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5 de outubro de 2022

O Tino, rapaz com tino


O Tino é assim: Um rapaz simples, quase primordial, despido do espartilho que adelgaça as noções do bom senso ou do juízo perfeito. 

Dizem os especialistas que o Albertino tem algum atraso cognitivo, mas o povo, menos dado a estes conceitos técnicos, diz, apenas, que terá umas quartas-feiras a menos, mas um bom rapaz, do melhor.

Pela minha parte, acho que nem uma coisa nem outra. O Tino tem sobretudo uma simplicidade genuína no pensar e no falar. Pela parte física é um touro de força e destreza e como tal é requisitado como jornaleiro quando se trata de cavar leiras, rachar lenha, limpar matos, apanhar espigas ou batatas. Quanto a ser um bom rapaz, em total acordo.

Em resumo, anda por aí muita boa gente com as quartas e quintas-feiras todas e demais dias da semana e ainda assim com menos tino que o Tino. Como pessoas e quanto a juizinho, em nada são mais ou melhores que o Tino.

Mas o Tino, insisto, é mesmo assim, e nessa simplicidade toda troca-nos as voltas e as ideias. Daria para feirante, capaz de vender botas a quem procura peúgas ou casacos a quem quer comprar cuecas.

Assim, quando nos cruzamos, lá meto conversa de circunstância: 

- Então Tino, está calor?

Mas o Tino responde com outra pergunta: 

- Então houve mais um acidente na Gandarinha? 

- Ai houve? - pergunto interessado.

- Pois houve, e deu um prejuízo do caraças. Podia ter havido mortes! Um carro ficou todo encartado. Vai p´rá sucata direitinho!- responde com ar sério e de quem testemunhou o embate.

Mas mudo de conversa, mostrando-me interessado nas inconstâncias do tempo: 

- Mas, ó Tino, amanhã virá chuva? 

O Albertino responde, novamente, com outra pergunta: 

- Sabias que roubaram quatro galinhas ao Zé Ferreiro?

- Quatro galinhas? - perguntei admirado.

- Sim, e foi de noite e com um cão à porta! - esclareceu abanando a cabeça com ar de quem contava uma impossibilidade.

- Mas então, quem terá sido? - questionei, curioso.

- Foi a viúva do Neca! Era de saber. Já não é a primeira vez! - esclareceu com ar de quem já viu o filme repetidas vezes.

- Mas como é que se sabe que foi ela? Houve testemunhas? - perguntei para esclarecer essa sua convicção.

- Ah, foi o próprio Ferreiro que a viu a meter os frangos, já com o pescoço torcido, num saco.

- Mas foi ele quem te contou? - questionei interessado?

- Ele contou tudo na loja da Nandinha. - disse. - Ele bem deu por ela, mas como caminha mal e estava em ceroulas, não foi atrás dela.

- Mas então ele não vai fazer queixa à guarda? - quis saber.

- Não vai nada! Se calhar não se importa, pois ela roubou-lhe as galinhas mas ele rouba-lhe o pinto!

- Ai é? Bem, eles que se entendam! - respondi já  pela estrada abaixo, mas ainda intrigado a pensar no raio da sua resposta, como se nela justificasse a permuta de galináceos.

O Tino também seguiu para cima, mas ainda a recomendar: 

- É preciso é ter cuidado com as portas abertas. Ela tudo o que vê, tudo rouba. E é pôr à porta dois cães bravos, com fome e com os dentes afiados!

E pronto! O Tino lá continuou desenvolto a caminho de casa. 

De rajada, fiquei a saber de duas novidades que desconhecia, mas continuei sem saber se no dia seguinte choveria. 

Já sei! Para a próxima se quiser saber do Tino se vai chover, tenho que lhe perguntar se o Benfica ganhou ou perdeu. 

10 de agosto de 2022

Coisas de regedores e foucinhas

Na minha pesquisa relacionada aos apontamentos sobre os regedores em Guisande, que como já confidenciei por aqui, tenciono incluir no livro que pretendo publicar lá para o princípio do próximo ano, tenho falado com os mais velhos e escutado histórias curiosas e mesmo divertidas. Algumas serão naturalmente como os contos, em que, conforme vão sendo contadas, alguém sempre lhes acrescenta um ponto.

É claro que por razões óbvias não interessa nem importa referir nomes e os aqui usados são fictícios. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência, como é costume avisar. É certo que os intervenientes já partiram, mas há familiares que poderiam ficar melindrados. Mas, o mais importante, o essencial, é que fiquem registadas as particularidade deste nosso género humano, tão rico em diversidade de personalidade, do ser e do viver.

Assim, conta-se que um certo guisandense, com fama e proveito de ser amigo do alheio, apesar de ser uma alma mansa e pacífica, terá "mudado" de lugar uma certa alfaia agrícola, no caso uma foucinha, artefacto imprescindível ao corte de ervas, centeios e aveias nos campos ou mesmo corte das canas do milho  após a colheita das espigas. 

O dono, o lesado, desconfiado do larápio do costume, queixou-se ao regedor, homem austero e experimentado com as coisas da vida e conhecedor do dia-a-dia das suas "ovelhas" e suas manhas. Ora o regedor,  após o final da missa, dirigiu-se calma e pacatamente a casa do suposto subtractor. Bateu na porta fronha e logo depois, da negrura do quinteiro assomava a figura de quem procurava, no seu aspecto franzino mas vivaço.

- Ora viva, Sr. regedor! A que devo o prazer da sua visita?

- Ouve lá, ó Justo! Devolve-me a foucinha do Ti Correia, que ele amanhã vai cortar centeio e precisa dela - Ordenou em voz grave e austera.

- Tá, bém, tá bem, tá bem! - respondeu o Justo num tom apaziguador procurando amansar o ar autoritário do regedor. - Mas, Sr. regedor, venha ali comigo!

Dirigiu-se a uma barraquita ao lado da capoeira e ali estavam penduradas na velha parede uma dúzia de foucinhas e outras alfaias, que mais parecia uma tenda de ferreiro na Feira dos Dezoito.

- Qual será destas, Sr. Regedor? Qual será destas? - perguntou nervosamente o Ti Justo. 

- Mas então tu não sabes a que roubaste? Achas que eu sou entendido em foucinhas e que conheço todas as foucinhas da freguesia? - ripostou o regedor, já a perder as estribeiras com aquela humilde descaradeza  do Justo.

- Tá, bém, tá bem, tá bem! Deve ser esta! Deve ser esta! É mesmo esta! Até tem a marca com o nome do Correia! - respondeu com ar de entendido, enquanto pegava na foucinha, quase nova, e a devolveu ao regedor.

O regedor, habituado a estas tropelias do Justo, pegou na foucinha, virou costas, mas antes de transpor as portas fronhas, voltou-se e sentenciou! - Olha lá, não me obrigues a voltar cá por causa de foucinhas, que eu tenho mais que fazer!  Além disso, para que raio queres tu tantas foucinhas?

Respondeu-lhe o mãos levezinhas, encolhendo os ombros estreitos: - Sabe, Sr. Regedor, nestas cousas é melhor ter a mais que a menos! É! É melhor a mais que a menos! - repetiu, encolhendo novamente os ombros, justificando-se.

21 de abril de 2022

Os burros também se ensinam

Tenho para mim que o Belmiro é um revoltado. Mas de uma revolta obscura, enigmática, porque nunca sabemos distinguir se apenas com os outros, com o mundo, ou se apenas com ele próprio. 

O raio do homem não está sossegado em lado algum e se está aqui, já está a pensar em ir ali, e se ali, já pronto a ir acolá. Depois, se está aqui está como se não estivesse, porque com o olhar distante como se já  a ver o que mais ninguém vê.

Apesar disso, o Belmiro é figura indispensável numa roda de amigos, no café ou num evento da aldeia. Todos, à sua roda, gostam de o ouvir contar histórias, que são anedotas ou anedotas que são histórias. E quanto mais se riem os seus ouvintes, mais ele conta e encanta. Mesmo que uma história repetida, porque já contada mil vezes, ele adorna-a e veste-a com diferentes roupagens e passa por ser nova.

