. Repare-se que acetilene ou acetileno é um hidrocarboneto, por isso usado em iluminação. Daí a novidade, já que com toda a certeza nessa altura Guisande ainda não tinha rede eléctrica e iluminação pública.

Descreve ainda, que "além da ornamentação alugada, o arraial estará revestido de admiráveis efeitos pelas mãos delicadas de um grupo de gentis meninas da freguesia". De facto, deliciosa esta descrição.

Quanto ao dia 7 de Agosto, Domingo, bem cedo, pelas 09:30 horas, a imponente procissão da Igreja Matriz para a capela. Pelas 11:00 horas a missa solene com pregação do Rev.mo Abade de Pedroso - Vila Nova de Gaia. Nova curiosidade, as mesmas bandas de música que actuaram no Sábado, voltam a actuar no Domingo. Realmente muito trabalho. Finalmente pelas 17:00 horas, "combate de fogo Chinês entre os referidos pirotécnicos".  Tendo em conta a hora e o dia de Verão, não nos parece que o fogo de artifício tivesse assim tanto impacto, mas pelos vistos era então a norma.

Analisando este cartaz como outros programas, não há dúvida que por esses tempos, anos  1930, 1940 e 1950, a parte de entretenimento da nossa festa centrava-se muito na actuação de bandas de música e fogo de artifício. Já a partir dos anos 1970 tornaram-se habituais os conjuntos típicos e ranchos e só mais tarde, já a partir de meados de 1980 é que começaram a surgir os ditos cantores pimba, "artistas da rádio e televisão".

Interessante como um aparentemente simples papel amarrotado e misturado com outros papéis igualmente maltratados, nos pode dar muitas informações obre aspectos da nossa vivência e história comunitária.

20 de setembro de 2021

Assim não vale!

O tempo já era de desfolhadas e depois de um café no Américo após o jantar, o Jorge Beto lá desafiou a malta para ir dar uma volta "à caça" de gajas e que o destino seria lá para os lados de Pessegueiro ou da Costa Má, na freguesia do Vale, então uma espécie de minas de Salomão no que à riqueza de desfolhadas dizia respeito.

Alguma da malta, como o Tonico do Mota e o Geraldino Flores, ainda torceram o nariz porque a saída naquele sexta-feira estava programada lá para os lados dos Lameiros em Escariz, onde a Fatinha da Inha e as primas diziam que ía haver desfolhada da rija, com regueifa e tudo" Mas, seja! Pés ao caminho, como quem diz, arrancaram as V5 do Jorge Beto, onde na traseira do curto selim se acomodaram as nádegas largas do Geraldino, e a do Tonico do Mota com o Nando do Neca a fazer de lastro. O Fonseca lá seguiu na sua Fórmula 1, preta e luzidia como uma azeitona, levando na pendura o magricelas do Zé Trovincas, então ainda sem ordes de pôr ao relento da noite a Florett do pai, que assim ficava descansada e envolta num lençol de flanela. 

Só que em vez do costumeiro caminho, o raio do atazanado Jorge Beto decidiu atalhar e ali a seguir ao Clemente, para os lados da Manguela, em Louredo, guiou as motorizadas pelos caminhos fundos da zona da Lousa e Cegufe, então como hoje, uma espécie de Amazônia de pinheiros, giestas e tojo. Escusado será dizer que, sem GPS e sem Apps a indicar o caminho, inteligências electrónicas que nessa época nem eram pensadas, andou-se para ali a queimar shell e a derreter pistões a percorrer às voltas e mais voltas uma espécie de labirinto de Creta, de caminhos estreitos, fundos e lamacentos, onde para além das luzes dos faróis da maquinaria não se vislumbrava um palmo à frente do nariz naquele denso breu de pinheiros. Ao fim de meias horas e já com as torneiras dos depósitos na posição de reserva, lá se chegou aos confins da Costa Má, envolta num nevoeiro que mortalhava o lugar. A desfolhada, dentro de umas largas e cinzentas portas-fronhas, já ía avançada e pouco mais deu que para desfolhar por desfastio uma meia dúzia de espigas bichadas, daquelas que já estão disfarçadas no meio do folhedo.

Claro está que o olho da malta e sobretudo do Jorge Beto, não andava nas espigas mas nas Vicentas, três irmãs tão parecidas na falta de beleza que pareciam ter saído da mesma forma defeituosa. O Geraldino, esse arranjou lugar ao lado da mais nova, a Zéza e o Jorge Beto lá se encostou à mais velha, a Beatriz, e daqui a nada o seu rosto vermelho estava mais vermelho e feliz e já a carregar ao ombro cestos para dentro do canastro como se fora rapaz arregimentando na casa. 

O resto da malta, desconsolada, bem dava a volta com os olhos à roda da desfolhada, à procura de raparigas mas airosas, mas só dava de caras com velhos e velhas ou mulherio casadoiro já com as mãos moídas e os rostos cansados, porque a desfolhada começara bem cedo nas amplas leiras do lugar, numa colheita de luta de catanada de foucinha às canas e estrepes.

Fosse como fosse, o resto da noite avançou rápido, mas antes de dar o serão por encerrado o Tonico do Mota ainda quis  tirar satisfações com a jornada e dar o resto da volta, se não desse para Lameiros ou Goim, pelo menos por Cabeçais ou Mascotes. Mas a noite ia mesmo avançada e por cada alpendre ou quinteiro a que se passasse, as portas fronhas já estavam fechadas e os vizinhos que vieram ajudar já se esgueiravam aos pares ou solitariamente para casa, atalhando como fantasmas pelos caminhos fundos e escuros dos lugares.

No dia seguinte, ao balcão do Américo, a malta comentava a saída da véspera e o Geraldino, sempre na sua filosofia acertada, ou não frequentasse o Liceu na vila, lá sentenciou: - Foda-se! Andou a malta perdida e às voltas na selva, a limpar caminhos de carros de bois para ir à Costa Má à desfolhada com as gajas mais feias da freguesia do Vale! Assim não Vale!

O Jorge Beto, sério, não concordou com a classificação de "as mais feias do Vale", mas encolheu os ombros, até porque ninguém, principalmente, o Geraldino, precisava de saber que no final da missa no Vale, mais logo, combinara de se encontrar com a Beatriz.

Mas tudo não passou de uma gargalhada quase geral e dali a pouco a malta já ia a caminho do Café do Manel Paiva, apontada ao jogo de snooker ou das machinas, a abanar a pila pela rua acima, mijando e desenhando na estrada uma serpentina que só acabava ali para os lados do talho ou mesmo às portas da oficina do Matos. Com mais curvas que essa serpente, só mesmo as voltas da véspera nas matas da Lousa e Cegufe para chegar à Costa Má!