Mas num repente, ainda Fernando, o Musga e o Neves se riam desbragadamente  da sua última história, sobre aquela vez em que o Quim Correia enfrentou o padre da aldeia a propósito deste ter mandado interromper a música nos altifalantes na festa de S. Januário, porque queria dormir a sesta, e já o Belmiro estava a engrenar a primeira a caminho de um sítio que naquele momento nem próprio sabia para onde. Como muitas vezes, daria a volta ao quarteirão, passaria à casa da Helena na esperança de a ver de cócoras a mexer nos bolbos das tulipas e dali a nada estaria de novo cercado por uma plateia atenta às suas novas velhas histórias. Com sorte, ouviriam aquela em que o Manduca indo arriar o calhau ao mato acabou a limpar o dito cujo com um sapo que inadvertidamente por ali passava ou do Zé da Canoa que ia às putas e lhes pagava com bolachas Maria, torradas e uma garrafa de Sumol de ananás.

É, pois, este Belmiro, uma figura revoltada mas apreciada, mesmo estimada. Ademais a sua revolta não é revolucionária, daquela que assalta quartéis e derruba governos, mas antes espiritual, psicológica mesmo. 

Não espanta que nessa dualidade de cómico e de revoltado o Belmiro também divida opiniões sobre a sua forma de ser e estar. Há quem de facto o aprecie, mas também quem lhe tenha um certo fastio para não dizer ódio de estimação porque o consideram um montador nato de minas e armadilhas, um mestre de intrigas capaz de virar a unha contra a carne. Cose aqui, descose ali, compõe acolá, descompõe além e num repente consegue o que quer. Não surpreende que nessa agilidade teatral o Belmiro tenha já feito deitar por terra negócios apalavrados e revirado acordos e contratos mesmo a quem tem a palavra por honrada.

Mas o Belmiro tem andado mais soturno e as suas histórias já cheiram a rançosas e os ouvintes já são menos e não riem tanto, desde que há bem pouco ele próprio foi apanhado numa teia que andou minuciosamente a tecer para emperrar um negócio da venda de um porco que o Manel da Nanda tinha prometido ao Silva da Lamosa. Acabou por ser ele próprio a comprar o porco, entregue prontinho em casa, morto e desmanchado, aviado em  febras, lombos e rojões. Só depois de convocada a família para a rojoada e papas de sarrabulho é que percebeu, que aquilo não sabia a nada, uma vulgar carne industrial de um qualquer talho.

Rapidamente descobriu que afinal o Manel da Nanda, com rebate de consciência à palavra dada, vendera mesmo o bicho caseiro ao Lamosa. Desculpando-se e justificando a queixa do Belmiro pela carne de fraca qualidade, sem gosto nem sabor a caseiro, rogou-lhe o Manel que lhe perdoasse a troca, ...que matara dois iguais mas que o que a ele lhe calhou não gostava de couves nem milho e apenas comia ração industrial e o que sobrava da ração dos cães.

Feitas as contas, verificados os factos, o Belmiro nem foi enganado, apenas provou da sua velha estratégia e tem que admitir que por vezes os melhores planos têm furos.

Não sei se contará esta como uma das suas histórias à malta do costume quando de novo o cercarem, mas acredito que sim, nem que lhe dê uma caiadela e que troque os nomes aos intérpretes. Afinal sempre ouvimos dizer que rir de nós próprios é melhor que uma consulta no médico ou psicólogo.

Certo é que o Belmiro, mesmo fazendo rir os outros com as suas histórias, parece andar agora mais revoltado desde que comeu os rojões vulgares a pensar que eram caseiros. 

Quem não se importou com a infelicidade do Belmiro, foi o Silva da Lamosa, que, por despeito o tendo como "um burro", sentenciou “...Que se foda! Os burros também se ensinam!”

21 de janeiro de 2022

O Abel não tem apps

O Abelzinho da Nanda anda desactualizado. E isto porque, ignorante ou analfabeto digital, não usa as redes sociais nem apps.

Já quase na reforma, corre desde há longos anos, e para ele fazer 10 Km em 50 minutos ou 20 em 100, é canja. Por vezes, conforme a gana, tanto vai mais lento como mais rápido. Apenas porque sim, literalmente a cagar-se para as médias, ritmos ou recordes pessoais. Não vai para o cú de Judas participar em provas ou em trails porque tem boas estradas e melhores caminho perto de casa. A gasolina está cara!

Mas, cá está, poucos sabem disso, porque não usando apps para registar a coisa, nem redes sociais para a divulgar, não tem a preocupação de apregoar ao mundo e arredores as suas corridas e os seus resultados. 

Soubesse ele que isso é moda e a cereja no topo do bolo de alguns egos, e poderia tentra-se a abrir contas no Facebook, Instagram ou Twitter. Mas não e ninguém o convence disso e como ele corre como quem respira, não vê daí, de todo, qualquer façanha ou acto extraordinário a ponto de andar a fazer inveja aos amigos com coisa tão vulgar. Não o fez quando subiu de calções e galochas a um eucalipto para atacar um exército de vespas asiaticas e ía lá agora dizer à malta que Roma a Pavia não se fizeram num dia, como se tivesse agora inventado a roda ou descoberto a pólvora.

Mas o Abel da Nanda é assim. Tão humilde quanto magricela, corredor à moda antiga, sem roupa ou calçado de marca, e por isso não espanta que seja visto por aí a papar quilómetros como um galgo atrás da raposa. Mas destesta que o vejam e foge das ruas principais como o diabo da cruz, para que não lhe apitem e porque prefere respirar eucaliptol e louro a fumaça de escapes.

O Abel não tem apps, telélé no braço nem lanterna na cabeça, mas tem pés e noção de que não faz nada de extraordinário a ponto de envaidecer-se com a coisa. 

Espécie rara, este Abel, desenquadrado do que está a bombar!

5 de janeiro de 2022

O filho da tal


Manso como um cordeiro alvo e fofo, o Alcininho sujeitou as mãos a uma ejaculação de gel higienizante e esfregando-as como de contente, seguiu as ordens da assistente jeitosa e sentou-se na cadeirinha desconfortável. 

Preencheu a ficha de rajada e na matriz do totobola do questionário só deu X. Dali a vinte minutos era chamado juntamente como mais um grupo a dirigir-se ao balcão para o check-in no processo de vacinação. Abriu os olhos à fila mais curta, um passo largo à frente e despacharam-no rápido: - Vai ser a Moderna! - Informou a menina sem levantar os olhos. O Alcininho agradeceu e pensou para consigo: - Até podia ser a antiga. Quero é despachar!

Correu despachado para a fila em forma de serpente. O casal que até ali, desde que entrara na bicha, sempre estivera na sua frente, foi ultrapassado nesta etapa. - Mas então este artista não estava atrás de nós desde lá de fora? - Sussurrou ela, empertigada, ao marido. - Pois estava! Filho da puta! Não sabe respeitar as pessoas! É só artistas!

O Alcininho, uns metros mais à frente, distraído e alheado do mimo, olhou então para trás e apercebendo-se que o casalinho perdera o lugar de entrada, recuou e simpaticamente fez-lhes sinal para passarem à sua frente, retomando o justo lugar. - Ah! Obrigada! - Murmurou a senhora, encabacada. Encostando-se ao ouvido do marido segredou: - Afinal o fulano até foi correcto, e tu a soltar-lhe os cães! - Quero lá saber... Não fez mais que a sua obrigação! - Respondeu, encolhendo os ombros e coçando discretamente os tintins.

A fila lá seguiu, contorcendo-se lentamente pelo átrio do auditório. Dali a meia hora, como um Ferrari a fumegar, o Alcininho lá entrava na box sorrindo para a enfermeira baixinha. Esta, indiferente, cravou-lhe a pica mesmo a meio do coração onde na tropa tatuara "Amor de Mãe" (a mesma há pouco ofendida) e depois das recomendações do gelo e do ben-u-rom, matou o tempo no recobro a ver gajas no Tinder. 

Escapou de boa, o Alcininho, pois durou apenas uns segundos o passar de "filho da puta" a pessoa correcta.

A vida é mesmo assim, feita de primeiras impressões. E contra elas não há vacina que resulte.

É só artistas!

18 de dezembro de 2021

It´s raining likes, hallelujah

Parecendo que não, o Alcininho entrou nos sessenta. Parecendo que sim, está já na reforma. Assim, com todo o vagar do mundo, num destes dias, bem cedo, encheu o alforge de bananas, besuntou a próstata de Halibut, montou a bike a toca a subir até Arouca. Partindo das Caldas, aos 40 minutos já passava ao Júlio. Num ritmo vivo, numa hora e um quarto e picos estava à sombra do Convento. 

No regresso, já embananado, mais ou menos outro tanto. Verdade, verdadinha, e uns trocados, acabou por fazer uma média de 25. Orgulhoso  e vaidoso, lá deu a noticia ao mundo na sua página do Facebook e Twitter. Mas, com pena e desilusão, os likes contaram-se pelos dedos de uma mão. 

Lamentou-se à cara-metade pelo desinteresse dos amigos, ele que noutros tempos dava um peido digital e choviam likes e que agora, que se esforçava, era ignorado. A Alzira, desbragada como de costume, disse-lhe: - Ó home, tens de subir ao Camouco, caralho! E um dia deste vais comigo ao P.I.T.O. Vais ver o que é chover likes!

29 de novembro de 2021

Caninamente obediente


Há nele um não sei quê de patego, mesmo um lorpa, e simultaneamente a esperteza cega de uma minhoca calculista que se adapta, contorce e progride nos meandros da oportunidade, mesmo do oportunismo. Pode parecer uma adaptação escorregadia, moldável, ou mesmo uma marioneta num contexto mais teatral, mas o certo é o que o homem lá vai indo e progredindo, assegurando que a sua sela esteja bem presa ao dorso do cavalo e assegura que os seus cavalguem também seguros. Por vezes aposta no cavalo errado mas, que raio, até um relógio parado tem horas certas duas vezes ao dia!

Se fosse carpinteiro ou serralheiro o rapaz só faria janelas de oportunidade. Mas verdade se diga, a reboque de algum trocadilho, ele tem mais pinta de mercenário de que marceneiro. O Marceneiro, o verdadeiro, esse pelo menos tinha o dom de bem cantar o fado. Já para este, o mercenário, o fado é foda, e prefere bem mais cantar loas trovadorescas e galantes a quem lhe dá solda e saldo. Nessa monocórdica concordância, está ele sempre na linha da frente e se os chefes dizem "mata" ele não perde tempo a dizer "esfola". 

Como chegou a caracterizá-o o Dinis Pastos, eminente leitor de carácteres, o tipo faz-nos lembrar aqueles cãezinhos que numa certa época de azeiteirice, ali pelos anos 60 e 70, criavam pulgas na traseiro peludo dos automóveis, sempre abanando a cabeça numa atitude de permanente concordância ante o dono. Sem cansaços, sem torcicolos.

Mas, foda-se, tanta prosa para contornar o que de forma mais prosaica se pode dizer que o gajo é apenas, e não é pouco, um grande lambe-botas.

Todavia, que se lhe dê mérito, pois nesse modo de estar, lá vai indo e progredindo, verde, viçoso e cheiroso, um verdadeiro pau para toda a colher, assente na sólida filosofia de que os chefes têm sempre toda a razão. Não o contrariemos, porque o manter um chefe bem disposto é, em si mesmo, um posto. E é esse o seu posto, manter os chefes bem dispostos, principalmente se estes não gostam de ser contrariados. Ora tudo menos indispôr as chefias. Nem que se apanhem sabonetes do chão da sauna. Com o sentido de missão não se brinca!

Posto isto, aposto que perceberam nada, mas perguntem ao Pastos, que ele descodifica; se há  fixação que o prenda, é a ficção.

Já agora, vou encomendar um desses cãezinhos de pescoço oscilante e, claro, uma alcatifa peluda para o instalar.

14 de novembro de 2021

Um café e duas de 5


Decididamente, os tempos presentes são diferentes de outros tempos,  os passados. Nessa altura, na tasca, o pessoal à semana pedia, um café e um bagaço. Ao Domingo, um café, um bagaço e o "O Primeiro de Janeiro". Agora, pede-se, um café, o "Correio da Manhã", duas de 5 e cinco de 1. Raspadinhas, pois claro. 

Já não basta o sabor confortante de um café quente, e a frescura das notícias do futebol ou da política, mesmo que estas sejam sempre ressessas. Há que raspar pela adrenalina da expectativa inerente ao jogo, numa renovada esperança de que "...agora é que vai ser!".

Há até quem se acomode num cantinho, qual tertúlia política e literária de outros velhos tempos, e tenha num qualquer Bernardininho, um moço fiel que assegura o fastidioso frete de ir ao balcão comprar. Os jogadores, esses já só se contentam em apenas no raspar.

Raspa, raspa! Não tem nada! Foda-se! Vai comprar mais duas de 5. E o Bernardininho lá vai num constante vai-e-vem até que chegue à hora do almoço.

Bom Domingo!

20 de setembro de 2021

Assim não vale!

O tempo já era de desfolhadas e depois de um café no Américo após o jantar, o Jorge Beto lá desafiou a malta para ir dar uma volta "à caça" de gajas e que o destino seria lá para os lados de Pessegueiro ou da Costa Má, na freguesia do Vale, então uma espécie de minas de Salomão no que à riqueza de desfolhadas dizia respeito.

Alguma da malta, como o Tonico do Mota e o Geraldino Flores, ainda torceram o nariz porque a saída naquele sexta-feira estava programada lá para os lados dos Lameiros em Escariz, onde a Fatinha da Inha e as primas diziam que ía haver desfolhada da rija, com regueifa e tudo" Mas, seja! Pés ao caminho, como quem diz, arrancaram as V5 do Jorge Beto, onde na traseira do curto selim se acomodaram as nádegas largas do Geraldino, e a do Tonico do Mota com o Nando do Neca a fazer de lastro. O Fonseca lá seguiu na sua Fórmula 1, preta e luzidia como uma azeitona, levando na pendura o magricelas do Zé Trovincas, então ainda sem ordes de pôr ao relento da noite a Florett do pai, que assim ficava descansada e envolta num lençol de flanela. 

Só que em vez do costumeiro caminho, o raio do atazanado Jorge Beto decidiu atalhar e ali a seguir ao Clemente, para os lados da Manguela, em Louredo, guiou as motorizadas pelos caminhos fundos da zona da Lousa e Cegufe, então como hoje, uma espécie de Amazônia de pinheiros, giestas e tojo. Escusado será dizer que, sem GPS e sem Apps a indicar o caminho, inteligências electrónicas que nessa época nem eram pensadas, andou-se para ali a queimar shell e a derreter pistões a percorrer às voltas e mais voltas uma espécie de labirinto de Creta, de caminhos estreitos, fundos e lamacentos, onde para além das luzes dos faróis da maquinaria não se vislumbrava um palmo à frente do nariz naquele denso breu de pinheiros. Ao fim de meias horas e já com as torneiras dos depósitos na posição de reserva, lá se chegou aos confins da Costa Má, envolta num nevoeiro que mortalhava o lugar. A desfolhada, dentro de umas largas e cinzentas portas-fronhas, já ía avançada e pouco mais deu que para desfolhar por desfastio uma meia dúzia de espigas bichadas, daquelas que já estão disfarçadas no meio do folhedo.

Claro está que o olho da malta e sobretudo do Jorge Beto, não andava nas espigas mas nas Vicentas, três irmãs tão parecidas na falta de beleza que pareciam ter saído da mesma forma defeituosa. O Geraldino, esse arranjou lugar ao lado da mais nova, a Zéza e o Jorge Beto lá se encostou à mais velha, a Beatriz, e daqui a nada o seu rosto vermelho estava mais vermelho e feliz e já a carregar ao ombro cestos para dentro do canastro como se fora rapaz arregimentando na casa. 

O resto da malta, desconsolada, bem dava a volta com os olhos à roda da desfolhada, à procura de raparigas mas airosas, mas só dava de caras com velhos e velhas ou mulherio casadoiro já com as mãos moídas e os rostos cansados, porque a desfolhada começara bem cedo nas amplas leiras do lugar, numa colheita de luta de catanada de foucinha às canas e estrepes.

Fosse como fosse, o resto da noite avançou rápido, mas antes de dar o serão por encerrado o Tonico do Mota ainda quis  tirar satisfações com a jornada e dar o resto da volta, se não desse para Lameiros ou Goim, pelo menos por Cabeçais ou Mascotes. Mas a noite ia mesmo avançada e por cada alpendre ou quinteiro a que se passasse, as portas fronhas já estavam fechadas e os vizinhos que vieram ajudar já se esgueiravam aos pares ou solitariamente para casa, atalhando como fantasmas pelos caminhos fundos e escuros dos lugares.

No dia seguinte, ao balcão do Américo, a malta comentava a saída da véspera e o Geraldino, sempre na sua filosofia acertada, ou não frequentasse o Liceu na vila, lá sentenciou: - Foda-se! Andou a malta perdida e às voltas na selva, a limpar caminhos de carros de bois para ir à Costa Má à desfolhada com as gajas mais feias da freguesia do Vale! Assim não Vale!

O Jorge Beto, sério, não concordou com a classificação de "as mais feias do Vale", mas encolheu os ombros, até porque ninguém, principalmente, o Geraldino, precisava de saber que no final da missa no Vale, mais logo, combinara de se encontrar com a Beatriz.

Mas tudo não passou de uma gargalhada quase geral e dali a pouco a malta já ia a caminho do Café do Manel Paiva, apontada ao jogo de snooker ou das machinas, a abanar a pila pela rua acima, mijando e desenhando na estrada uma serpentina que só acabava ali para os lados do talho ou mesmo às portas da oficina do Matos. Com mais curvas que essa serpente, só mesmo as voltas da véspera nas matas da Lousa e Cegufe para chegar à Costa Má!

24 de junho de 2021

Deix a´der!

O Doutor bem se queixa, mas já não há nada a fazer. As coisas são como são e os tempos são outros. Há quem os pinte como melhores e quem os esconjure como piores. 

As velhas lutas de jovens ao oferecer novas dinâmicas à aldeia, tiveram o seu tempo, deram os seus frutos, mas as árvores estão já sem o o vigor da seiva nova. Já não se pintam siglas no meio da estrada ou nas paredes caiadas, não se fazem desenhos com xixi pela estrada abaixo, nem se distribuem porta a porta as notícias da aldeia.

Assim, esperar que uma tonelada de areia do rio caiba no atrelado da motorizada do Pintas, será pedir de mais.  Talvez, sem pedir muito, um frigorífico rebentado caído de um 3º Andar.

O que vai dando é a actividade do polegar e do indicador a acariciar o clitóris dos ecrãs tácteis, numa necessidade permanente de orgasmos digitais porque o mundo e arredores está ali, concentrado naquele rectângulo mágico. Até o Nóquinhas ali vem postar as novidades da horta e do pomar e o que mastiga nos lanches.

Por isso o Doutor que se deixe de saudosismos porque por ora este estado das coisas está para dar e durar. Mesmo na política e na cidadania, cada vez a rede traz menos peixe, mesmo com a malha apertadinha. Depois da escolha, entre fanecas, salemas e verdinhos, sobram alguns jaquinzinhos que a mando de alguns  espadartes vão fazendo de moços de recados, passando licenças a canídeos e encaixando com um sorriso amarelo as queixas dos fregueses descontentes clamando impropérios aos espadartes fugidios.

De todo este vale de lágrimas é certo que a aldeia vai ficando cada vez mais mole e insonsa como uma posta de pescada servida no Lar de  Santa Ana, e que o Nóquinhas, esfarelada com ovo, tem como almoço saudável.

Em resumo, não há nada a fazer. Como dizia o outro, que Deus o tenha, "...deix a´der!"

8 de março de 2021

Mota, o revolucionário dos anos 70 e catrapuz

O conhecer uma pessoa tem que se lhe diga. Só anos de vivência e convivência comuns podem sustentar um conhecimento profundo. Sem essa bagagem, qualquer conhecimento de alguém é sempre e apenas circunstancial. Pouco mais que um retrato do aspecto físico e de um ou outro traço mais vincado na personalidade.

Assim, conheço o Firmino Mota, de forma circunstancial, desde há algumas décadas, era ele maduro e eu pouco mais que um adolescente. Mas desde então que tracei o seu retrato como de alguém um pouco para o revolucionário, funcionário público, militante de esquerda, amigo das greves e das manifestações gerais e das lutas por cada vez mais regalias. Não conseguiu a semana de trinta horas e a reforma aos 50 anos (sonho e reivindicações), mas as suas lutas e dos seus pares eram como afluentes de regalias que nunca misturavam as suas águas num rio de deveres e obrigações. Talvez por isso, e porque veio a puta da privatização, reformou-se cedo e desde há longos anos que é um reformado com salário de médico, quando na vida activa do tempo que sobrava das greves, não passou de um medíocre funcionário numa empresa então pública que mais parecia uma porca de criação com muitas tetas onde muitos mamavam à tripa farra.

Então, o Mota libertado cedo dessa obrigação de ter que ir marcar o ponto e de encabeçar comissões de trabalhadores (um eufemismo para quem nada fazia), decidiu lançar-se na literatura onde começou por escrever uns contos e umas frases a que chamava de "poemas de um homem da luta em curso".

Nunca tive curiosidade de ler o que o Mota escreveu em meia dúzia de títulos de edição própria, que fazia distribuir pela sua gente, oferecendo-os pelos natais e aniversários em vez de chinelos, peúgas e cuecas, mas por estes dias, nem sei como nem por quem, lá me veio ter às mãos um desses livros. Logo ao primeiro texto, que nem sei se fábula, se conto, crónica ou coisa nenhuma, começava por destacar a brutalidade de regimes ditatoriais e seus líderes e lá estavam Hitler como o chefe da comandita, o Mussolini, que o bandido de bigodinho à Charlot tanto apreciava, e outros mais incluindo o "sanguinário" Salazar. Logo depois, exaltava figuras como Fidel Castro, Che Guevara, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e outros líderes africanos, nomeadamente os ligados aos movimentos da resistência e independentistas dos anos 60 e 70, todos num ramalhete de santidade.

Mas, omitindo os ditadores carniceiros de outros tantos regimes comunistas, desde logo a União Soviética e seus derivados da Europa de Leste, China, Coreia do Norte, Camboja, Cuba e outros mais, com figuras sinistras como Stalin, Mao, Pol Pot e muitos outros que de assentada encheriam um autocarro de dois pisos como os ingleses,  o Mota disse logo ao que vinha. Em rigor não o disse, mas percebeu-se pela leitura de meia dúzia de linhas. O homem não gosta de ditaduras nem de ditadores, no que lhe partilho a aversão, mas, pasme-se, o Mota como bom camarada, finge que dali e daqueles foram só primaveras, progresso liberdade para metalúrgicos e ceifeiras. 

Seja como for, o futuro do Mota não é nos livros nem no que escreve. Fosse por aí, teria que andar a estender a mão à caridade e pegar na foice e no martelo para além do simbolismo. Não! Vai vivendo, e bem, com os frutos do capitalismo que nos seus escritos desdenha e pinta em tom carregado. E vai sonhando com presentes e futuras revoluções. 

O Mota é dos "durinhos" e se os mais cinco cantados pelo Zeca viessem e lhe fizessem companhia era homenzinho para fazer uma nova revolução e ainda ir atrás do sonho de reviver os Precs e os verões quentes quando o país guiado pelo Vasco e seus capitães seguia nos carris certos para uma ditadura abençoada por Lenine e Marx.

24 de outubro de 2020

Iludir a ilusão

 

E nisto somos todos diferentes. De resto nisto e em tudo o mais.

No Quiosque "Aperta-me até eu gritar", no mesmo instante, o Gastão da Nanda acabava de gastar mais 10 euros numa raspadinha das grandotas (dizem que é o mestre delas) e o Carlitos comprava mais um álbum de um clássico da Banda Desenhada, gastando outro tanto e uns trocos.

O Miro do Quiosque raspou a raspadinha raspada no olho de vidro da máquina e num tom de raspanete compadecido pelo excessivo gasto, respingou: - Nada, amigo! - O Gastão, já habituado a gostar de  gastar, não gostou e resmungou: - Foda-se! - Ajustou à máscara ao nariz gordo, deu meia volta e saiu. Daqui a nada voltaria a desafiar a sorte.

Já o Carlitos, esse levou o livro para juntar à colecção que crescia quinzenalmente, como alguém a engordar sem dar por isso. Nela se delicia, não só com os boneco, a sua arte e a fantasia de tempos medievos, mas por esse pedaço de cultura, que há-de subsistir.

Mas claro, o Gastão lá continua a gastar e volta e meia até lhe saem uns bons prémios que, diga.se, volta a gastar. Porque nestas coisas do jogo, é sempre este ciclo de ilusão do "vai ser agora", em tudo idêntico ao  "ou vai ou racha ". 

Mas não há volta a dar quanto às diferenças que nos moldam. O importante, afinal, é que ambos sejamos felizes, uns nas aventuras, outros nas desventuras. No fim de contas, tudo não passa de uma mera ilusão neste teatro de  sonhos, ou pesadelos, que é a vida. Viva-se!

27 de setembro de 2020

Escândalo...

José Espinafre, membro do movimento PÁRA AÍ, recebeu da Ordem dos Enfardadores de Bacalhau a quantia de 80 mil euros. Acrescente-se, para os distraídos, que o Sr. Eng.º. Espinafre é amigo da Dr.ª Joana Bacalhau, bastonária da Ordem, como quem diz, a manda-chuva.

(Agora, em OFF, que isto não convém dizer ao rebanho: A choruda verba refere-se a um contrato de prestação de serviços de engenharia. Assim, dita de rajada, a quantia parece uma das regulares mesadas da mãe ao inefável Sócrates, o tal que tem o melhor e mais generoso amigo do mundo, um verdadeiro samaritano dos tempos modernos, ou ainda o ordenado mensal de um jogador da liga portuguesa de futebol, ou uma mala destinada a um qualquer árbitro "amigo", rumo de férias ao Brasil, mas afinal de contas são, pasme-se, 2 mil euros por mês, ao qual ainda será reduzida a retenção na fonte  para IRS, referentes a um contrato de, imagine-se o escândalo, 40 meses. É um bom ordenado, é certo, muito superior ao mísero ordenado mínimo nacional tuga, mas, porra, mais do que isso recebe de reforma um qualquer professor primário ou um funcionário público de uma das "boas" empresas nacionalizadas.

Mas, não seria a mesma coisa. Não teria o mesmo impacto dizer 2 mil euros por 40 meses de trabalho, para além de que tal concurso de contratação decorreu de um acto de gestão de uma Ordem eleita e reeleita pelos seus membros. Está visto, o problema do Espinafre é não ter amigos na área da confecção de golas e kits anti-incêndio. Seria bem mais fácil ganhar o dinheirinho e sem alaridos e títulos de escandaleira).

Por este prisma, como quem diz, vistas as coisas desta forma, até um modesto operário, a ganhar mais ou menos o ordenado mínimo, recebe durante os 40 anos da sua vida de trabalhador, qualquer coisa como, imagine-se o escândalo, 280 mil euros! Um roubo deste trabalhador à empresa. 

Agora novamente em ON: Podemos não gostar de muita coisa na Ordem dos Enfardadores de Bacalhau, sobretudo da bastonária Joaninha, nem apreciar de todo a imbecilidade do movimento PÁRA AÍ e seus partidários, nomeadamente do seu membro, o sortudo Espinafre, por sua vez amigo do vizinho da prima do barbeiro do líder, bem como desconfiar ou ter a "certeza" que há ali interesses e compadrios, mas por vezes importa, pelo menos, ter alguma coerência e honestidade intelectual, até porque a chico-espertice e a aldrabice têm perna curta. De resto, este tipo de escrutínio, manhoso e rafeiro, só está a servir para dar gás a essa gente e aos seus movimentozinhos. Depois queixem-se do crescimento da coisa e indignem-se com o crescente descrédito popular dos verdadeiros "democratas" e defensores dos "valores" de Abril.

Como diria o RGC, tenham noção, senão da realidade, pelo menos do ridículo. 

18 de fevereiro de 2019

Crónicas do cavalheiro de calças clássicas - Límpidos e azuis

"As leis são como as mulheres, existem para ser violadas". Creio que foi um espanhol, um tal de advogado José Manuel Castelao Bragaño, durante uma reunião do Conselho Geral da Cidadania no Exterior, órgão consultivo pertencente ao Ministério do Emprego espanhol, presidido por este ex deputado do PP no Parlamento da Galiza, a proferir esta emblemática e irreflectida frase no contexto de ultrapassar um problema de quórum da tal reunião. 

Mas para o caso, não é caso este espanhol, mas o sentido do que disse. Embora na altura fosse polémica e obrigasse o autor à demissão, aparte o politicamente correcto, todos perceberam o alcance da sentença. É certo que lhe bastaria dizer que as leis existem para serem desrespeitadas ou violadas, sem meter as mulheres na molhada, para o caso ter as mesmas consequências, mas as coisas são como são. Foi dito, foi dito. E de resto, assim é. As leis por si só não são imperativas do seu cumprimento. Por isso não falta quem no dia-a-dia, nas mais diversas situações, procure escapar da malha da rede das leis e das acções das autoridades ou de quem tem o dever de as fiscalizar e fazer cumprir. 

Tudo isto para dizer que pela aldeia vizinha de Cagalhães, Vendas de Pigeirães, há dias, por um acaso de visita a uns carvalhais plantados nas imediações,  assistimos a uma descarga pura e dura de esgotos de uma pocilga escorrendo directamente para um dos mais belos rios da zona, o rio Uíça. A instalação,  dizem alguns vizinhos ecologistas, comete tripla ilegalidade porque não retém nem trata os esgotos, encaminha-os directamente para o rio e está edificada em solo de reserva agrícola, mesmo na borda de reserva ecológica.

Bem sabemos que as pocilgas são necessárias e pelo impacto que geram, desde logo os fortes odores, imperativo é que se localizem afastadas dos núcleos habitacionais, mas nos tempos que correm esperar-se-ía que não acumulassem tanta ilegalidade quanto fezes e estrume. Há mínimos.

Aparte disso, a tal pocilga, diz quem sabe, é uma espécie de infantário pois o que ali se cultiva é leitões para serem assados e servidos como tal, dourados e estaladiços por um afamado restaurante da zona.

Mas, feitas as contas, é porque tudo está dentro da legalidade. Afinal, de outras contas, gente que tem poder e manda é cliente mais ou menos habitual do famoso petisco com origens na Bairrada. É porque tudo está bem. Estamos todos descansados. A pocilga fica bem longe do restaurante e os esgotos quando passam a jusante já são límpidos e azuis como a demais água do Uíça e até alimentam bogas e trutas, se é que as há. Pelo menos ajudam a medrar amieiros, choupos e salgueiros. Afinal, há merdas que bem lavadas deixam de o ser. Ora, como poderia proferir o tal galego Bragaño, "os rios existem para serem poluídos e os peixinhos também cagam".

CCCC

29 de janeiro de 2019

Crónicas do cavalheiro de calças clássicas - O Anjos

Soube há dias, poucos, que o Anjos, o Jorge Anjos, será candidato à presidência do Figães Sport Clube, agremiação graúda nas redondezas, já com uma vetusta história e uma sala repleta de canecos e galhardetes conquistados entre o futebol, o voleibol, o bilhar e os matraquilhos. Mas não sem surpresa, pois Figães é terra de segunda vizinhança, a uma boa légua de distância de Cagalhães. Aqui ,o Anjos a bem dizer nunca por cá fez parte de nada, nem de grupo da paróquia, nem de Junta ou Assembleia de Freguesia. Apenas, na folha de serviço, época e meia como vogal do Conselho Fiscal do Cagalhães F.C.. Assim sendo, por que raio é agora candidato a presidente dum clube forasteiro e de uma terra alheia? Nem sequer de Lomba da Burra, onde nasceu? Já seria grande a admiração de que fosse sócio desse clube, com cotas em dia, quanto mais abalançar-se a uma candidatura à sua presidência.

Realmente, espalhada a notícia, cá em Cagalhães ficamos todos a fazer figura de anjinhos perante a novidade do Anjos. É certo que, já na pré-reforma de professor, que junta à da esposa, também ela docente reformada, tem tempo e dinheiro para "fazer qualquer coisa pela humanidade", como sentenciou o Zé do Portal na tasca da Micas, mas que é surpreendente, é.

Em todo o caso, o que mais há por aí são Anjos, que pouco ou nada fazem pela "humanidade" da terra onde nasceram ou moram, mas um dia, vá lá saber-se por que carga de água, abrem as asas e esvoaçam para outros poisos, para maiores desígnios, para ali fazerem parte da história da cidadania local. É certo que o Anjos, homem de igreja, sabe que Jesus foi expulso da sinagoga nazarena, tido como o simples filho do carpinteiro local e que por aí ninguém é profeta na sua terra, mas não precisava de tanto, armar-se como tal em terra alheia. Afinal de contas não faltam por Cagalhães cargos e funções onde possa demonstrar o seu voluntarismo. Junta, Assembleia, Comissões de Festas, Centro Social, Paróquia, etc, etc, um rosário de necessidades. Até o Pe. Agostinho está a precisar de um diácono para o ajudar na sua missão espiritual. Logo um anjo, vinha mesmo a calhar.

Mas ele há coisas, e o Anjos surpreendeu. Virá mesmo a ser presidente? Por mim acho que não! Deve ter sido aliciado por algum doutor importante, na expectativa de mais altos voos, porque, foda-se, o lugar de um Anjo, mesmo que só de apelido, deve ser num poiso mais alto, num poleiro ou pedestal aveludado de nuvens de algodão. Mas acho, eu e muita gente por cá, que não. Quando o peido espreitar ao cu, vai-se encolher e desistir, como desistiu da função de Juiz da Cruz. Regressará à placidez das tardes calmas e tranquilas na tasca do Petróleo, a desfiar os jornais do dia e a fazer caminhadas solitárias pelas ribeiras. Quanto ao Figães, só de longe a longe, e até duvido que tenha as cotas em dia, que abrir mão não é com ele.

Cagalhães não terá a urbanidade de Figães, há muito elevada a vila, mas é modesta, bonita, e maneirinha como um presépio napolitano, quase mesmo um céu, bem ao jeito de um anjinho. O Jorge é mesmo desses: na hora de meter pés ao caminho, encolhe-se, recolhe as asas e transforma-se em anjinho, o que nem se importa se tal significar distância de canseiras e responsabilidades.
Tudo no seu lugar. Como diria Mário Quintana, "Os anjos não dão os ombros, não; quando querem mostrar indiferença os anjos dão as asas.” 

 CCCC

22 de setembro de 2018

Perfume do céu


Quando o chorou em dia de descer à cova funda e fria, a Celeste lamentava-se por ter partido tão cedo, tão novo, o seu Simão.
Não era propriamente novo, pois já andava nos setentas, mas, como o diz o ditado que "o olho do dono é que engorda o gado",  compreende-se, salvo as devidas diferenças, que o olho azul da Celeste passados quase cinquenta anos ainda visse no seu Simão o rapazola viçoso e alegre que numa dança no terreiro da festa ao Santo Ovídeo, a conquistou para sempre. Talvez por dançar, quiçá por cantar, porventura por dançar e cantar tão bem, a ponto de, por carinho, o ter baptizado de o seu "Pisco". 

É certo que a foice da morte quando teima em ceifar tanto se lhe dá se tomba joio, centeio ou trigo. Vai tudo a eito e nessa ceifa inesperada, porque em tempo em que repousavam as searas lá por Novembro, lá se foi o "Pisco", não sem antes, num último "pio", pedir à sua Celeste, que bem sabia o quanto ele gostava dessas flores, sobretudo do seu intenso perfume, para quando lhe fosse enfeitar a sua campa, que não se esquecesse de a adornar de beladonas, porque queria sentir o seu perfume no Céu, presumindo, catolicamente, que era para lá o seu destino. E deve estar por lá, porque aparte umas pequenas malandrices, que os padres aliviam facilmente com três avé-marias e um padre-nosso, nem era mau diabo o Pisco. Era de facto alegre e de bom coração e animava qualquer terreiro por onde lhe cheirasse a festa. 

A Celeste consolou-o com a jura, prometendo-lhe que enquanto fosse viúva lhe havia de cobrir a lápide com rosados ramalhetes de beladonas logo que a partir dos últimos suspiros de Agosto elas pusessem a cabeça de fora nos vários cantos do jardim e do quintal onde o Pisco, como um cão a enterrar ossos, diligentemente foi depositando bolbos. Talvez já sonhasse que viria a precisar dessas inebriantes flores para as cheirar no Céu, quando o Pai de todos o chamasse para a sua companhia.

Verdade seja dita, a Celeste viúva continua a cumprir sagradamente essa promessa e não me espantei, por isso, quando ainda numa destas manhãs de sábado a vi a caminho do cemitério com uma frondosa cesta de beladonas acabadas de colher.
Acredito que o Pisco estará por esta altura a extasiar-se com o seu perfume e mesmo que tão forte e intenso não morrerá de asfixia ou intoxicado, pela simples razão de que morto já está.

Nesse Céu perfumado, descansa em paz, Pisco!

23 de agosto de 2018

Mata borrão

O Venâncio já não tem idade para brincar aos cucos, pelo que no peso dos seus sessenta anos, bem feitos - assegura - considera que já viu de tudo e o que faltará para ver já pouco ou nada contará para o totobola da surpresa. 
Educado sobre valores que pelos tempos actuais vão definhando como minhoca em pedra quente, até que pereça mirrada, mesmo assim contemporizava com  a naturalidade das mudanças, de resto em consonância com o que já nos seiscentos poemizava o grande Camões: 

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Apesar de compreender a mutação dos tempos e das vontades, continuava o Venâncio a não encaixar certas coisas que ia vendo, por as achar tão simplisticamente difíceis de perceber, se não as consequências pelo menos as origens. Como, por exemplo, logo ali ao seu lado, na praia, onde, de barriga ao sol, não conseguia evitar ver e ouvir um grupo de adolescentes, mais para crianças do que para adultos, em cenas e predicados próprios de um filme, no mínimo para maiores de 16 anos, tendo eles, os actores num palco real de areia quente e macia, talvez uns 13 ou 14 anitos. Aquela rapariguinha de corpo delgado e cabelos compridos, quase da cor da areia em que se rebolava com um rapazola pouco mais velho, possivelmente dois ou três anos antes celebrara a comunhão solene. Na escola, onde certamente "aprendera" algumas daquelas disciplinas próprias de adultos, frequentaria o sexto ou sétimos anos.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

As conversas e as "acções" daquele grupo de rapariguitas e rapazitos soavam ao Venâncio como algo pouco natural e fora de tempo e como não visse por perto a sombra de adultos com ares de pais ou, modernamente, encarregados de educação, questionava para si próprio se aquelas criançolas, sobretudo as raparigas, não tinham pais, ou  pai ou mãe. E se tinham, sabiam eles ou preocupavam-se em saber onde, quando e como passavam o tempo os filhos e filhas, e com quem? Poderiam tais filhos de tenras idades ter noção das consequências de algumas das suas "brincadeiras"? Ou, como na escola de antigamente, confiava-se no mata-borrão para apagar ou remediar certos excessos líquidos? É certo que nos tempos que correm consomem-se pílulas, mesmo do dia seguinte, como quem come gomas ou se chupa rebuçados da tosse, mas lá vem o dia em que a cântara parte a asa e mesmo sob a alçada da legalidade, não cheira nada bem a perspectiva de um aborto a uma criança, porventura de forma recorrente. E ser mãe adolescente, não sendo, infelizmente novidade, também não se afigura como positivo para nenhuma das partes. Os maus resultados sobram para todos, até para os pais que, invariavelmente, seguindo uma atitude de "deixa andar", de facilitismo e excessiva permissividade, criam as bases certinhas para estas brincadeirinhas de crianças a fazer de adultos.

Mesmo que lhe causem confusão estas coisas a destempo, o Venâncio voltou os olhos para o jornal desportivo e rematou bem à sua maneira, a de quem já não tem pachorra para debates e arrebates de moralidade ou falta dela: - Se der merda, alguém que limpe! E para certas borradelas não há mata-borrão que valha.

Continuou distraído, o Venâncio, a ler uma qualquer notícia sobre o tema das eleições no Sporting onde um labrego chamado Bruno Carvalho, como lapa, parece teimar em não se despegar do poder num clube histórico, mas poderia muito bem ter lido que as mães adolescentes em Portugal são mais de duas mil por ano, seis por dia, e só não são mais porque a pastilha faz "milagres" e os abortos são mais que muitos. Afinal de contas, ali, bem ao lado do Venâncio, a estatística poderia estar a consolidar-se.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E enfim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

31 de julho de 2018

Sporting sempre!



Um Domingo à tarde, em pleno Verão. Por cá já muitos emigrantes em merecido período de férias, a ajudar a encher as estradas, os restaurantes e as esplanadas. 
Nunca fui emigrante mas percebo e compreendo que esta nossa mania portuguesa dos saudosismos leva-nos a querer encher o corpo e a alma revendo pessoas, lugares e coisas mal se cruze a fronteira. Ora se o Casimiro esteve três dias a banhos no Gerês e quando chegou sentiu-se como estivesse ausente três anos, não surpreende que o Manel da Zira, depois de um ano longe de Guisande, logo que chegado à aldeia, mesmo antes de rever a família, passe por Espinho, para ver e sentir o mar e embriagar-se daquele ar salgado e sentir no rosto as frescas nortadas, as mesmas das idas à praia em solteiro. Já o Chico do Albertino, logo que arrumadas as trouxas vai direitinho à Tasca da Aida encostar-se ao balcão e beber o melhor "paralelo" do mundo e arredores, incluindo a Suiça. A Fernanda do Neves, essa faz questão de ir a Fátima agradecer a Nossa Senhora e aos pastorinhos. No regresso faz paragem na Mealhada, tão sagrada quanto a da Cova da Iria, e ver regalada na travessa um rosário de pedaços dourados de tenro leitão, seja no Virgílio, no Pedro, na Meta ou no Rocha (este já na estrada do Luso). Cá vai! Amém!

Ora o Zé Canadas, chegado da Suiça, nesse Domingo à tarde, encheu o carrão com a mulher e os filhos e foi de abalada até Castelo de Paiva e na Rua da Boavista, apontada à praça dominada pelo austero conde lá do sítio, entrou na concorrida Adega Sporting, lugar de antigas petiscadas e pela qual, nos domingos cinzentos entre  La-Chaux-des-Fonds e Le Locle, tanto suspirou, imaginando o doce sabor acanelado das rabanadas, o picante das moelas ou o vinhadalho do bucho.
Depois de alguma espera, porque ali o espaço é pequeno para tanta fama, lá arranjou uma mesa corrida e os cinco instalaram-se. - Então, o que vai ser? Para mim quero moelas e no final uma rabanada. E para vós? Quereis uma rabanada, bucho, moelas, rojões, orelha? E tu Nandinha? Vai uma punheta de bacalhau? Não querem nada?!!! Mau...
Que nada. Nem xus-nem-mus. Nem a filharada nem a esposa, de calcinha branca, medrosa de a pintar de tinto, estranhadiços naquele ambiente de tasca, mostraram qualquer interesse na petiscada. O Canadas percebeu o recado de tantos narizes torcidos e logo esmoreceu. Envergonhado e rendido, pediu apenas uma rabanada e "uma malga" (de verde tinto). O empregado recolheu as toalhas e os talheres dos putativos comensais. Toda aquela mesa cheia de gente para comer uma rabanada, terá questionado, intrigado e surpreso.

O Canadas, comeu rapidamente e nunca uma rabanada de Paiva lhe soube tão amarga. Saiu triste e envergonhado e de tão acompanhado sentiu-se sozinho e desamparado. Já nada era como dantes e as trainadas de outros tempos que viveu na Adega Sporting com os amigos do namoro, já eram apenas uma saudade e desejo que o atormentava no pouco tempo desocupado na Suiça.

Confesso que fiquei com pena do Canadas, ainda por cima com o Tono Henriques a testemunhar tal infortúnio, sorrindo, maroto, por debaixo do bigode branco ainda bordado do grosso tinto.
Já de saída, ainda vi o Canadas a esgueirar-se ligeiro para o carrão e contornar apressado a praça, certamente a jurar para si próprio que para matar estas saudades de petiscada numa adega castiça de paredes de um granito duro, mais vale só que mal acompanhado. - E anda um homem a vir por aí abaixo apressado, a comer quilómetros e a contar horas para vir comer uma rabanada sozinho no meio de uma multidão a torcer o nariz! Foda-se!

27 de dezembro de 2017

Ficção - Quando ser bom cansa

Aviso prévio: Contém linguagem comum e corriqueira, mas numa apreciação politicamente correcta, pode ser entendida como incorrecta.

Se havia na aldeia de Cagadães pessoa generosa, altruísta, confidente, amigo do amigo, não era o pároco Pe. Elias, ainda que com nome do santo profeta a seu favor, ou nem sequer o presunçoso presidente da Junta, o Jacinto das Dornas, mesmo que dono de casa farta, o melhor cliente do alfaiate Carlinhos das Tesouras e condutor do melhor carrão da terra. Não! Não era nenhuma destas figuras, mesmo que na presunção de que os respectivos cargos devessem ser modelos de bons exemplos ou de melhores acções, de humildade e dedicação à causa alheia dos fregueses. Mas o povo, de longa data já desconfiado e experimentado, é das pessoas com tais responsabilidades públicas e comunitárias que menos espera em matéria de bondade e bem-fazer a favor dos outros, dos próximos ou dos afastados. Ficavam assim de fora, excluídas, estas duas “importantes” figuras da terrinha.

Posto isto, quem seria, então, a alma mais caridosa dessa típica aldeia encravada entre mar e serra? Até poder-se-ia pensar na professora D. Margaridinha, aposentada, sempre generosa nas esmolas e peditórios para a igreja, ou mesmo no Carlinhos das Cavadas, filho único, solteirão, dono de uma pequena fortuna em bens ao luar, frescas ribeiras e frondosas tapadas a perder de vista lá para a serra da Parada. Mas não, mesmo com as esmolas da velha professora ou com a banda de música e pregador na festa da Senhora do Amparo, pagos como antiga promessa pelo herdeiro das Cavadas, bem arranjada estaria a freguesia que a sua melhor alma se ficasse apenas por essas vaidosas benesses. Era, pois, quase de consideração geral que a melhor prenda humana da aldeia era o Toninho da Quintão. O homem, para além de toda a sua dedicação à arte de carpinteiro, qual S. José, tinha uma família, se não sagrada, pelo menos exemplar, e a todos ajudava. Mais do que a sua quota parte das ofertas a peditórios para as causas da igreja e da freguesia, estava sempre disponível para tudo e para todos. Nas tascas era um mãos largas, pagando rodadas a toda a gente. À sua volta não havia tristeza. Quanto a convívios era sempre o primeiro na organização e no encargo das despesas. Ele fazia parte de quase todos os movimentos da paróquia e de quase todas as confrarias e comissões de festas e festinhas. Tomou parte da direcção do Clube Desportivo de Cagadães, pagando a atletas e a árbitros, não que concordasse com os favorecimentos no apito, mas porque era assim que se "dançava" nos regionais da bola. Participou, também, em juntas e assembleias de freguesia, etc, etc, num nunca mais acabar de dedicação à sua terra e sua gente. 

Era, pois, esta uma alma exemplar e como tal uma figura querida e popular. Tanto que quisesse ele voltar a ser presidente da Junta de Cagadães e mesmo sem o apoio de qualquer partido daria uma abada ao cagão do Jacinto e seus pares da concelhia. Desejasse ele voltar a fazer parte da Comissão Fabriqueira e o padre Elias o acolheria como a uma criada roliça de cores sadias.  Mas, com a idade já a avançar para a reforma e farto de comer poeira e serradura de mogno e macacaúba, o Toninho já estava a ficar cansado de ser bom e com isso a perder a paciência como um velho serrote a perder a trava. Falando com os seus botões, enquanto moldava pinázios para portas e janelas, já não eram raras as vezes em que questionava o que tinha ganho até ali com essa sua boa e samaritana disponibilidade. Não que alguma vez esperasse receber dividendos pela sua natural forma de ser e estar, mas pelo menos quanto ao reconhecimento efectivo e afectivo da sua comunidade. É certo que reconhecia que num sentido geral era uma figura popular e por muitos realmente querida, mas também concluía, agora, mais lúcido, que de muitos outros essa era uma popularidade interesseira, daquela que os espertalhaços usam e abusam em benefício próprio.

Certo é, que fruto dessas cada vez mais regulares reflexões, quase existenciais, o Toninho da Quintão aos poucos começou a desprender-se de alguns compromissos com a freguesia e mesmo nos seus tempos livres, aparecendo menos vezes à tasca do Lacrau e com menos bondade nas esperadas rodadas. A quem lhe batia à porta, pedintes, associações de recuperação de drogados e bêbados, bombeiros ou comissões de festas, já começava a saber responder com um “fica para a próxima” ou já mesmo com um “não”, mesmo que justificando-o. A princípio muito a custo, a roer-lhe os fígados, porque contra a sua natureza, mas depois já com convicção, tornaram-se frequentes as negas, levando a desconfiar todos quantos a cada pedido ou solicitação esperassem a acostumada resposta sorridente e positiva, como se bastasse um abanão à árvore para dela caírem generosos frutos..

Em pouco tempo, esta é que era a verdade, o Toninho estava uma pessoa mudada. É certo que continuava a ser dedicado ao trabalho e à família, mas fechou quase a torneira à sua bondade e participação nas coisas da terra e a favor dos outros. E já não era uma posição que se lhe oferecesse dúvidas mas antes uma plena convicção. E quando interpelado dessa sua mudança, começou até a ser um pouco rude, ou curto e grosso como costuma classificar o povo. Os palavrões começaram a tornar-se vulgares nas suas apreciações, até ali caso raro, porque pautava-se pelos valores do respeito e simpatia. Mas agora as caralhadas saíam-lhe da boca com naturalidade e, de repente, parecia estar de mal com tudo e todos. Até o Pe. Elias que até ali lhe parecia estar à altura da sua função de pastor, desculpando-lhe o "rigor" nas contas do "venha a nós", apresentava-se-lhe agora na sua consideração como um “cheio-de-nove-horas”, interesseiro, avarento e até mesmo um rufia na forma como desconsiderava os paroquianos pobres e elevava os ricos. Já quanto ao presidente da Junta, o Jacinto das Dornas, era um “merdas” um "caga-latas" vaidoso, arrogante, de sorrisinho hipócrita, colector discreto das comissões dos empreiteiros do regime como se a discrição e o "saber fazê-las" não beliscasse a camada de honestidade.

Por outro lado, perante situações que antes, no exercício de cidadania, procurava resolver ou fazer com que resolvessem, mostrava-se agora indiferente e até revoltado. Ainda há dias, passando na Travessa dos Concharinhas viu que a rede pública de água estava com uma fissura perdendo uma grande quantidade de água. Noutros tempos teria de imediato telefonado para a companhia das águas  a avisar da avaria, mas agora, passando indiferente com o carro por cima da enxurrada de água, comentava para si próprio: - Que se fodam! Cabrões de merda que ainda há tempos, porque atrasei um dia a pagar a factura da água, tiveram a puta da lata de me cobrar juros de mora. É deixá-la correr. Está por conta do dono!
Já depois desse dilúvio, porque se andava em preparação para eleições para a Junta, foi convidado pelo Jacinto das Dornas a fazer parte da lista. Recusou, tanto educadamente quanto possível, mas já depois de o despachar, comentou para si próprio: - Vai-te foder, Jacintinho! Querias era mama! Alguém que te fizesse o trabalho para andares aí feito cagão a mostrar os dentes. Já mamas que chegue, incompetente de merda. O povo que abra os olhos! À minha custa, não! Vai-te foder!

Até aí, mesmo para algumas pessoas que sabia que por inveja lhe cortavam na casaca, nas suas costas, claro, mostrava-se indiferente à ofensa, sempre simpático e disponível, quase dando a outra face, mas agora perdeu essa paciência e a recomendação da doutrina e há dias sabendo por terceiros que o Zézinho Faneca, entre uma barba e um cabelo, esteve a dizer mal de si na barbearia do Alfredinho, confrontou-o à saída da tasca do Lacrau: - Ó meu grande filho da puta! Andas para aí feito tagarela, armado em cobarde a dizer mal de mim sem que eu te tenha feito algum mal? Qual é o teu problema? Queres que te amasse os cornos? Trata da tua vida senão tenho que te partir as bentas! - O Faneca, esperando o habitual e cordial cumprimento, ficou atordoado por esta reacção e mudou de cor para um branco pálido e mal conseguiu bocejar uma mentirosa negação. Foi ligeiro para o carro, como um rafeirito assustado, com o rabinho entre as pernas. Nunca mais lhe cortou na casaca e agora nas suas caminhadas desvia-se se o vir na sua direcção.

Poderiam ser aqui apontados mais exemplos dessa mudança do Toninho da Quintão, mas as descritas demonstram por si só que por vezes um homem cansa-se de ser bom. Ora verdade seja dita, na nossa sociedade sempre houve o pecado de se pretender abusar da bondade e generosidade de quem é bom e quase apetece dizer ou concluir que para gente má a bondade é um desperdício e porventura o Toninho, mesmo que um pouco tardiamente, chegou à sábia conclusão que a bondade é só para quem a faz por merecer e não para quem a dá como adquirida.  
Poderemos então concluir que o Toninho da Quintão deixou de ser uma alma boa? Talvez não! Quando muito aprendeu a distribuir a bondade apenas a quem a merece. Ora, dirá ele, os cabrões e filhos-da-puta deste mundo e de Cagadães não merecem qualquer gesto de bondade. Merecem mesmo um valente pontapé no cú ou bem apontado aos tomates, mas, vá lá, bondosamente, pelo menos a total indiferença.

Nunca é tarde para aprender e o Toninho, carpinteiro, de tanto "serrar" na bondade desperdiçada, aprendeu às suas custas. É que ser bom e generoso para cabrões e filhos da puta, cansa. É como "chover no molhado" ou "dar pérolas a porcos". Um desperdício. 

2 de junho de 2014

Podia ser verdade… D. Sancho II

 

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Agora que o Condado Guisandensis  até já tem um rei, seria interessante que a governação pudesse ser entregue a esse D. Sancho II de caracóis e barba rebelde. É verdade que a História o considera como "um rei ausente" e que acabou  "escorraçado" das terras portucalenses, indo acabar os seus dias sem glória a Toledo - Castela, mas certamente que poderia fazer grandes cousas a favor deste nosso condado.


No estado em que estão as coisas, algumas poderiam ser resolvidas à espada, nem que esta fosse política e correctamente substituída por um pau de marmeleiro. Por exemplo, poderia começar por quem no Monte do Viso andou a queimar lixos de limpezas e ali deixou o monte de cinzas e restos da fogueira junto à escada/bancada. De seguida poderia aplicar a justiça real a quem deixou espalhadas no chão do terreiro do mesmo Monte do Viso umas cintas plásticas que terão sido utilizadas para prender uma rede de ensombramento num recente encontro de idosos. Limpeza e asseio não é para todos porque alguém se esqueceu que depois da festa e do desmontar da barraca há que limpar o que se sujou.


Será certamente curto o reinado deste rei D. Sancho II, que até poderia ser o rei Artur de Camelot e da Távola Redonda, mas para além de reinar sobre o real evento da Viagem Medieval ao Reino das Fêveras e do Porco-no-Espeto, lá para os calores de Agosto, poderia no entretanto ser usado em nosso benefício, pelo menos nesta fase em que a governação da União de Juntas de Freguesia está numa espécie de reino de faz-de-conta.


Podia ser verdade...mas o mais importante por agora, é dar os parabéns ao Artur por ser figura de cartaz. Tem figura e estilo. Parabéns!